[Continuação da Parte 1]
Abri a boca para demonstrar minha surpresa com aquela revelação e queria falar algo, mas não a interrompi, porque Gomes estava sem fôlego, o que implicava dizer que havia mais.
— E agora, entendo, depois de vinte anos, cento e oitenta semanas e cinco dias, que a soma e a multiplicação só fazem sentido quando existem suas contrapartes. Porque se hoje tenho sonhos que se somam aos seus, preciso diminuir um dos meus. Se hoje ou amanhã terei muito a desfrutar, é com você que eu gostaria de partilhar.
Demorei alguns segundos para finalmente reagir. Aquilo era uma tonelada de informações confusas que faziam muito sentido, e eu só pude rir.
— Então, é desse jeito que você tá dizendo que gosta de mim?
Gomes negou.
— Não, Louise! Eu gosto de cafeína, vinhos, tecnobrega vaporizado... — Ela fez uma dancinha improvisada que me fez rir ainda mais. — ... Gosto de queijo do Marajó, e sei que é seu preferido também, gosto de passear no Ver-o-Peso, gosto de banhos-de-cheiro, gosto de tacacá quentinho e camarão fresco, gosto de açaí recém-batido com farinha de Bragança...
Ela parou ao perceber que eu estava aguardando, uma sobrancelha levantada.
— De você, Louise, eu não gosto. Eu... Eu... Não sei... — De repente, ela parecia interessada no chão de madeira desgastada abaixo de nós, então, pegou uma moeda e fez uma equação em uma das tábuas:
Gomes x Doyle = Felicidade
Felicidade = (Gomes x N) + Doyle
— Se minha vida fosse um lado de uma equação, eu teria muito mais potencial te tendo ao meu lado!
Engoli em seco, lágrimas formando-se em meus olhos enquanto ouvia sua explicação enrolada.
— Então, como poderia dizer, você é minha variável que torna tudo exponencialmente melhor, independentemente dos problemas que eu traga, que variam a constância da felicidade em minha vida...
Demorei para perceber que quem a calou fora eu, com um beijo inesperado por ambas. Toquei delicadamente nos meus próprios lábios ao rever aquela cena que fazia o possível para esquecer, mas que me assombrava e me excitava todas as noites, ou sempre que eu reencontrava Gomes, ou quando seu nome era mencionado, ou quando algo me lembrava dela. Recordo-me sempre, como vívidas, das memórias, toda vez que me permitia rememorá-las: seus lábios macios estavam úmidos, mas um pouco ácidos por causa das uvas que havíamos comido, a textura rachada devido aos dias de frio a que estava desacostumada. Todos esses detalhes tornaram o momento ainda mais agradável para mim porque eram tão... Gomes. E seu entusiasmo quase científico refletia-se naquele beijo, como quando ela se desbravava em suas pesquisas, quando ela finalmente o retribuiu após o susto. Suas mãos pousaram em minha cintura gentilmente, investigando caminhos entre meu ventre e minhas costas, sua boca explorou a minha com toques que variavam na pressão e nos movimentos, em busca de padrões que me deixassem confortável ou desconfortável, apesar de que tudo que ela fazia, desde mordiscar, lamber e sugar meu lábio inferior até encostar levemente a língua na minha, arrancava-me suspiros que, se ela julgasse correto, seria um indicativo de que seus experimentos, como sempre, davam frutos e estavam funcionando perfeitamente bem.
Para não deixar deixar-lhe margem de dúvida, inclinei-me, aprofundando ainda mais o beijo, nossos troncos quase caindo na cama, se não fosse a súbita falta de ar que tomou meus pulmões.
Quando abri um espaço entre nós para recuperar o fôlego, notei que Gomes encarava-me com pavor, como se tivesse visto um vândalo quebrando um dos seus protótipos. Um pânico momentâneo, de que eu talvez tivesse interpretado errado suas ações, instaurou-se em mim, mas se tivesse sido uma experiência tão terrível assim, ela teria retribuído o beijo com igual entusiasmo? Sua expressão confusa durou poucos segundos antes que ela me abraçasse com força, quase me sufocando, como se estivesse se agarrando a uma boia em meio ao mar. Se havia uma parte de mim — e na verdade, havia sim, havia muitas, mas estavam silenciadas — que tinha medo de ter interpretado errado seu falatório, essa parte foi, finalmente, sepultada.
— Esse discurso todo vai ser o mais próximo que vou escutar de um "eu te amo"? — perguntei, rindo em seu ombro. Gomes acariciou meu cabelo solto, fungando.
— Não sei o que isso significa.
— Eu, sim.
Ela se afastou, curiosa, e pareceu notar em mim o que eu via nela.
Contrariando todos os alertas inconscientes que beliscavam minha nuca, que me gritavam com clareza: "Não ultrapasse essa linha!", inclinei-me sobre ela e a beijei novamente, aplicando um pouco mais de pressão, repuxando o lábio inferior para explorar sua boca com a língua, e, enquanto Gomes balbuciava qualquer coisa que fosse uma tentativa de racionalizar o irracionalizável, caímos nos lençóis, perdidas entre toques e suspiros, entre nossas inexperientes tentações juvenis, que pareciam ter sido pressionadas como água em ebulição, presas em uma chaleira cuja válvula finalmente havia deixado escapar as borbulhas transformadas em ar quente.
Quando a aba do meu vestido solto de verão começou a ser erguida por Gomes, suas mãos perpassando minha pele já exposta, senti em meu ventre uma contração que havia muito não sentia, não daquele jeito, e estar de frente com aquela lembrança não seria o melhor remédio para me livrar de sentimentos que vinha escondendo para superar um coração partido.
Ao mesmo tempo, queria tanto ficar e ver, com os olhos bem abertos e ouvidos atentos, confirmar aquilo que tinha acontecido e que poderia ter se repetido tantas vezes, tantas vezes... Mas um suspiro surpreso ao meu lado lembrou-me de que eu não estava sozinha, e Margot parecia tão interessada em continuar com o voyeurismo que meu desconforto foi maior que meu desejo de ficar. Ruborizei enquanto sacudia o braço em um movimento de arco.
— É o suficiente! — Forcei-me a apagar o restante daquelas memórias, embora os sussurros e as palavras carinhosas ainda ecoassem quando o cenário alterou-se para uma manhã quente, em frente a um cais. Um navio de madeira com o brasão brasileiro indicava que a nossa carona para o país onde vivíamos finalmente chegara.
— Onde estamos? — indagou Margot, curiosa com o movimento de pescadores, o cheiro de verduras apodrecidas sendo um substituto desagradável ao quarto abafado e amadeirado.
— No porto... — disse enquanto via a mim mesma tentando alcançar Gomes, entretida com entrevistadores no navio. — Lá está ela, aceitando mais uma missão.
— Oh, para onde vocês vão?
Neguei com a cabeça.
— Ela vai. Ficará em uma ilha do Caribe, na rota para o Brasil. — expliquei com a voz quase tão robótica quanto a de Theobaldo, o pombo-robô. — Eu seguirei direto para o Grão-Pará, em companhia do meu futuro noivo.
— Seu... — Margot encarou-me, chocada, antes de perceber a presença de um homem alto, vestido com trajes brancos de oficial, o brasão do país cravado no peito abaixo de várias insígnias que denotavam sua patente. Norberto tinha traços aduncos, sobrancelhas grossas e cabelos pretos, que naquele dia estavam cortados em estilo militar, rentes ao couro cabeludo. Seus lábios cheios esboçaram um sorriso entusiasmado ao ver Gomes.
— Eles se conheciam na época da escola — expliquei. — Gomes havia resolvido um problema para ele, que estudava num colégio militar para garotos, ao lado do nosso. Ele foi acusado de alguns roubos, quando na verdade havia sido um valentão qualquer. Foi fácil de solucionar, mas Norberto viu-se em dívida com Gomes, então ele veio nos buscar... Bem, havia mais um motivo para isso.
— Creio que sei qual seja... — Margot viu quando Norberto encarou-me de longe. Naquela época, eu não havia notado seu olhar de interesse sobre mim, parecendo um cachorro solitário na rua, porque eu mesma estava concentrada demais em Gomes que, desde aquela manhã, havia simplesmente sumido.
— Eu acordei sozinha — expliquei, tentando não parecer tão magoada, apesar de todos aqueles anos corroendo-me com a lembrança. — Sei que não fez por mal. Gomes tem hábitos questionáveis. Ora se levanta cedo, ora acorda quase próximo do almoço... Eu só esperava que naquela manhã, depois daquela noite especial, Gomes acordaria ao meu lado, e não..., enfim, desapareceria em suas aventuras. Ela resolveu que era um ótimo momento para estudar os equipamentos de lavoura de alguns camponeses de Sarreguemines para diferenciar os metais usados lá dos que eram usados no Brasil. Depois, ela tomou café da manhã com Alice Durant e, em seguida, foi almoçar com um conde para explicar quais foram as estratégias para identificar o fantasma barqueiro... Próximo da nossa partida, eu finalmente a encontrei e a abordei para enfim conversarmos. Dessa vez, sem vinho para justificar nossas palavras.
Margot olhou-me em expectativa. Dei de ombros, fingindo que meus olhos não estavam marejados.
— Ela desconversou, disse que a experiência tinha sido interessante e que, se eu estivesse disposta a repeti-la, aquela poderia ser mais uma variável constante em nossa vida. — Sacudi a cabeça e dei um leve sorriso com a lembrança, porque, o que mais fazer além de sentir o amargor de uma expectativa frustrada? Só sorrindo. — É claro que aquele era um jeito nada delicado de estabelecer um relacionamento comigo. Gomes aparentemente não leva jeito com palavras quando existe romance e compromisso na mesma tábua. Perguntei-lhe, então, como pretendia que aquilo fosse levado.
Sorri para Margot.
— Ela não entendeu minha pergunta. Questionei-a sobre futuro e o que eu queria dizer com aquilo era: "vamos ficar juntas?", "vamos construir uma família?" ou "vamos sossegar em algum lugar ou percorrer o mundo?"... Não importava a qual dessas perguntas ela me respondesse... — Senti uma torção no peito, quase sufocante. — Eu só queria estar com ela, entende?
Mais lágrimas caíam, e funguei, limpando os olhos com as costas da mão. Era tão humilhante chorar na frente de uma fantasma que estava se prendendo a um palacete e prejudicando tantos trabalhadores e os próprios vizinhos. Apesar disso, Margot não parecia indiferente aos meus sentimentos, pelo contrário. Ela me deu os segundos necessários para me recompor e restaurar minha seriedade.
— Mas Gomes sempre gostou de viver o presente. A justificativa? Muitas. Talvez, quem sabe, meu nobre colega Freud pudesse explicar. Agatha sempre foi sozinha até onde se entendia por gente. A mãe dela resolveu viver uma aventura como arqueóloga e aparentemente faleceu em uma escavação. O pai era um cientista sem formação, como ela, e foi consumido pela própria ambição de querer criar o melhor meio de transporte terrestre do mundo. — Cruzei os braços suspirando. — Gomes não vê os pais como errados, embora mal fale deles. No fundo, eles são seus ídolos, mesmo que jamais admita. Ela vai viver o presente na mesma intensidade, vai colher os resultados que plantou com muita dedicação e uma certa dose de vaidade e... E no meio de tudo isso, estaria eu, sua parceira de investigação, e, vez ou outra, de noites divertidas. Ela queria que eu fosse sua companhia enquanto dava seus passos incertos.
Neguei com a cabeça enquanto via meu eu-do-passado separando-se de Gomes e adentrando outro compartimento do navio, já no interior do convés. Era lá que Norberto faria sua primeira abordagem, oferecendo-me um chá de gengibre com biscoitos de leite e uma piada tão ruim que me arrancaria o primeiro sorriso do dia.
Havia um outro navio, menor, acoplado ao da Marinha Brasileira. Gomes saltitou animada para explorar o que estaria ao seu alcance durante a viagem.
— Alguns minutos depois, ela me procuraria para seguirmos juntas. — Cerrei os punhos. — E eu lhe disse não. Pela primeira vez, Gomes não soube lidar com isso. Nós discutimos, e ela disse que não entendia como uma noite poderia ter mudado tanto meu medo de encarar nossa amizade e que havia se arrependido de não ter deixado claro que, para ela, nada mudaria, só melhoraria. Acontece que eu mesma já não a via somente como uma amiga, e não a via assim havia muito tempo, mas Gomes entendeu minha frase como um encerramento de nossa parceria, não uma confissão de amor.
— Há uma terrível falha de comunicação entre vocês.
— Éramos jovens demais, apesar de não ter passado tanto tempo daqueles anos para cá, mas vivíamos uma para a outra. Eu, pelo menos, vivia para suas aventuras, e quando me vi sozinha, sem sonhos compartilhados, com Norberto disposto a construir um futuro comigo, uma pessoa que agradaria minha família pela estabilidade com que pensa no futuro, e confesso que até um pouco a mim mesma, pelo mesmo motivo. — Deixei minhas lágrimas caírem em abundância, sem me importar em limpá-las. — Eu só pude me agarrar à sua proposta porque, com Gomes, só o que via eram incertezas.
Abanei o ar para dispersar as lembranças e, de repente, estávamos de volta à sala de piano. À medida que o ar liquefeito se dispersava e as confusas memórias de Margot misturadas às minhas começaram a se desfazer, uma cortina de realidade se estendeu sobre meus olhos. Ao nosso redor, finalmente, a cena infame deixada pelo Dr. Bolognesa e Margot estendia-se como um lembrete de que aquela missão não havia acabado.
O corpo do engenheiro estava jogado próximo ao da esposa, a cabeça encharcada de sangue, como os ferimentos múltiplos no abdômen de Margot. Engoli em seco, chocada com a visão repentina daquela barbárie, antes de me aproximar dos defuntos.
Revistei o corte profundo de onde saía tanto sangue da têmpora do Dr. Bolognesa. O vaso que Margot quebrou no marido havia atingido uma veia saltitante, justificando a hemorragia tão rápida, mas havia também uma perfuração na lateral do pescoço, indicando possível suicídio após assassinar Margot. A mão direita dele estava repleta de sangue vibrante, quase um molho de tomate como se o ocorrido fosse mais recente do que era. Discreto, entre os dedos fechados em punho, estava o pequeno cabo de madeira do que parecia ser um canivete.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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