Alguém estava batendo palmas à minha frente. Pisquei duas vezes, olhando em volta. Estávamos na sala escura e azul da diretoria do curso preparatório. Dona Márcia olhava para mim por trás das lentes de contato verdes.
- Max! - Ela disse, e eu demorei a lembrar meu nome, os sons de tiros ainda ecoando em meus ouvidos.
“Não morra”.
Era difícil mesclar a sala azul com o cômodo dourado de poucos segundos atrás. Minha mente queria saber como o menino escaparia dos soldados.
Não morra.
Será que o aviso serviria para mim também? Não morrer, na sala azul e escura de Dona Márcia.
- Max! - ela tentou de novo, mais alto dessa vez. Me endireitei na cadeira, meu melhor olhar de atento em meu rosto.
- É disso que eu ando falando pra sua mãe - me encolhi um pouco - Você já foi a um médico?
Isso disparou alarmes em minha mente. Minha mãe. Minhas tias. Médicos eram contra O Regulamento.
- Não preciso de médico - falei o mais alto que consegui, o que não foi muito. A fala quase automática.
- Não é vergonha precisar de um médico.
- Não preciso.
- Me diga - ela se recostou em sua cadeira, e eu me lembrei de antigos reis. Aquele era seu trono - para onde você vai?
- No mercado, perto da estação de metrô. Depois, pra casa - recitei minha rotina sem entender o ponto.
- Não. Quando você se desliga. Fica olhando pro nada. Pra onde vai?
Eu precisava sair dali imediatamente. As coisas nunca ficam bem para quem pergunta sobre as Viagens. Consegui imaginar minha mãe gritando. Consegui ver minhas tias com suas maletas.
“Não se atreva a chamar meu filho de maluco”
“Consta que a senhora recomendou a ida de Max a um médico. Está certo isso?”
Não, aquilo não podia acontecer. Antes que minha mãe viesse, antes que minhas tias aparecessem.
- Dona Márcia - eu tentei dizer articuladamente - minha mãe não aprovaria essa conversa. Com todo respeito, eu preciso ir ao mercado.
Dona Márcia franziu a testa, como que não entendendo por que me levantei da cadeira. Xinguei mentalmente - eu provavelmente não fora tão articulado quanto pensei. Acontecia com frequência, e eu não me importava.
Saí da sala pequena e sufocante e passei pelos portões do cursinho ponderando sobre palavras. Certamente havia mais alguém no mundo incapaz de falar muito. De se expressar da maneira correta
Claro que havia exceções. As histórias. As histórias que eu repetia baixinho para mim mesmo em meu quarto, até minha mãe me pegar em flagrante falando sozinho.
Você precisa aprender a ser normal, Max.
Olhe ao redor, todo mundo dá seu jeito. Por que você não pode dar o seu?
Eu não tinha vontade de voltar para casa naquela hora, exceto que já eram duas da tarde e meu quarto era o único lugar onde eu podia deixar minha mente respirar.
Dobrei a esquina e olhei em volta. Dois quarteirões até o mercado, e então uma lista de quinze itens, somados à fila do caixa. Eu tinha tempo.
Respirei fundo.
Não morra.
…….
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