O cupido não é um anjinho.
Não sei quem foi que desenhou ele uma vez como um anjinho loirinho, de olhos azuis , que dispara flechinhas com pontinha de coração carregadas de sementinhas daquela famosa flor roxa que nasce no coração dos troxa.
O cupido é mais como um capetinha. Um serzinho maligno que se arrasta atrás de você, na sua cola, com mini flechinhas lambuzadas de carência que ele vai atirando aos poucos, mas sem parar, até que você fique envenenada e entorpecida sem perceber. Quase igual ao tal do “boa noite, cinderela”, aquela coisa que eles botam na bebida da garota para ela ficar grogue e ser arrastada para uma cama sem oferecer resistência. O amor é basicamente isso: um tipo mais sofisticado de “boa noite, cinderela”. E o cupido, um tipo de escorpião traiçoeiro que o aplica, na calada da noite.
Bom, mas vamos voltar ao nosso relato do dia, nessa última noite no cenário do Discovery Channel. Eu não sei por que estou sarcástica assim, com esse papo de cupido. Eu deveria mesmo é estar feliz, afinal eu e o Pano estamos namorando. Eu acho. Que deveria estar feliz e que estamos namorando.
Depois que subimos da cachoeira o Pano me disse: “Estou com fome. E você?” Traduzindo da língua ancestral do amor-neurótico para o Português ele quis dizer: “Poxa, eu sei que fiz merda, mas quero ficar bem com você. Aliás, nem sei direito que merda que eu fiz, mas estou arrependido”.
Aí eu respondi: “Eu também”. Traduzindo: “Tá, eu também quero ficar bem com você, vamos esquecer isso, ok?”
Decidimos então que faríamos um rango por aqui, enquanto o Bob e a Lu já estavam se rangando por lá. Mas vamos fazer para os quatro, que eles iriam voltar com fome. E não seria de larica.
O que vamos fazer? Nossa reserva de comida nos deu a resposta: macarrão com sardinha – era tudo o que tínhamos. Já havíamos acabado com as latas de Ravioli Hero e com a principal refeição de qualquer acampamento: bolacha recheada de chocolate. Restava só o macarrão – aquele tipo de comida que você sempre leva com o honesto intuito de fazer uma refeição adequada, preparada no fogo e tal, mas que ninguém quer preparar quando chega a hora H.
“Bom, podemos comer só a sardinha também” – sugeri. Mas o Pano quis impressionar: “Não. Vou preparar o melhor macarrão com sardinha que você já comeu na sua vida. Aprendi a fazer quando era escoteiro”.
Rarara...escoteiro? Na hora imaginei um replay daquela mesma cena, só que com ele vestido com aquelas roupas idiotas. Escapou uma risada... (pior é que combinava direitinho com ele). Ele riu também, falou qualquer coisa. E as coisas parecem que voltaram ao seu lugar.
Pano foi juntando uns pedaços de porcarias que estavam no chão e foi acender a fogueira. Eu fiquei só olhando, dando apoio moral... e palpite, claro.
Acho que toda a raiva que eu havia passado com ele de manhã, gastei enchendo a porra do saco dele enquanto ele fazia o tal macarrão. “Bota a madeira mais pra cá”, “tira essas folhinhas que estão boiando na água”, “pega a madeira que você botou mais pra cá e bota pra lá de novo”, e coisas do gênero.
É engraçada essa nossa doce vingança. Os caras quando querem se redimir ficam cheios de paciência e compreensão, como se fôssemos umas retardadas e eles com a missão digna de Jó de nos aceitar, compreender e até, quem sabe, amar. Aí a gente aproveita e enche o saco mesmo, só pra vê-los tentando te responder de maneira educada e gentil uma coisa que qualquer um teria te mandado pra puta que o pariu.
- Acho que já tá bom, hein? Eu disse.
- Ainda não, amor. Vamos esperar mais um pouquinho para ele ficar bem soltinho. Eu sei fazer macarrão.
- Se deixar esse macarrão cozinhar mais um pouco esse espaguete vira lasanha, amoreco.
- (suspira . o que significa: o nível do saco cheio saiu do verdinho e entrou no amarelinho)Tá. Vamos. Vamos escorrer ele que acho que já está na hora também.
Tcham! “Vamos escorrer ele”. Onde? Você lembra da cerveja, do vinho, do beck, das bolachas, e até do pacote de macarrão que espera não precisar fazer mas – e talvez por isso mesmo – quem vai se lembrar de trazer o escorredor de macarrão?
- Você tem uma camiseta limpa?
- Não vou deixar você escorrer macarrão numa camiseta minha, Mauro! Escorre numa sua, pô! Até por que você é maior que eu! (Detalhe: geralmente o cara fica todo orgulhoso de ouvir que ele é “maior que você”, dá uma sensação paternal, sei lá. O que eles jamais imaginam é que nós queremos dizer: mais gordo).
- Tá. Vou pegar a camisa que eu mais gosto, mas é por uma boa causa!
E lá fomos nós escorrer o macarrão na sua camiseta do Iron Maiden. Confesso que foi uma visão interessante ver aquela água fervente escorrendo e soltando fumaça pela cara do Ed, aquela caveira mascote deles.
Voilá! Spaguetti à The Trooper! O macarrão tinha uma aparência realmente bem Heavy Metal.
Pra finalizar, uma lata de sardinha daquelas com molhinho de tomate derramada por cima. O problema foi misturar. Na quarta rodada da colher o Pano já estava demonstrando um considerável esforço para fazê-la se mexer.
Até que uma luz me deu uma saída praquela situação. “É melhor esperarmos esfriar um pouquinho”, eu disse. Ele me olhou e respondeu: “ É. É melhor”.
Não é preciso traduzir essa parte. Caímos na gargalhada juntos e o humor, mais uma vez, salvou o amor.
Do riso fomos para o beijo, do beijo para mais beijos, e daí pra diante ninguém mais respondia por nada. Acabamos indo para o carro que estava estacionado um pouco mais afastado, atrás de uma árvore, e transamos de novo.
Dessa vez foi mais tranquilo. Não doeu menos, como todo mundo fala, foi a mesma coisa. Mas estávamos mais relaxados, e misturados com um pouco de reconciliação – ingrediente fundamental para todo tipo de namoro.
Depois ficamos abraçados um tempão sem falar nada, nenhuma uma palavra, mas em perfeita sintonia.
Vimos a claridade de fora ir escurecendo, vozes da Lu e do Bob, risadas, silêncio, risadas de novo, o crepitar da fogueira e os grilos e sapos começando sua sinfonia noturna. E nós lá, abraçados. Sabíamos que alguma coisa estava acontecendo, mas acho que nenhum de nós se atrevia a tentar entender, muito menos conversar sobre.
Foi bom e estranho. Estava feliz, em paz, mas não, também.
Foi só depois de muito tempo que resolvemos ir dormir na barraca. A Lu e o Bob estavam conversando, olhando a fogueira.
No fim das contas não tinha mais nada do rango. A Lu havia separado cada pedacinho de sardinha e comido. O Bob mandou ver no macarrão mesmo.
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