O cara dos caracóis agora gargalhava abertamente da displicência com que ela tinha falado com eles, e vários outros seguiram seu exemplo. O “Grande Chefão" ainda parecia irritado, mas suspirou alto num visível pedido de paciência ao universo, enquanto esfregava o rosto com a mão enorme. Sua expressão aliviou significativamente, mas ainda estava fechada enquanto buscava meu olhar outra vez. Fiquei esperando um pedido de desculpas que parecia estar a caminho, mas foi o “chefe dos cachos” que tomou a iniciativa e falou desviando minha atenção para si.
“- Desculpa Cassie. Claro, que estamos felizes que esteja aqui. Bem vinda à família.” Ele tinha um ar de honestidade e não pude duvidar do que disse. “ Não somos esses babacas o tempo todo..." E me brindou com um sorriso maroto de perder o fôlego. “Tivemos um dia cheio de sobressaltos, e o lance com o Arum definitivamente teve seu custo... ahn...”
Sua expressão se fechou um pouco, e fiquei com a impressão de que ele deixou a última parte escorregar sem querer. O rosto do “Chefão" parecia que ia explodir, mas não tive tempo para ter certeza, imediatamente Raffaela o cortou e era nítido o quanto estava preocupada.
"- Foi mesmo tão ruim assim dessa vez?” O silêncio que varreu o lugar respondeu por si mesmo e sua angústia era palpável. “A Cassie está aqui agora,” Seus olhos agitados buscaram os meus e seu tom de voz estava cheio de ansiedade. “Ela pode ajudar muito mais do que eu pude até hoje... ele vai ficar melhor.”
Seu tom de confiança na minha capacidade em ajudar me pegou desprevenida e me comoveu.
Eu ainda estava pegando o jeito com as massagens e principalmente ainda estava me acostumando a soltar minha intuição durante as terapias de cura... e nem sequer tinha idéia de qual o problema, mas com certeza ia fazer tudo o que eu pudesse para tentar ajudar. Não resisti ao impulso, segurei sua mão e disse em um tom enlevado cheio de resolução que pegou até a mim mesma de surpresa.
“Vou fazer meu melhor.”
“Nós sabemos que vai.” Disse o “chefão” e até ele parecia tocado com o momento, mas sua máscara de zanga voltou no segundo seguinte. “Ele está dormindo aqui no fundo, achamos melhor deixar ele descansar o quanto puder... no final do dia vocês podem conversar.”
Assenti, mas algo se moveu dentro de mim ainda irritada... babaca mandão... aparentemente ele tinha conseguido apertar meus botões e despertar minha antipatia instantânea. Algo me dizia que ele sabia exatamente o que estava fazendo.
"Haaz..." Havia um tom de súplica na forma como ela se dirigiu ao “Chefão”, um pedido de desculpas e uma tentativa de apaziguamento ao mesmo tempo. A raiva parecia diminuir um pouco mais a cada segundo, enquanto sustentavam o olhar um do outro, enquanto um cansaço profundo parecia tomar seu lugar.
“- Depois Rafi... depois... vamos pra casa, por favor.” Disse simplesmente, se sentando sem esperar por uma resposta enquanto soltava todo o peso do corpo na poltrona e fechava os olhos.
Eu já não gostava muito dele, e algo me dizia que as coisas dificilmente mudariam, mas eu conseguia imaginar exatamente como ele se sentia, tudo o que eu queria era fazer a mesma coisa. Só me jogar na poltrona e fechar meus olhos.
Rafaella ainda ficou mais alguns instantes olhando para o “Chefão”, enquanto todos os outros caras voltavam a se sentar e também começavam a relaxar em seus lugares. Então fez um sinal para o motorista, que eu nem tinha visto entrar no micro ônibus mas que aparentemente estava apenas esperando pela ordem para partir, e o som do motor se elevou.
Ela olhou para mim, indicando silenciosamente nossos lugares e percebi um pontada de tristeza por trás do meio sorriso... percebendo meu questionamento mudo ela falou baixinho enquanto nos sentávamos.
"Ele vai superar... se ainda está me chamando de Rafi, não estou tão encrencada assim. Já vi isso antes, ele só precisa descansar por um tempo... Só isso."
“ Você sabe que eu vou precisar que você me explique o que foi tudo isso com o “Grande Chefão", certo?" Atirei em um tom sussurrado para que só ela me escutasse enquanto rodava meu indicador apontando todo o lugar.
Ela sorriu imediatamente ao ouvir o apelido idiota que eu tinha dado ao tal do Haaz (talvez agora que eu já sabia seu nome fosse mais seguro parar com isso de uma vez... mas se encaixava tão perfeitamente ao idiota que eu já podia me imaginar tendo problemas com ele me ouvindo o chamar assim no futuro) e falou em um suspiro delicado:
“Correndo o risco de fazer minhas as palavras do “Grande Chefão”, Cassie... Tudo bem se eu fizer isso depois? Prometo que vou te explicar tudo do melhor jeito que eu puder, quando chegarmos em casa, ok?”
“Ok.” Assenti e continuei depois de uma longa pausa, em uma tentativa de aliviar o clima. “Por favor me diz que vocês tem pilhas e pilhas de doces no café da manhã! Algo me diz que eu vou precisar de todo o açúcar dessa ilha se quiser sobreviver ao dia de hoje.”
Uma gargalhada se formou no fundo da sua garganta e escapou dos seus lábios. O sorriso finalmente alcançando seus olhos enquanto me assegurava que sim, eu teria pilhas e pilhas de coisas deliciosas para comer quando chegássemos no restaurante.
Tive a impressão de que ela estava tentando encontrar uma forma de me dizer algo mais, quando um vulto surgiu pelo corredor passando atrás da sua cabeça e foi se sentar na poltrona ao seu lado, no lado oposto do corredor.
“Pequena Fúria.” Percebi pelo seu tom de deboche que era a sua forma provocativa de cumprimentar a Rafaella. “Você é um sopro de ar fresco nessa bolha entediante de babacas com a qual eu vivo. Sempre posso contar com você pra agitar as coisas, não é?!”
“Grande idiota.” Ela devolveu, em uma farpa afiada. “Não importa quanto tempo passe longe de você, parece nunca ser suficiente. Você realmente não se cansa nunca de encher o meu saco, não é?!” Algo me dizia que eles tinham feito isso muitas e muitas vezes ao longo do tempo, e que não havia a mais remota chance de que fossem parar tão cedo.
Eles sorriam um para o outro em um desgosto velado.
A postura, os gestos, a troca de farpas... tudo parecia gritar que não suportavam um ao outro mas que tinham aprendido a coexistir. Fiquei curiosa pela centésima vez no dia... e ainda não passava das oito da manhã!
Encarei o recém chegado sem nenhum pudor.
Se ninguém ia me explicar onde eu tinha vindo me meter, então eu ia descobrir sozinha.
Ele era, obviamente, lindo de morrer... mas tinha esse jeito mais agressivo, ainda que contido.
Era como se ele tentasse manter uma fachada calma, enquanto um vulcão de raiva borbulhava e o rasgava por dentro.
A aparência combinava perfeitamente com essa sensação... cabelos pretos em um impecável corte no estilo samurai, raspado dos lados e com um coque complicado na nuca que parecia ter sido feito com a intenção de reduzir drasticamente o comprimento. Solto devia chegar quase na sua cintura...
O rosto era magro e bem marcado, assim como o seu corpo. Ele não era nem de perto tão musculoso quanto o “Chefão” que mais parecia uma montanha e não um cara, mas seus ombros eram bem largos, músculos bem definidos... eu diria que ele tinha um perfil mais parecido com o de um nadador profissional.
Seu pescoço e seus antebraços eram totalmente cobertos por tatuagens, eu tinha o palpite que elas ainda seguiam pelo resto do corpo. Ele se vestia de um jeito simples, uma calça jeans preta cheia de bolsos em um estilo que lembrava aquelas calças de exército e uma camiseta de manga curta em um bonito tom de azul petróleo...
Só quando encarei seu rosto com mais atenção, percebi que era exatamente o mesmo tom dos seus olhos. As sobrancelhas grossas e escuras e as tatuagens em black&white no pescoço acabavam dando a impressão de que os olhos também eram pretos. Mas a cor estava lá, definitivamente.
Ele olhou para mim e me pegou no flagra enquanto fazia minha análise profunda.
Seu sorriso seria muito bonito, não fosse o ar arrogante e a fúria gelada que escorria por ele.
“Gostando do que vê, Cassie?” Ele rosnou.
Senti seu olhar fundo no meu, tinha muita raiva e ressentimento contidos ali. O sinal de perigo piscava como um farol bem na minha cara, e eu não sabia porquê... mas sentia uma calma incomum se espalhando pelo meu corpo. Sustentei seu olhar e continuei o encarando em silêncio. Ele tinha tentado fazer com que eu me sentisse desconfortável, mas diante da minha falta de reação, acabou sendo pego na própria armadilha.
“Então?!” Insistiu mais uma vez. A lava borbulhando cada vez mais perto da superfície.
Ainda assim eu simplesmente me desarmei e me sentindo inacreditavelmente relaxada, dei de ombros e sorri. Sorri gentilmente com meus olhos, me senti sorrindo com meu coração... em um arroubo de confiança sem explicação.
Foi sútil, mas algo caloroso relampejou pelo seu rosto quando eu finalmente respondi:
“Ainda estou decidindo...”
Seu sorriso se tornou um pouco mais verdadeiro, mais quente.
“Humm... talvez eu possa te ajudar com isso.” Seu olhar trespassava o meu, e percebi que inconscientemente ele se inclinava na minha direção, quase se dobrando por cima da Raffaela. “E ainda te compensar pela babaquice de agora há pouco.”
“Qual delas?” Eu ri docemente e o calor em seus olhos aumentou.
“Todas...” ele quase sussurrou.
Seu olhos escorregaram para a minha boca, meus olhos escorregaram para a sua...
Eu podia sentir a Cassie responsável berrando em algum lugar da minha mente:
“O que diabos você está fazendo??!”
Mas eu simplesmente não conseguia reagir.
Ouvi um rosnado feroz vindo da Raffaela, ela estava pasma, furiosa, entre outras coisas.
Seu tom era letal...
“Para trás Kaliandrus!”
Ele voltou à sua posição em um pulo, como se só agora se lembrasse que ela estava lá e percebesse o que estava fazendo. Infelizmente isso também fez com que o manto de raiva e distanciamento voltasse, com ainda mais intensidade agora. Um profundo rancor de si mesmo por ter se esquecido de mantê-lo, mesmo que por apenas poucos segundos e um ressentimento gelado dirigido à nós por termos presenciado o momento. No momento seguinte ele já estava em pé e indo em direção ao fundo do ônibus, seu tom era ríspido quando latiu.
“Só minha família me chama de Kaliandrus. Pra vcs duas, é Kal.”
Mal tinha me refeito da surpresa quando escutei.
“Puta merda, Cassie!” Rafaela me olhava entre assombrada e irritada. “O que diabos foi isso?”
Eu ao menos tive a decência de gaguejar...
“Eu... ahn... eu... eu não... faço ideia.”
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