— A comida do Miguel está melhor! — Bia deu o veredito.
— Isso é injusto! Ela não é uma juíza imparcial — Marco retrucou.
— E começaram as desculpas! — Bia clamou com um sorriso triunfante.
Antes que Marco respondesse, eles foram interrompidos pelo som da campainha, um seguido do outro, demonstrando urgência. Marco correu até a porta e abriu-a para deparar-se com Ana.
— O Miguel tá aí? — a mulher perguntou sem sequer cumprimentá-lo.
— Como... Como você chegou aqui?
— O Daniel me passou o endereço.
— Ah — deduziu que Daniel era o pai de Miguel. — O Miguel tá aqui, mas não acho que queira falar com você. Ainda não.
Ana ignorou a fala de Marco e o empurrou, abrindo caminho e adentrando a casa com passos pesados.
— Miguel — falou ao ver o filho, o qual se ergueu da cadeira com um pulo.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntou. Sua pele logo ficou marcada com as linhas pretas.
— Miguel, me escuta. Por favor!
— Você não tem o menor direito de estar aqui! — gritou.
— Filho...
— Não! Esqueceu que eu sou uma aberração?!
—Mig...
— Eu não quero te ver. Não agora!
—Ana deu um passo em direção ao filho. Miguel fechou a mão em punho e socou a mesa de vidro a sua frente. Ela se desfez em inúmeros pedaços com um estrondo. Beatriz recuou.
Marco, que até o momento observava de longe, aproximou-se de Miguel. Ao pegar sua mão, foi brutalmente empurrado e caiu no chão. Suas mãos arderam e sangraram devido aos cacos de vidro.
Miguel arregalou os olhos. Olhou Marco caído e finalmente percebeu o que fizera. Abaixou-se e fez menção de ajudar Marco. Este, por sua vez, recuou da melhor maneira que pôde, o que lhe rendeu mais alguns cortes.
Miguel viu o terror nos olhos de Marco. Olhou para si mesmo e cerrou os punhos.
— Me desculpe — falou antes de sair da casa. Não foi capaz de olhar nenhum deles nos olhos, nem mesmo sua mãe.
— Marco, você tá bem? — Beatriz correu para o lado do irmão. Antes que recebesse uma resposta, ouviu Ana cair.
— O que eu fiz? O que eu fiz? — a mulher se indagava enquanto secava as lágrimas. — Eu... Eu perdi... meu filho...
— Eu... Eu tenho que ir atrás dele — Marco murmurou ao se erguer.
— Você perdeu a cabeça?! — Bia bradou. — Ele podia ter te matado!
— Não! De maneira alguma! Ele nunca...
— Nunca te machucaria? Olha pra você, Marco! A gente vai pro hospital. Agora!
— Encontra ele — Ana falou entre soluços. — Por favor. Ele não vai me ouvir.
— Jura? O que te fez perceber isso? — Beatriz perguntou irônica, a raiva perceptível em sua voz.
— Desculpem-me pela bagunça. Eu vou pagar pelo estrago.
— Não precisa. Agora pode ir embora — Bia tornou a falar, ríspida. Um arrepio percorreu a espinha de Ana e ela saiu.
Bia pegou um pano velho e deu a Marco para que contesse o sangue. Foram ao hospital. Alguns pedaços de vidro foram retirados da pele de Marco. Ambas suas mãos estavam enfaixadas, e havia alguns cortes menos profundos pelo corpo.
Enquanto Bia destrancava o carro e repreendia Marco, percebeu que ele não estava por perto. Xingou-o e voltou para casa furiosa, aguardando uma boa desculpa por parte de Marco.
***
Marco desceu do táxi no começo da floresta. Não precisou caminhar muito para encontrar Miguel. Ele estava caído no chão. Suas costas estavam ensanguentadas. A origem eram as escápulas, de onde as asas despontavam. Marco virou-o com cuidado e quase pulou ao vê-lo: presas saíam de sua boca, a qual também estava manchada de sangue,os chifres estavam presentes e toda sua pele estava preta, com a exceção de alguns raros pontos da cor morena da pele de Miguel. Ao tocar sua testa, percebeu que ele ardia em febre.
Marco chamou Miguel, mas ele não se mexeu. Marco apoiou-o sobre si e levou-o para a margem do rio. Rasgou a manga de sua blusa e encharcou-a, passando-a pelo rosto de Miguel.
Marco começou a se desesperar. Não sabia o que fazer com ele. O hospital definitivamente não era uma opção.
Com as mãos trêmulas, deixou o pano sobre o rosto de Miguel e acariciou seus cabelos. Aguardou.
Foi necessário pouco menos de uma hora para que Miguel acordasse. Ele se ergueu com dificuldade e olhou ao seu redor. Sua cabeça doía.
— Quantas vezes eu vou ter que falar pra você não fugir? —- Marco perguntou e, só então, Miguel percebeu sua presença.
— O que você tá fazendo aqui? — indagou ao recuar alguns passos. Sua visão caiu para as mãos enfaixadas de Marco. Arqueou as sobrancelhas e balançou a cabeça. — Eu não quero te machucar. De novo não.
Marco não pôde retrucar. Não tinha argumentos.
— Você é meu amigo! — disse por fim. — E, até onde eu vi, sou o único que você tem. Eu não vou te abandonar!
— Mas você tem que me abandonar. Eu... Eu não suportaria machucar mais alguém. Principalmente você.
— Por que você não escutou sua mãe? Ela queria te ajudar!
— Eu cansei, tá bom?! Eu pensei... Eu pensei que ela me amava. Ela sabe que eu já vivo um inferno por causa de tudo isso! Eu aguentei a superproteção dela minha vida inteira! Eu já sei que eu sou um fardo! Eu não preciso dela nem de ninguém me falando o que eu já sei! — ele precisou se controlar para não gritar.
— Você não é um fardo, Miguel. Ninguém pensa isso.
— Eu penso. Quer dizer que eu sou ninguém?
— Não... Não foi isso que eu disse.
— Mas eu te garanto que soou como isso!
— Miguel, por favor... Você é um anj...
— Não, Marco. Não! Não começa com isso! Você viu meu pai!
— E daí?! Até ele aparecer, você era humano, não era? Isso mudou do dia pra noite?
— Marco, me deixa em paz! — gritou. Seus orbes brilharam mais intensamente e Marco recuou alguns passos. — Por favor — dessa vez sua voz não passou de um sussurro.
— Não — sua voz estava firme, para sua própria surpresa. — Eu já falei que não vou te deixar.
Miguel arregalou os olhos. Aquilo era novo para ele. Alguém fora de sua família esforçando-se para mantê-lo por perto. Ele desabou no chão e permitiu que as lágrimas escorressem por seu rosto. Depois de uma vida inteira fingindo que era forte, fingindo não se importar por não ter amigos, se escondendo atrás de um muro que ele construíra ao seu redor, era estranho ter alguém genuinamente preocupado com ele.
Marco aproximou-se cautelosamente. Sentou-se ao lado de Miguel e o abraçou. Marco havia colocado uma porta no muro de Miguel, e, finalmente, Miguel destrancou-a.
— E eu também já falei que não vou correr, não falei?
Miguel apenas balançou a cabeça afirmativamente e envolveu seus braços ao redor de Marco, aninhando-se eu seu peito.
— O que eu vou fazer? — Miguel perguntou após alguns segundos. — Eu não quero falar com minha mãe. Ainda não.
— Seu pai ainda é uma opção.
— Parece que eu não tenho muitas opções — riu melancólico.
— A Bia não vai te deixar ir lá pra casa.
— Eu também não deixaria.
— Miguel... — acariciou seu rosto. — A gente vai dar um jeito, ok?
— Quando foi que isso aqui virou "a gente"? — perguntou com um sorriso.
— Quando a gente se conheceu? — corou.
— Isso foi uma pergunta ou uma afirmação?
— Uma pergunta?
Miguel riu. Marco deitou-se.
— Por que nós — fez questão de enfatizar a palavra — não aproveitamos a situação? Você tem asas! — Marco disse sem conseguir conter sua excitação.
— É por isso que você tá me ajudando? Pra tirar vantagem de mim?
— Claro que não! Quantas vezes eu vou ter que dizer isso?
— Desculpa! É só... É difícil pra mim... Confiar em alguém, sabe? Isso é meio novo pra mim.
Marco suspirou.
— Mas vamos dar um jeito nisso também, né? — perguntou quase com medo da resposta.
— É claro — Marco respondeu com um sorriso, segurou a mão de Miguel e o fez deitar ao seu lado. Massageou sua mão com o polegar. — Mas deve ser legal voar — disse baixinho. — Deve ter um gostinho de liberdade.
— Vou pensar — falou Miguel. — Prometo — beijou a mão de Marco e depositou-a sobre seu peito. Fechou os olhos.
— Não importa. Você estar bem e aqui já é o suficiente — sorriu e ergueu-se levemente, apoiando-se em seus cotovelos. Miguel fez o mesmo. Seus olhos se encontraram e ambos coraram. Sorriram bobamente. Aproximaram-se, tímidos, e selaram seus lábios. Separaram-se após poucos segundos e sorriram, ainda mais vermelhos do que antes.
— Tô começando a achar que você não é humano — Miguel disse. — Você deve ser um anjo porque eu me apaixonei por você no primeiro dia!
Marco parecia estar prestes a entrar em combustão.
— Você é tão fofo! — continuou Miguel. — Dá vontade de te apertar — riu.
Marco teria ficado mais vermelho se fosse possível. Escondeu o rosto no peito de Miguel, o qual acariciou seus cabelos.
Ficaram deitados por mais alguns segundos até que Marco levantou-se num pulo. Tirou sua blusa e jogou-a em cima de Miguel.
— Não vai entrar? — perguntou com um sorriso provocativo e jogou-se no rio.
Miguel apenas observou-o por alguns segundos. Aquele moço maravilhoso acabara de beijá-lo? Se fosse um sonho, não queria acordar.
Concluiu que ficou nesse transe por alguns minutos já que Marco estralava os dedos em sua frente com um olhar preocupado.
— Terra para Miguel! Terra para Miguel! Acordou? — perguntou quando os olhos de Miguel cravaram-se nos seus.
Miguel olhou-o, perdido e recebeu alguns respingos de água no rosto.
— Ei! — disse indignado. Marco apenas riu. — É assim, é? — perguntou ao retirar sua blusa. Entrou no rio e saiu correndo atrás de Marco. Quando o alcançou, levantou-o no colo e riu com seus gritos de protesto. Marco esperneou, mas não conseguiu esconder as risadas.
Miguel tinha planos malignos para Marco, mas esqueceu-os quando viu o seu sorriso.
— Posso te beijar? — perguntou e só então percebeu o quão bobo aquilo soava. Para sua surpresa, a resposta de Marco o fez esquecer esse fato.
— Não precisa perguntar — disse com um sorriso e levantou a cabeça levemente.
Miguel não aguardou mais nada. Beijou Marco como se não houvesse amanhã. Marco retribuiu o beijo e entrelaçou os dedos sobre a nuca de Miguel. Separaram-se apenas quando o ar faltou em seus pulmões.
— Você é tão perfeito! — foi a única coisa que Miguel conseguiu dizer.
Marco corou e tentou esconder o rosto no peito de Miguel.
— Não sabia que você era tão pesado assim — Miguel debochou. Marco fingiu estar indignado, mas acabou rindo.
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