Darl acordou.
A primeira coisa que sentiu foi a sensação de algo espetar seus braços e costas — a familiar palha de sua cama.
A noite anterior havia sido nada além de um sonho. Um péssimo sonho.
Queria apenas deixar seu corpo relaxar e aproveitar o fato de que a realidade não era tão cruel como a fantasia.
Mas não conseguia relaxar. Estava tenso demais, como se algo dissesse-lhe que não se veria em casa quando abrisse os olhos. Sentia-se pesado, como se uma grande pedra descansasse sobre seu corpo.
Resistia a tal, mas estreitamente abriu seus olhos. Ainda com a visão fraca, avistou um teto de madeira.
Darl vivera toda sua vida nos bosques com os pais em um casebre cujo teto via toda dia. Todo seu conhecimento sobre o mundo exterior viera de histórias.
Mas algo estava definitivamente diferente.
O teto sobre sua cabeça não era o de seu lar, nem a cama sob seu corpo era conhecida.
Com um pouco de esforço, o garoto ergueu seu tronco e sentou-se. Sua visão tão ofuscada quanto sua mente. Piscou algumas vezes para nenhum resultado.
Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. Talvez não esperasse apenas que sua visão focasse, mas também que, quando abrisse os olhos novamente, a cabana estranha desse lugar ao seu lar outra vez.
Mas quando os abriu, nada mudou.
Esforçou-se para compreender seus arredores. Avistou janelas, uma lareira, uma mesa cercada por cadeiras.
Em toda sua vida, Darl havia conhecido o interior de apenas uma casa, e não era esta.
As janelas estavam fechadas e a lareira apagada, mas luz do sol entrava pelas brechas entre as madeiras do teto e janelas. Era o bastante para ter uma boa visibilidade do interior.
O garoto girou o corpo para se pôr de pé, mas uma dor perfurou sua perna, forçando-lhe a cessar seus movimentos.
Quando olhou para o membro, notou que tinha o tornozelo enfaixado. Estava claro que os eventos da noite anterior não haviam sido apenas um sonho.
Os lobos eram reais. O sangue era real. O fogo era real.
Um estranho ranger ecoou na até então silenciosa casa.
A porta à sua frente abriu. Contra o brilho ofuscante do outro lado da casa, a silhueta de um homem alto com um machado na mão foi revelada.
A primeira reação que Darl pôde ter foi apenas a de tentar fugir. E rápido. Mas para onde?
Sem tempo a perder com dúvidas, e igualmente com qualquer raciocínio minimamente sensato, tentou colocar-se de pé. A dor, entretanto, fez seu trabalho de atrapalhar a movimentação do garoto novamente.
Incapaz de manter o equilíbrio, Darl tentou impedir sua queda agarrando-se a uma cadeira próxima. Mas conseguiu apenas cair junto a ela.
— Mal acorda —, com um suspiro, queixou-se o homem. — e já bagunça minha casa.
Sua voz, apesar de grave, não trazia qualquer animosidade. Parecia expressar mais alguma forma de decepção com o que via.
Ele coçou a cabeça com a mão livre. Então lentamente caminhou adiante e deixou o machado apoiado à lareira. Aproximou-se de Darl, que tentava desesperadamente se levantar, curvou o corpo para frente e estendeu a mão.
— Não precisa ter medo, garoto. —, seu tom de voz não era exatamente o de alguém que tentava tranquilizar uma pessoa, mas de impaciência. — Vamos, segura minha mão.
Mas Darl hesitou.
Estava assustado, mas raciocinava bem o suficiente para saber que não corria mais perigo.
Ainda assim, hesitou.
Era a primeira vez em sua vida que via algum ser humano além de seus pais — um que ainda respirava, ao menos.
Estava diante de um homem alto e de espessa barba. Sua expressão era séria e rígida, mas nada hostil. Sua silhueta era forte, mas não violenta. Sua voz era grave, mas não opressora.
Ainda assim, Darl ainda não conseguia obrigar a si mesmo a segurar a mão do homem.
Todo o esforço para lhe levantar seria feito pelo homem. Darl não precisaria usar as próprias forças. Precisava apenas aceitar a ajuda. Essa seria a única atitude que devia ser tomada, mas nem essa foi.
Sem esperar mais por uma resposta, o homem barbudo segurou o pulso do garoto e pôs-lhe de pé. Então lhe deu o apoio necessário para, mesmo com um tornozelo ferido, andar de volta para a cama coberta de palha.
Em seguida, pegou a cadeira caída e posicionou-a em frente à cama. Então sentou sobre ela e fitou o garoto com seus olhos frios.
Apesar da hesitação, não houve qualquer resistência por parte de Darl. Ele não encontrava a determinação para se posicionar a favor, e nem contra.
— Então, foi você quem matou aqueles lobos, garoto? —, o homem friamente questionou. Seu tronco curvado para frente e mãos juntas. Seus olhos atentos pareciam analisar cada polegada do corpo de Darl. — Você tinha as mãos cobertas de sangue e tenho a impressão que matou um deles com apenas elas. Não se vê crianças assim todo dia. Foi você?
— S-Sim, senhor. —, ainda relutante, Darl simplesmente respondeu. — Foi... por instinto, eu acho.
O garoto tentou pensar em uma justificativa crível para o corrido. Mas a verdade era que nem mesmo ele sabia exatamente o que havia acontecido.
— Difícil de acreditar... —, parecia haver um pouco de decepção no rosto do homem. — Você parece mais inofensivo que um rato. De qualquer forma, de onde você veio?
O palavra "onde" continha pouco significado para alguém cujo mundo resumia-se a poucos pés quadrados.
— Não sei dizer... Onde... é aqui?
Não era como se Darl soubesse a qual parte do mundo a floresta onde vivia pertencia, mas devia responder de alguma forma, mesmo que com outra pergunta.
— Nouwer —, o homem barbudo respondeu. —, uma cidade khanlofiana.
Nenhum desses nomes possuía qualquer significado para o garoto, que continuava tão perdido quanto antes.
— Não sei dizer. —, Darl apenas deu a mesma resposta, desprovido de qualquer alternativa além da sinceridade. — Moro em uma casa no bosque... Não vi pra qual direção corri.
— Como imaginei. —, lentamente, o homem assentiu para si mesmo. — Estava correndo dos lobos?
A existência das feras e o fato da fuga não lhe eram mais questionáveis. Ainda assim, os acontecimentos que precederam aquilo não podiam ser reais.
Mas ali ele estava, em uma casa desconhecida, diante de um homem estranho que parecia querer saber sobre cada acontecimento de sua vida.
Naquele momento, seu lar não devia ser mais que um monte de carvão e cinzas sopradas pelo vento.
Quanto mais se dava conta da realidade, mais queria negá-la.
Talvez esta tenha sido a única razão para os olhos do garoto não haverem sucumbido em lágrimas ainda.
Com um longo suspiro, o homem cruzou os braços e relaxou as costas à cadeira. Apenas então Darl deu-se conta de que deixara a última pergunta sem uma resposta.
— Qual é o seu nome, garoto? —, com os olhos ao teto, o homem barbudo fez outro questionamento.
— É Darl... senhor.
— "Darl"... —, coçou sua negra barba, pensativo.
— "Darldollum", na verdade... Mas só "Darl" é... mais fácil.
— Certo.
O homem tinha o olhar ainda focado no teto sobre suas cabeças, do qual poucos e fracos raios solares eram capazes de passar por suas brechas.
— Darl, você tem família? —, com a mesma frieza de antes, voltou a perguntar.
Não poderia haver uma pergunta mais simples, mais direta. Só existiam duas respostas possíveis.
E foi essa mesma simplicidade que perfurou o coração do garoto, que lhe trouxe de volta para a realidade sobre a qual preferia esquecer.
Darl não podia dizer "sim", mas também não podia dizer "não". Podia apenas abaixar ainda mais a cabeça e escondê-la entre os braços.
Seu coração, finalmente, pareceu aceitar a verdade diante de seus olhos.
— Entendi. —, o homem disse com uma serenidade quase insensível. — Você tem mais em comum conosco do que a maioria poderia imaginar.
Darl sentiu algo tocar seu ombro.
Seus olhos, cobertos de lágrimas, levantaram-se, e identificaram ser a mão do homem à sua frente.
— Meu nome é Gundar. Apesar do que aconteceu com sua família, Darl, quero que se considere com sorte. Fui eu quem te encontrou na floresta essa manhã, e agora assumo a responsabilidade por você. Vou dar um jeito de não me encrencar com isso, mesmo que tenha que barrar a porta e as janelas.
Sua expressão era rígida e séria, assim como sua voz.
Ele levantou da cadeira, virou-se de costas e encarou o teto de braços cruzados novamente.
— Esse vai ser um novo início para você, Darl. —, seu tom agora alto destacava a o quão grave era sua voz. — Yahlov pode ter te poupado, mas toda graça precede mais luta, e agora você está sob a responsabilidade de um soldado. Não precisamos de mais pessoas nas fazendas, e duvido que alguém possa te ensinar a ser um artesão. Mas você deve, como decretou o rei, servir a Nouwer de algum modo.
Gundar, então, virou-se para o garoto e continuou a falar, embora seu ouvinte não estivesse em condições de tentar compreender aonde queria chegar, ou mesmo com a disposição para acender qualquer chama de curiosidade.
— Qual é sua idade, Darl?
— O-Onze invernos... senhor.
— Então tenho um pouco mais de um ano pra te preparar. Você será um soldado, Darl, e lutará as guerras de Nouwer e seu rei, queira você ou não.
Suas palavras pareciam implicar uma grande responsabilidade, mas, ainda assim, de alguma forma, sua voz não parecia condizer com ela.
— Está preparado para a mudança?
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