— Quando eu sair —, Gundar disse, com a mesma séria expressão que mantivera todos os dias. —, bloqueie a porta com uma cadeira, como eu ensinei.
Após dar a notícia de que deveria partir a uma caçada com outros soldados e caçadores, estivera a passar a Darl longas instruções sobre como agir em sua ausência.
— Aquela janela leva aos fundos. —, o soldado continuou, enquanto apontava para a única janela da casa que não havia bloqueado com tábuas. — Ela é sua rota de fuga.
Ela levava a uma pequena área cercada por peças de madeira justapostas, isolada do exterior. A não ser que alguém pisasse sobre um apoio, não poderia ver por cima dela.
Era lá que estava o poço, a latrina, e também o local onde Gundar ensinara ao garoto os básicos de espada com escudo e arco e flecha. Aparentemente, as armas mais comuns no campo de batalha eram lanças, mas não eram a melhor opção em autodefesa.
Ainda assim, se Darl deveria tornar-se um soldado no futuro, aprender a usar a lança parecia uma opção tão razoável quanto as outras.
— Quando eu voltar, vou bater na porta quatro vezes e depois seis vezes, e repetir até você abrir. —, na mesa ao lado, simulou as batidas com os nós dos dedos. — Mesmo que alguém com uma voz parecida com a minha chame, não abra a não ser que bata como eu. Entendeu?
— S-Sim!
Em seu nervoso assentimento, Darl foi apenas parcialmente sincero. O soldado passava-lhe tantas instruções que era difícil manter o foco.
Na realidade, o garoto não entendia qual era a razão para ter tanto cuidado, mas não ousava questionar. Nem mesmo tivera a chance de ver a cidade — local repleto de casas e pessoas, de acordo com Gundar — apesar de, tecnicamente, morar nela há uma lua inteira.
Talvez as pessoas apenas fossem hostis com membros de outras famílias. O soldado mencionara em algum momento que o rei Honir Nouwer com sua família, a Família Real, governavam a cidade de Nouwer. O que era permitido e proibido era ditado por eles.
Parecia plausível a conclusão de que a cidade dividia-se em famílias. Talvez a de Gundar em especial mantivesse relações complicadas com as demais. E, talvez por razões semelhantes, os pais de Darl houvessem fugido para os bosques, onde viveram desde que o garoto tinha memória.
Em um momento, a porta bateu quatro vezes. Em seguida, mais seis.
O garoto trocou olhares com o soldado que, estranhamente, não parecia surpreso. Gundar deveria ser a única pessoa a bater na porta dessa forma, mas ele estava diante de Darl neste exato momento.
O soldado virou-se e caminhou até a porta, durante o tempo em que as mesmas quatro batidas repetiram-se e, nas próximas seis, já estava parado diante da porta. Quando girou a maçaneta, uma esguia silhueta revelou-se, em contraste com a robusta forma do homem que abrira a porta.
— Tá na hora, Gundar. —, suas casuais palavras ecoaram.
Seus olhos caminharam para o interior da casa, até pararem em Darl. Provavelmente por notar isso, Gundar virou-se também enquanto fazia um gesto para o novo visitante, convidando-o para dentro.
Quando o recém-chegado entrou, o dono da casa imediatamente fechou a porta. Após girar a chave, andou em direção ao confuso garoto.
— Esse é Rhaffur. —, finalmente, Gundar apresentou o visitante. — Ele é um soldado também, e voltou pra cidade faz pouco tempo, então não teve a chance de aparecer antes.
Com exceção do porte físico, os soldados possuíam poucas diferenças. Tinham por volta da mesma idade, o mesmo cabelo curto e a mesma negra barba, além de exercerem a mesma profissão.
Por um momento, quase pareceram ser a mesma pessoa.
— É um prazer, Darl. — Rhaffur disse.
Então, com uma simples expressão, mais uma diferença ficou clara — uma que fez ambos parecerem pessoas completamente diferentes: ele sorria.
Seus olhos pareciam cansados e havia algumas rugas por seu rosto, mas, ainda assim, a curva que seus lábios faziam passava alguma forma de conforto quase esquecido.
Era como um calor levemente nostálgico.
— Basicamente —, Gundar adicionou. —, ele é a única pessoa de mim que você deve confiar.
E Darl queria mesmo confiar naquele homem.
Talvez fosse um pouco egoísta, já que fora Gundar a pessoa que lhe acolhera. Contudo, enquanto este era seguido por um frio e rígido ar, era possível sentir simpatia por Rhaffur desde o primeiro momento.
— Como já falei, vamos sair numa caçada pelos bosques. —, o robusto soldado continuou. — Voltamos essa tarde. Então só fique alerta até lá, e faça como te ensinei, se precisar.
— Bem, hoje vai ter carne na janta. Até um tempo atrás isso era um luxo dos nobres. Acho que a gente tem que agradecer pelas fazendas não darem mais conta.
O comentário de Rhaffur veio com um dar de ombros e um pouco do que talvez pudesse ser considerado sarcasmo.
A resposta de Gundar, porém, foi um veloz olhar.
Apesar da dificuldade para entender as expressões de um homem sempre com o mesmo rosto, aquele aparentava ser um olhar reprovador.
Ao notar os olhos do amigo sobre si, a reação de Rhaffur foi arregalar os seus próprios. Sua boca abriu como se estivesse para dizer algo, mas se fechou logo em seguida. Ele desviou o rosto para o chão e coçou a cabeça. De alguma forma, parecia ter dito algo que não devia, mas Darl não tinha a mínima ideia de o que seria.
— Temos que ir. —, por fim, vieram as frias palavras do outro soldado.
— Sim, sim.
Sem qualquer cerimônia, Gundar virou as costas e andou até a saída, seguido pelo amigo.
Enquanto passava pela porta novamente aberta, Rhaffur virou-se brevemente para trás e acenou para Darl. Antes do garoto ter qualquer chance de responder, retornou sua atenção ao caminho, e a porta logo foi fechada.
E o solitário silêncio sussurrou novamente.
Aquela porta, aberta e fechada várias vezes durante o dia, era tudo que separava Darl de um mundo jamais visto antes.
Ele vivera toda sua vida em um universo que se resumia a uma cabana e intermináveis árvores para onde quer que se olhasse. A curiosidade sempre estivera presente, mas o medo era maior.
Florestas eram o lar de animais assustados e inofensivos, mas também de lobos, javalis, ursos e, em suas partes mais profundas, de criaturas de vários nomes e hostilidade em igual quantidade. Darl nunca ousara aventurar-se por tais perigos; limitava-se a deixar seus curiosos olhos perderem-se no horizonte verde.
Há uma lua, entretanto, o mundo do garoto transformara-se em uma casa e um quintal de fundo. Seus olhos não podiam mais viajar pelo horizonte, pois encontravam apenas paredes, janelas barradas e, através da única ainda aberta, uma cerca de madeira.
Mas a porta à sua frente ainda podia ser aberta.
Se a maçaneta fosse girada e puxada só um pouco, uma fenda abriria. Através dela, um olho poderia espiar um novo mundo em plena segurança.
Ou talvez Gundar ainda estivesse no outro lado aguardando, pronto para lhe repreender pela arriscada curiosidade; mas o pensamento era ridículo.
Os soldados já deviam estar bem longe. Não haveria qualquer risco.
Com a consciência em harmonia, o garoto andou até a porta fechada. Seus passos sobre as tábuas no chão ecoavam na casa vazia, alguns seguidos pelo ranger das peças nas quais pisava.
Após suas pernas concluírem seu trabalho, era hora de sua mão fazer sua parte.
Seus dedos envolveram a maçaneta. Fora tocada recentemente, e o verão ainda não havia acabado, mas seu metal estava frio.
A mão de Darl girou. Com ela, a maçaneta.
Um estalo foi ouvido claramente, como era comum. Repetidas vezes o mesmo som fora ouvido quando o soldado entrava e saía da casa, mas poder ouvi-lo como produto de suas próprias ações pareceu completamente diferente.
Com o coração rápido como não batia há semanas, o garoto puxou a maçaneta que já não parecia tão fria ao toque.
Mas ela não se moveu.
Darl certificou-se várias vezes de que girava a maçaneta completamente, mas a porta ainda não abria. Até mesmo tentou empurrá-la em vez de puxar, mas nada mudava.
Ele apenas então compreendeu que, na verdade, a porta estava trancada.
Diferente de sua antiga casa, cuja tranca era um pino de madeira que podia ser puxado para o lado, e apenas pelo lado de dentro; uma fechadura podia ser aberta e fechada de ambos os lados, apenas com a necessidade de uma chave.
Frustrado consigo mesmo, por não haver considerado o detalhe antes, e com Gundar, por ter trancado a porta, Darl resignou-se. Seus ombros caíram com um suspiro, acompanhados por sua cabeça. Dela, também caiu sobre seus olhos uma franja ruiva não cortada há algum tempo.
Seu cabelo era da cor do sol do anoitecer, e da lareira que mantinha ele e sua família aquecidos durante as noites. Também era da mesma cor do cabelo de seu pai.
Darl evitava remoer o que fora deixado para trás, e tentava pensar que teve sorte em ser encontrado por Gundar, como o próprio soldado dizia. Mas sempre que olhava para seus claustrofóbicos arredores, questionava-se. Talvez pudesse haver sido sorte maior partir com seus pais ao próximo mundo. Assim não haveria encontrado os lobos.
Ou manchado suas mãos com sangue.
Sempre fora curioso sobre o que havia no exterior. Na primeira mudança, contudo, apenas fora levado a um mundo menor e só não tão sufocante quanto suas memórias.
Apesar da cabana na qual vivia com seus pais haver sido menor que esta casa, existia a opção de caminhar ao redor em seu exterior, observar a floresta e, ocasionalmente, sair acompanhado para um pouco mais longe.
Quando pensava em coisas do tipo, lágrimas costumavam escorrer por seu rosto. E este momento não foi diferente.
Mas, a este ponto, o garoto já possuía formas de desviar sua mente de coisas do tipo. Uma delas consistia em morder a própria língua até que a dor gritasse mais alto que a angústia.
Novamente, funcionou.
Talvez o fato de sua língua permanecer latejante por alguns instantes pudesse tornar-se um empecilho quando falar fosse preciso, mas Darl raramente dizia alguma palavra fora as necessárias para concordar com as de Gundar.
Então um detalhe retornou à memória.
Darl foi até a mesa e pegou uma cadeira. Levou-a até a porta e fez como instruído pelo soldado: inclinou-a e, com a cadeira de costas para porta, deixou o encosto sob a maçaneta.
Com o todo o trabalho para o dia concluído, pouco restava para se fazer.
O garoto caminhou em círculos pela sala de estar. Após contornar a mesa três vezes, seus olhos focaram-se em uma janela. Era a que ficava na parede oposta à porta, a mesma que levava para os fundos — e também a única possível "rota de fuga".
Ainda estava fechada. Darl andou até ela e empurrou suas abas. Elas não se moveram, mas a razão logo ficou óbvia: estava trancada.
Já habituado de alguma forma com o dilema, o garoto puxou o pequeno pino que mantinha a janela fechada e empurrou suas abas novamente.
Um brilho cegante tomou conta de sua visão.
Ele protegeu os olhos com os braços por alguns instantes, até poder julgar-se adaptado à mudança de luminosidade. Ainda era cedo, mas o sol brilhava forte no lado de fora.
A imagem que se formou foi a do já bem conhecido quintal dos fundos. Poucos passos adiante, além do poço, erguia-se um muro de peças justapostas de madeira que atiçava a curiosidade.
O garoto debruçou-se sobre o peitoril da janela pela qual já pulara várias vezes. Ainda era estranho pensar que usara a janela várias vezes para ir ao quintal cercado, mas jamais a porta.
Quanto mais pensava sobre, mais Darl concluía que o senso de segurança de Gundar cruzava a linha da paranoia. Mesmo assim, não ousava questionar os motivos do soldado.
Contudo, a curiosidade parecia falar mais alto ao passar de cada segundo.
Com o tempo a seu favor, Darl virou-se de volta para dentro e andou até a mesa. Pegou mais uma cadeira, arrastou-a até a janela e, com todo cuidado possível, ergueu-a. Após cruzar o vão da janela, lentamente pôs a cadeira no chão do outro lado. Então ele mesmo pulou para o lado de fora e carregou a cadeira até o muro.
Talvez até mesmo um adulto de pé não fosse alto o bastante para ver por cima do cercado. Darl, porém, com seus quase doze invernos de idade, mais a altura da cadeira, devia ser capaz.
Ele pôs um pé sobre a cadeira. Com uma mão apoiada no encosto do assento e outra no próprio muro, preparou-se para saltar. Com a força em seu joelho flexionado, impulsionou o corpo para cima.
Por um instante, esforçou-se. Foi possível ver o topo do muro aproximar-se. Darl seria capaz de finalmente ver o que havia além daquele pequeno mundo cercado por quatro paredes.
Poderia vislumbrar o que realmente era a cidade de Nouwer.
Então, junto a um estalo, veio o sentimento de leveza.
O topo do muro deu lugar a um céu azul.
Quando Darl deu-se conta do que acontecia com seu corpo, suas costas já se colidiam com o duro chão.
A dor veio apenas depois do susto.
Apesar de tudo, sua cabeça não havia atingido o chão com força, e o que mais incomodava eram suas costelas. Mais lágrimas acumularam-se em seus olhos. Porém, como a dor estava longe de ser debilitante, o garoto pôs-se sentado.
Enquanto limpava a areia de suas roupas, seus olhos encontraram uma cadeira caída. O pior de tudo, entretanto, levou um pouco mais de tempo para ser notado.
A cadeira tinha uma das pernas quebrada.
Por alguma razão, no momento em que Darl impulsionava seu corpo para cima, uma das pernas do assento partira-se.
Desta vez ele realmente fizera algo que não deveria. Se Gundar não poderia reprimi-lo pela curiosidade, certamente iria pela cadeira quebrada.
O garoto aproximou-se do objeto e analisou melhor o dano.
Apesar de quebrada, a parte solta da peça ainda se mantinha ligada à cadeira por um estreito conjunto de fibras de madeira. Era como uma peça de tecido rasgada a ponto de se partir em duas.
Darl colocou a cadeira de volta de pé e pôs a parte rompida de sua perna onde costumava estar. Quando deixada assim, a cadeira ainda permanecia no lugar.
Aliviado até certo ponto, concluiu que o melhor a se fazer quanto ao incidente seria fingir que nunca sequer acontecera.
O garoto retornou a cadeira ao seu lugar à mesa, dentro da casa. O que viria a ser dela ficou nas mãos do destino.
Após as consequências não tão agradáveis dos seus últimos impulsos curiosos, Darl optou por uma atitude mais passiva para o resto do dia.
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