À tarde, sentou-se diante da lareira. Estava apagada, como de costume durante os dias. Ainda assim, era um local que transmitia um certo conforto a seu coração agitado.
Era um pouco irônico, considerando que sua mente sempre viajava grandes distâncias, enquanto a lareira trazia um horizonte que acabava logo em sua frente.
E talvez ainda mais irônico fosse o fato de a lareira ser um local onde dançavam as chamas que queimavam a lenha — destino pouco diferente de sua antiga casa.
Talvez a lareira devesse trazer as últimas memórias de seu lar, que ruíra em chamas em uma noite uma lua atrás. Em vez disso, parecia trazer algum tipo de serenidade.
Esteve apagada desde cedo, e a lenha semiqueimada já devia estar completamente fria. Mas era como se algum tipo de calor emanasse dela.
Um calor convidativo.
Quatro batidas vieram da porta.
Os ouvidos de Darl puxaram-lhe de volta à lucidez. Em seguida, mais seis batidas foram ouvidas.
Não havia dúvida — era Gundar.
O garoto levantou-se e andou apressadamente até a porta. Enquanto retirava a cadeira que deixara apoiada sob a maçaneta, ouviu mais quatro batidas.
Talvez fosse apenas paranoia, uma cautela impensada, mas seu corpo cessou seus movimentos. Ele queria ouvir as próximas seis batidas, para ter completa certeza de que era a pessoa certa na porta.
E elas vieram novamente.
Darl retirou a cadeira do lugar e andou para trás. Talvez Gundar tivesse ouvido seus passos ou o som que os pés da cadeira fizeram ao tocar de volta o chão à mesa, porque a porta logo foi aberta.
O familiar rosto do soldado, rígido como uma rocha, entrou na casa. Em sua mão, havia uma sacola. Não foi necessário muito raciocínio para concluir que continha os espólios da caçada.
Gundar fechou a porta atrás de si, trancou-a e deixou a chave na fechadura.
— Hm...? —, após se virar, pareceu haver-se deparado com algo fora do comum. — Acendeu a lareira sozinho?
— Hã? Mas eu nã...
Quando os ouvidos de Darl notaram um estranho crepitar, e sua pele um distinguível calor, interrompeu sua confusa resposta. Virou-se para a lareira, e assim confirmou um fato difícil de se crer.
Como Gundar havia dito, a lareira estava acesa. Chamas dançavam graciosamente sobre a lenha, como se houvesse absolutamente nada fora do comum.
— A caçada foi boa hoje. —, o soldado pôs a pesada sacola sobre a mesa, alheio à confusão interna do garoto. — A gente vai dividir essa carne pelos próximos dias.
Sem puxar a cadeira antes, provavelmente por já estar um pouco deslocada, Gundar sentou-se à mesa.
Até mesmo Darl já havia esquecido, mas aquela era a mesma cadeira envolvida no incidente mais cedo, e estava com uma perna quebrada.
Antes mesmo do baque ser ouvido, o garoto fechou os olhos.
...
— Nouwer fica um tanto no meio do nada, e é nada se for comparar com os reinos maiores por perto. —, o amigo de Gundar explicava com certo entusiasmo. — Só que, na verdade, costumava ser uma posição bem importante na Guerra dos Dois Impérios.
Desde a primeira caçada com Gundar, Rhaffur passara a frequentar sua casa com certa frequência. Nas ocasiões em que o primeiro precisava passar um longo tempo fora de casa, várias vezes fora deixado com o amigo o dever de permanecer na casa com Darl.
Todas as vezes que Rhaffur vinha, compartilhava ao menos uma história com o garoto. Outra diferença em relação ao amigo que se tornou evidente em pouco tempo foi seu senso de humor.
Darl já havia completamente se esquecido do fato de que era possível rir de uma piada.
O outono já havia chegado, e com ele a melancolia das folhas amareladas que caíam pouco a pouco na espera do iminente inverno. Contudo, quando Rhaffur estava presente, tal sentimento podia ser esquecido.
— "Dois Impérios"? —, questionou Darl, com a sobrancelha levantada. Estava diante de mais um termo que jamais ouvira.
— Não conhece eles? —, o soldado parecia surpreso. — Então ouve bem. O Oeste hoje é dividido em muitos reinos. Só Yahlov sabe quantos! Mas antes só tinham dois: o de Khanlof, no meio do mundo, onde a gente tá, e o de Gundord, junto da costa.
— "Costa"...?
— Só ouve! Esses dois impérios entraram em guerra em um momento. E eu sei que você quer perguntar "por quê?", e eu respondo: "porque todo monarca quer as terras do vizinho". E quem venceu? Khanlof, que era mais forte. Mas a vitória não durou muito tempo, porque logo depois o império se desfez. Por quê? Porque os nobres também querem a terra um do outro pra si.
— Hã...?
— O tempo dos impérios acabou, mas Nouwer, que começou só como um forte numa encruzilhada e virou uma cidade na época do Khanlof Décimo-Quarto, foi tomada por um nobre khanlofiano, que virou rei. Foi o bisavô do nosso rei atual, Honir.
Talvez fosse fato que Darl era frequentemente incapaz de acompanhar as histórias de Rhaffur, mas isso não lhe incomodava muito. O energético soldado era capaz de ocupar sua mente, e isso era tudo que podia desejar.
— Aliás, já te contei por que Nouwer tem esse nome?
— Hmm...? Acho que não.
— É meio ridículo, mas ouve só!
...
Ao fim daquele dia, Gundar retornou.
Ele não entrou na casa de imediato. Em vez disso, parado à porta, fez um gesto a Rhaffur. Quando o olhar do soldado sentado diante de Darl retornou ao garoto, já não era mais o mesmo.
— Parece que tenho que ir. —, sua boca sorriu enquanto falava, mas seu sorriso não parecia espalhar-se mais longe que isso. — Até algum outro dia!
Rhaffur levantou-se e andou até Gundar. Em silêncio, como se pudessem entender um ao outro sem o uso de palavras, ambos os soldados foram para o lado de fora. A porta logo se fechou atrás deles.
Deviam estar conversando sobre algo importante, mas Darl não conseguia ouvir suas vozes de onde estava. Talvez pudesse se tentasse aproximar-se da porta, mas decidiu não tentar satisfazer sua curiosidade outra vez.
Após um tempo longo o bastante para um leve sentimento de preocupação levantar-se, a porta foi aberta novamente. Apenas Gundar entrou, e aparentava estar mais mal-humorado que o normal.
Sem qualquer palavra, seguiu para o pequeno armário ao lado da lareira. Seu silêncio não era exatamente incomum, mas algo parecia agravar a tensão.
Abriu uma gaveta e dela retirou uma tesoura e um pedaço cinzento do que já fora um branco tecido de algodão. Andou até lareira, diante da qual se ajoelhou e pôs os objetos no chão ao lado, junto a outros que ali já estavam.
Uniu as palmas das mãos e fechou os olhos, em prece.
Darl, que apenas observava, esticou o pescoço para ter certeza se havia palha suficiente para começar o fogo.
Várias vezes Gundar, já ajoelhado, notara que a palha havia acabado no dia anterior, e pedira ao garoto que trouxesse um punhado a ele. Desta vez, contudo, havia sobras suficientes.
Após abrir os olhos, o soldado recolheu o pedaço escurecido do tecido-carvão, deixou-o sobre a base de pedras da lareira e pegou a tesoura.
Com o polegar, fez medidas rápidas — porém provavelmente precisas, dada sua experiência — e cortou o tecido cinzento.
O tecido, uma vez branco, havia sido previamente carbonizado posto sobre as chamas dentro de um recipiente de barro com um furo no fundo e um na tampa. Desta forma, o algodão tornava-se escuro, e também muito inflamável.
Tal processo, chamado Rito do Duodécimo, era repetido a cada exatos doze dias.
Com o pedaço do tecido inflamável cortado, Gundar recolheu dois objetos que sempre estavam à lareira: uma pederneira e uma peça de aço curvada e dobrada sobre si.
Sobre o pedaço de tecido-carvão, Gundar chocou a peça de aço e a pedra. Faíscas voaram. Foi necessário repetir o atrito apenas algumas vezes até as faíscas iniciarem pequenas chamas na superfície do pano cinzento.
Em seguida, aos poucos, o soldado adicionou palha às chamas. Quando o brilho vermelho que irradiava do punhado tornou-se suficientemente grande, e espessa a fumaça escura que dele brotava, transferiu a palha para o centro da lareira.
Enquanto o fogo crescia, mais palha era acrescentada. Então foi a vez de adicionar a primeira camada de lenha, sobre a qual foi empilhada a segunda, e a terceira, com peças progressivamente mais finas e, por fim, uma camada de gravetos.
Com a lareira pronta e acesa, Gundar juntou as mãos e fechou os olhos outra vez.
Falta de lenha jamais seria um problema — afinal, Nouwer era uma cidade cercada de grandes bosques. Ainda assim, a lareira não queimava o dia inteiro. Ela era acesa todas as tardes e mantida até o momento que iam dormir. Pela manhã, o fogo já havia extinguindo-se, e permaneceria assim até a tarde.
Fazer fogo era uma atividade ritualística.
A razão disso Darl ouvira de Rhaffur.
Os homens vieram dos céus, criados da água e das nuvens pelo Pai, cujo nome fora esquecido há muito tempo.
Nos primórdios da humanidade, os Filhos do Pai ostentavam asas. Era-lhes permitido os Céus, mas apenas durante o dia, pois sua vitalidade vinha do sol. À noite, suas forças deixavam-lhes e podiam apenas adormecer no perigoso e frio solo.
Os homens não aceitaram tais condições, e pediram a seu Pai pelo sol eterno. Como resposta, receberam um par de pedras.
Incapazes de compreender seu presente, no dia seguinte, fizeram seu pedido outra vez, que foi novamente recusado. Após haverem repetido o mesmo doze vezes, em doze dias, eventualmente despertaram a fúria do Pai sobre seus Filhos.
O resultado disso foi a remoção de suas asas, e a condenação ao solo dia e noite.
Diante da situação deplorável dos homens, o deus Yahlov acolheu-lhes.
Yahlov, o Padrasto, fez um acordo com o Pai: ele ensinaria aos homens o Caminho da Virtude. Se os homens fossem bem-sucedidos em sua aprendizagem, teriam suas asas e seu lugar nos Céus devolvidos.
Assim, Yahlov deu-lhes mãos para que trabalhassem e construíssem seu caminho à Virtude e aos Céus.
O primeiro uso dado a suas mãos foi, com as pedras recebidas pelo Pai, fazer fogo. Com ele, os homens poderiam proteger-se dos perigos do solo, além de se aquecer durante as noites.
Desde então, sempre que o sol esteve baixo no horizonte, lareiras eram acesas.
Após alguns instantes de joelhos, Gundar levantou-se. Contudo, não se virou. Apenas continuou de frente para o fogo, em silêncio.
Dificilmente Darl reunia coragem para dizer algo a Gundar, e mais raramente ainda arriscava questioná-lo a respeito de ago.
Contudo, talvez por Rhaffur haver partido há pouco tempo, e ainda estar com um pouco do otimismo passado por ele, Darl conseguiu levantar a voz.
— Gundar... —, ele timidamente chamou.
Ainda assim, o soldado não respondeu. No mesmo instante, o garoto arrependeu-se de sua escolha. Porém, no momento, o silêncio parecia sufocador demais.
— Aconteceu alguma coi...
— Rhaffur e eu partiremos em alguns dias. Não vamos estar nas linhas de frente, pelo menos, mas precisam de mais mantimentos e guardas para o acampamento.
— Ah...
Apesar do quão direto fora, Gundar parecia, de alguma forma, hesitante. Era como se houvesse algo mais a ser dito, e mais problemático. Mas sua partida, de toda forma, já seria um grande problema.
O garoto questionou-se sobre a situação que ficaria após a partida de ambos os soldados. Afinal, sempre que Gundar partia por muito tempo, Rhaffur ficava com ele. Mas Darl não precisou transformar seus pensamentos em palavras.
— Você vai junto. —, disse o soldado barbudo, que finalmente se virou para encarar o ouvinte. — Agora presta muita atenção no que vou dizer. Vou te levar amanhã e te apresentar ao líder da expedição. Isso significa que você vai andar pela cidade. Então fique do meu lado e olhe sempre pra frente.
Darl apenas assentiu enquanto Gundar continuava.
— A viagem vai ser semana que vem. Durante ela, fique sempre onde eu possa ver, mas não olhando pra mim. Você vai entre os escudeiros, no meio da formação, com as carroças. Tentarei ficar atrás, e Rhaffur também. Duvido que alguém fale contigo, mas, se acontecer, apenas tente não criar confusão. Entendeu tudo até agora?
O garoto repetiu o gesto com a cabeça em resposta.
— Ótimo. No acampamento, você vai ficar na minha tenda, onde só cabem duas pessoas. Você vai fazer as atividades que te forem designadas e voltar pra tenda assim que tiver a chance. Sempre com olhos atrás da cabeça. Vai ser desagradável, mas considere isso um pequeno preço a pagar para continuar vivo.
Eram tantos detalhes para se considerar. Darl perguntava-se também sobre a necessidade de ser cauteloso na presença de outras pessoas. No início ele achava apenas desnecessário, mas, agora que sabia que logo estaria na presença de várias delas, queria manter distância de toda forma.
Pensando bem, era o mesmo que ele fizera por toda sua vida, e continuaria a fazer com sua família. Não se lembrava da última vez que questionara seus pais quanto a isso pois, em algum ponto, apenas aceitara seu destino. Os bosques eram sua vida, a cabana era seu lar. Não havia outra opção.
Contudo, de uma hora para outra, passou a ser lembrado constantemente de que corria perigo, de que havia um mundo coberto por pessoas perigosas além daquelas paredes.
Os sentimentos de curiosidade extinguiram-se como a chama de uma lareira acesa pela noite e, em um piscar de olhos, apagada pela manhã. Eles derem lugar ao pavor. Darl queria apenas se esconder em algum canto da casa.
Mas qual era a razão, afinal, para tanto cuidado?
O modo como Gundar falava fazia parecer completamente óbvio, mas nada vinha à cabeça do garoto. Ele devia saber? Era porque ele não nascera na cidade? Mas seus pais eram de alguma cidade antes de fugirem. Havia alguma razão que ele nunca soube.
Perdera a chance de questionar os pais quanto a isso, e a expressão do soldado, mais o fato de raramente haverem tido uma conversa, criavam uma situação na qual fazer uma pergunta como essa era extremamente difícil.
Mas Rhaffur ainda era uma opção — a única opção.
Era preciso apenas esperar por uma chance. A próxima visita, se houvesse uma antes da partida, ou durante a viagem em si, talvez. Mas ele precisava saber.
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