Seis dias depois, Darl, Gundar e Rhaffur partiram em viagem.
A campanha caminhava em uma formação com carroças no centro, cercadas por meia dúzia de escudeiros e, na vanguarda e retaguarda, mais dúzias de soldados distribuídos. Todos seguiam uma estrada a oeste de Nouwer, a pequena cidade cercada por muros e torres de madeira, com um castelo no centro.
Embora conversassem entre si, ninguém sequer tentara falar com Darl. Contudo, era como esperado e, de toda forma, o garoto não via qualquer razão para falar com os demais. Mas isso não aliviou o desconforto que sentia.
Os primeiros dias, principalmente, foram especialmente sufocantes. O garoto sentia-se asfixiado pela multidão; todas aquelas pessoas que, embora sussurrassem entre si, dirigiam palavra nenhuma a ele — apenas olhares. Aparentemente, também era o mais jovem ali.
Nos trechos em que a estrada tornava-se mais estreita, sua situação piorava. A formação apertava, as pessoas aproximavam-se mais. O espaço que lhe separava dos demais, a única coisa a trazer o menor sentimento de segurança, desaparecia.
As caminhadas eram longas, apenas com breves pausas. Um dia causava dor nas pernas no seguinte que, por sua vez, acumulava ainda mais dor para o próximo.
Darl não podia queixar-se, apesar de tudo. E mesmo se pudesse, talvez fosse o único ali demonstrando insatisfação. Tinha certeza que, se perdesse mesmo que um pouco o controle, estaria com a boca aberta, ofegante. Ainda assim, todos pareciam completamente plenos em comparação. Talvez fossem extremamente bons em ocultar o cansaço, ou realmente possuíam muito vigor.
Gundar e Rhaffur estavam em algum lugar da formação, mas o garoto apenas os via à noite ou quando faziam pausas no meio do dia.
Ainda assim, não fora capaz de fazer a pergunta que tanto desejava.
O estresse e a fadiga do dia, de toda forma, drenavam-lhe toda e qualquer vontade de questionar.
Ironicamente, chegou a desejar chegar logo a seu destino. Desta forma, pelo menos, a caminhada cessaria. Mas não devia iludir-se; quando chegasse a seu destino, talvez o trabalho fosse ainda pior.
Darl não sabia a razão de guerras serem travadas, e menos ainda por que pessoas arriscavam-se por elas. Tudo o que sabia era que devia ajudar, querendo ou não.
Após um período próximo a uma semana, a viagem chegou ao fim.
A jornada levou-os a uma área aberta entre as árvores, onde havia um acampamento. Várias fogueiras estavam acesas, e cinzentas colunas de fumaça riscavam o céu da tarde.
Logo após a chegada e o descarregamento dos suprimentos, uma decisão foi tomada: dentre os homens que acabaram de chegar, uma parte devia permanecer no acampamento, e a outra participar diretamente do cerco. Darl e Gundar foram designados como parte do primeiro grupo, já Rhaffur do segundo.
Talvez houvesse até três dúzias de cabanas espalhadas. Algumas maiores, como a central, que se destacava de todas as demais, e outras menores, como a de Gundar.
Para todas as direções, apenas escuras florestas podiam ser vistas, exceto para o sul, onde a vegetação aparentava abrir-se. Ao Norte, se olhasse por certo ângulo, era possível ver, muito distantes, salientes cumes de montanhas.
Ao pôr do sol, todos tiveram mais uma refeição antes de se retirarem para suas cabanas. Enquanto comia, Darl pôde sentir mais e mais olhares sobre si. Talvez seus sentidos já houvessem cruzado a linha da paranoia.
Não havia razão para receber tanta atenção dos demais. Ainda assim, sempre que tentava observar os arredores com o canto dos olhos, pensava encontrar os de outra pessoa fixos em si.
Apenas quando entrou em sua cabana, sentiu que havia algum tempo para respirar.
— Amanhã o trabalho vai começar —, disse Gundar, enquanto se cobria com uma pele. — Você deveria dormir também. Ninguém aqui fica à toa, e o dia começa cedo.
E então o garoto fez o mesmo. Seu corpo cansado, sua ainda mente repleta de dúvidas.
Esta poderia ser sua chance.
— Gun... —, tentou dizer, mas desistiu.
Por fim, apenas fechou os olhos e esperou pelo sono.
A partir do dia seguinte, deveria trabalhar com outras pessoas. O melhor plano que fora capaz de pensar era o de apenas esperar por ordens, segui-las e, em caso de dúvida, observar como as demais pessoas faziam.
Tivera tempo para se preparar, mas o usara mal. Talvez nem todo preparo mental pudesse ser suficiente para encarar a realidade, de toda forma.
Quanto mais pensava sobre, mais desejava sair de lá. Mas estava a dias de distância de Nouwer, em terras completamente desconhecidas. Ele devia cooperar e auxiliar uma guerra da qual nada entendia.
Ele queria fugir do acampamento. Seria tolice, mas queria apenas correr.
A pele sobre a qual estava deitado, o tecido da cabana na qual estava — tudo parecia sufocá-lo. Assim como as lágrimas que escorriam contra sua vontade.
Se não fizesse barulho, ao menos, não seria notado. Contudo, quanto mais se segurava, com mais força vinham os soluços. Até mesmo seu próprio corpo parecia querer ir contra sua vontade.
Quando sentiu que viria um que seria incapaz de abafar, tapou a boca com a mão, mas foi inútil.
Era uma noite silenciosa, o apenas os sons do vento e fogueiras no lado de fora podiam ser ouvidos. Com certeza seu soluço fora notado. Afinal, Gundar estava logo a seu lado.
O soldado devia estar a pensar sobre a vergonha que acolhera. Esteve preparando Darl para ser um soldado, mas tudo que o garoto fazia era chorar.
Darl enterrou o rosto nas peles em uma tentativa de cessar suas ondas de soluços. Logo suas lágrimas espalharam-se pela felpuda superfície, assim como por seu rosto, em contato com ela.
Enquanto, aos poucos, os impulsos incontroláveis desvaneciam, também vinha a necessidade de respirar novamente. Após erguer o rosto outra vez, respirou fundo. Tentava estabilizar o ritmo da respiração ainda fora de seu controle.
Embora lágrimas ainda escorressem de seus olhos, ao menos fora capaz de parar a parte mais problemática.
Ainda assim, era deplorável.
Darl abriu os olhos, com o corpo deitado sobre um lado. Estava escuro, mas era possível ver o brilho avermelhado sobre o tecido da tenda vindo das fogueiras acesas no lado de fora.
Elas oscilavam com o tempo, tremeluziam com o passar do vento.
Os olhos do garoto lentamente se fecharam enquanto o mundo escurecia.
Sua respiração tornava-se mais suave. Seu corpo mais leve.
O vento uivava enquanto as chamas crepitavam.
Elas crepitavam.
Elas sussurravam.
Mas suas vozes eram muito baixas.
Então o vento se calou, e as palavras das chamas tornaram-se claras.
— Duwaha Nahuu, Shierd. —, uma voz ecoava na escuridão. — Waha du Ergwen u dai Vord.
No mundo frio que se formava, a voz era a única fonte de aconchego presente. Mas também carregava poder, fazia o garoto sentir-se pequeno e fraco.
Darl procurava por ela, como se necessitasse de sua ajuda para sobreviver em meio ao caos.
Mas não havia caos, apenas escuridão.
E a voz.
Ele estava de joelhos. Nada via, porém, podia sentir sob si um chão mais liso que qualquer rocha, e muito frio.
Com as forças que ainda possuía, o garoto pôs-se de pé e andou em direção à voz.
— Zum enai dai Hoor, zum em Hoorv dai Ergwen.
Era impossível distinguir o significado das palavras, mas, de alguma forma, soavam como um alerta.
Era como se um perigo estivesse a se aproximar.
Era como se estivesse sendo seguido.
A fonte da voz era seu único abrigo.
Então Darl sentiu seus braços juntarem-se ao corpo, como se fossem apertados. Tentou movê-los, mas era inútil. Depois sentiu o mesmo em suas costas. Tentou dizer algo, gritar, mas não conseguia.
Com o corpo paralisado, sentiu algo tocar seu rosto. Balançou a cabeça para afastar o que quer que lá houvesse.
Algo gelado cobriu sua face.
Era sufocante, o ar que passava por suas narinas não era mais suficiente. Apenas quando respirou funda e desesperadamente, abriu os olhos. Diante de si, viu cinco pessoas em meio a árvores.
Água pingava de seu cabelo, rosto, e podia sentir suas roupas encharcadas. Estava frio, muito frio. Seu corpo tremia descontroladamente.
— Veja se não acordou! —, um dos homens disse. Ele tinha em mãos uma vara, a qual balançava pelo ar.
— Dormiu bem? —, disse outro, sua voz repleta de sarcasmo. Este segurava um balde.
Outra vez, Darl tentou inutilmente se mover. Apenas então olhou para cima. Estava escuro, mas podia ver os galhos e folhas da árvore à qual seu corpo estava amarrado.
Perguntava consigo o que estava havendo, por que estava acontecendo e quem eram aquelas pessoas.
Não podia controlar sua respiração frenética, não podia controlar o medo.
Só podia concluir que aquilo era nada bom, e estava prestes a piorar.
Era noite. A única fonte de luz visível era a das tochas carregadas por outros dois homens mais distantes.
— Não se preocupe. —, declarou outro. Este mantinha uma distância maior, e estava com a mão sobre o cabo de uma espada embainhada em sua cintura. — Logo você vai dormir pela eternidade!
Darl gritava, mas sua boca estava amordaçada.
Berrava ao topo de sua força, a ponto de sua garganta doer, mas apenas sons abafados escapavam.
— A justiça vai ser feita! —, um dos que segurava uma tocha gritou. Seu tom era exasperado. — Você vai sofrer como a gente teve que sofrer por sua causa, sua aberração!
Como eles sofreram? O que Darl tinha a ver com isso, de toda forma?
Muitas questões corriam pela mente do garoto. Ele contorcia-se, fazia toda a força que podia, mas as cordas não se moviam. Suas mãos nada podiam alcançar.
Pensou em pedir ajuda ao Padrasto Yahlov, que devia sempre ensinar a humanidade a ser justa. Mas aqueles homens pareciam desejar seu próprio tipo de justiça. O que o garoto poderia ter feito para ser punido? Estava relacionado com a razão de Gundar tentar protegê-lo?
Eles sabiam de seu crime?
Onde poderia estar Gundar, de toda forma? Ainda dormia? Havia sido assassinado?
— Ei! Relaxa! —, disse o outro homem com uma tocha, e tocou o ombro do companheiro. — Ele é o último em uns dez anos. Os outros demônios já foram purgados. Os que sobraram já estão muito longe de nós.
— Presta atenção! —, chamou o que segurava o galho, virando-se para trás, onde estavam os outros. — Esse aqui é bem novo. Deve ter nascido depois que o sacerdote de Alkerfell nos disse a verdade.
— Não era de Phastrion, Tenente? —, indagou o da espada.
— Não importa. Os dois estão juntos nessa.
— Mas eles não desfizeram a aliança faz uns cin...
— Cala a boca! Não é porque meu cargo corre risco que podem ficar me desrespeitando. Estamos fazendo isso contra a ordem do capitão, mas isso é, na verdade, um favor a ele. E ao reino!
— Perdão... Tenente.
— Veja, o que quero dizer é que essa criança... essa coisa. Ela tem uma família. Ou tinha. O que importa é que, se ele nasceu por aqui, outros também devem estar nascendo.
— Aposto que estão escondidos nas florestas. —, adicionou o do balde. — Como um bando de goblins!
— Isso! Devíamos voltar a caçá-los. Ficamos nos matando na fronteira com Elogrand, com o verdadeiro inimigo debaixo dos nossos narizes!
Neste momento, o tenente furioso, que segurava o pedaço de madeira, virou-se rapidamente e desferiu um golpe contra o rosto do garoto cujos olhos podiam apenas derramar inconsoláveis lágrimas.
No início houve apenas um estalo, mas logo sua testa começou a arder. Um de seus olhos teve a vista obstruída por uma mancha vermelha. Seu sangue escorria. Darl sacudia a cabeça, aterrorizado.
— Por que não espalha suas doenças no Abismo?! —, o tenente gritou, e atacou novamente.
Então outra vez.
E outra.
O garoto já não sabia se balançava a cabeça por conta própria ou se era resultado dos golpes que recebia.
— Ei, ei! —, chamou um dos homens. Quando os ataques cessaram, Darl abriu os olhos e notou ser um da dupla com tochas. — Como você mesmo disse... Tenente, ele deve ter nascido depois daquilo tudo. Não é como se estivesse com os outros. Ele provavelmente nem...
— Você tá defendendo essa coisa? —, virou-se novamente para trás. — Hein?! Termina o que começou a falar!
— Não me olhe como um traidor! Minha irmã morreu com a Praga antes mesmo de se casar. Se estivesse viva ainda, eu teria vários sobrinhos! E ela não foi a única na minha família... —, baixou a cabeça assim como a voz. — Todos nós sofremos, Tenente.
— E ele vai sofrer também. —, completou o homem da espada. Sua voz era o retrato da serenidade e indiferença. — Considere isso um favor. "A justiça que não for feita em vida, será em morte", não é? Mesmo que esse garoto seja inocente, vamos fazer um favor a ele antes que viva para cometer um crime, como os outros.
— Gosto do seu pensamento, soldado. —, concordou o tenente.
— Nesse caso —, voltou a falar o da tocha. —, me dê a sua espada.
— O quê? —, o homem armado deu um passo para trás.
— Vamos acabar com ele logo. Não sei quanto a vocês, mas tô cansado de mortes lentas.
— Mas eu não! —, gritou novamente o tenente, com a vara.
Ele andou em direção ao garoto amarrado, pôs a mão sobre sua cabeça e puxou seu cabelo com força.
Com os olhos semiabertos, Darl foi capaz de reconhecer o rosto do homem diante de si: era o mesmo tenente que havia visto ainda em Nouwer, no encontro com o capitão.
— Essa é a marca da culpa! —, declarou. — Ninguém que tiver esse cabelo é inocente! Enquanto eu tiver vendo esse maldito cabelo cor-de-fogo, enquanto eu souber que ainda há mais deles por aí, eu nunca vou cansar de mortes lentas, porque elas ainda vão tar acontecendo em algum lugar!
— Eu entendo, Tenente, mas...
— Nem mais uma palavra, traidor!
— E-Ei! —, chamou o outro homem da tocha, que se mantivera calado a maior parte do tempo. — Não vamos esquecer quem é o inimigo aqui!
— Sim... —, o tenente soltou o cabelo de Darl e largou o galho no chão.
Ele afastou-se do garoto e caminhou em silêncio até o companheiro armado. Nada disseram um ao outro; apenas trocaram sinais com a cabeça.
O homem da espada entregou-lhe sua arma. Os demais mantiveram-se calados.
— Vamos ter um dia longo amanhã. —, disse, finalmente, o tenente agora armado com a espada, enquanto se aproximava do garoto amarrado. — Vou acabar logo com isso e espero não tocar no assunto de novo.
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