Darl acordou.
A primeira coisa que sentiu foi a familiar sensação de algo espetar seus braços e costas.
Quando abriu os olhos, avistou o teto de uma casa de madeira. Um familiar teto de uma casa madeira.
Tudo era familiar demais.
— Mentira! —, escaparam as palavras enquanto rapidamente erguia seu corpo.
Então se viu sentado sobre uma cama palha posta diretamente sobre o chão. Lentamente, deixou os olhos percorrerem seus arredores.
Vazio.
Familiarmente vazio, mas não era a mesma vacuidade com a qual estava acostumado.
Logo virou o olhar para sua perna.
Ela não estava enfaixada, e nem doía.
Tudo aquilo era muito estranho. Darl não era capaz de dizer onde estava — nem quando. Tentou vasculhar suas memórias por respostas.
Os dias anteriores pareciam vagos. A viagem, o acampamento...
O ponto final da expedição estava muito longe de Nouwer. Esta certamente não era a casa de Gundar. Como para confirmar a conclusão, as diferenças ficaram claras aos poucos: a cama em outra posição, o quarto menor, talvez o teto até fosse um pouco diferente.
Havia uma janela aberta próxima à cama, por onde entrava bastante luz. Era realmente diferente da casa do soldado, que possuía quase todas as janelas bloqueadas com tábuas de madeira, exceto por uma, que também permanecia fechada quase todo o tempo.
Darl pôs-se de pé e caminhou até a janela. Por sua abertura, avistou outras casas sob a luz matinal.
Mas não havia qualquer vida nelas.
As casas tinham musgos e vinhas em suas paredes, telhados com várias aberturas e plantas em seus interiores. Até as ruas estavam repletas por grama. Era como se a floresta tomasse o local para si.
Mesmo com seu curto conhecimento sobre as leis que regiam o mundo, Darl pôde concluir que estavam abandonadas há muito tempo.
Que local desolado poderia ser este? O garoto mal se recordava de ter chegado a um acampamento e ido dormir.
Podia, entretanto, lembrar de uma voz.
Ela parecia vir de longe, ao mesmo tempo que falava a seu ouvido.
Parecia reverberar em uma sala fechada, ao mesmo tempo que em uma imensidão sem fim.
Ela dizia algo, mas não parecia falar.
Parecia ser escutada, mas não ouvida.
"Dulendai-yu dai Sanvituz ue."
Darl sacudiu a cabeça e trouxe sua atenção de volta para onde estava. Decidiu procurar por alguém — Gundar, especialmente.
Não sabia a razão de haver aparecido naquela casa, mas, se lá estava, o soldado também deveria estar.
Quando refletiu mais sobre sua linha de raciocínio, notou estar apenas se apegando a falsas esperanças. Ainda assim, procurar era uma opção melhor do que esperar.
Andou até a parede e, com cuidado, abriu a porta para outro cômodo. O ranger das juntas era especialmente alto, mas era seu nariz que lhe incomodava mais no momento, pois já coçava devido à poeira. Dado o estado das casas vizinhas, não era difícil imaginar que esta também poderia estar abandonada.
Darl pisou no outro ambiente.
Ao olhar para o lado, imediatamente avistou duas pessoas. Ambas estavam sentadas, de frente para o outra, a uma mesa sobre a qual parecia haver algum tipo de bebida.
Elas eram Gundar e um homem desconhecido. Ambos tinham copos de barro em mãos.
Deviam haver notado a presença do garoto, pois olharam para ele com o canto dos olhos. Com uma estranha seriedade, beberam mais um gole de seus copos.
Nada disseram.
Darl perguntou-se se deveria dizer algo, mas em nada conseguiu pensar. Indeciso e confuso, apenas permaneceu de pé no mesmo local enquanto encarava os dois.
O homem no lado oposto da mesa ao soldado tinha nenhum cabelo no topo da cabeça. O pouco que sobrava, assim como a barba, era de um loiro parcialmente branco. Seu rosto, coberto por rugas, assemelhava-se à imagem de uma ameixa seca. Sua pele branca era marcada por várias pequenas manchas escuras.
Seus olhos eram fundos, suas mãos magras com veias que pareciam poder pular para fora da pele. Seu semblante parecia anunciar que pouca vida restava naquele corpo.
Darl, com poucos rostos em sua memória e apenas algumas descrições para consultar, não podia dizer se estava diante de um homem extremamente doente ou excepcionalmente velho.
Finalmente, Gundar virou a cabeça para o garoto.
— Se lembra de alguma coisa? —, ele perguntou, e depois bebeu um gole. O possivelmente velho homem na mesma mesa apenas olhava fixamente para seu próprio copo.
— Nã... —, Darl recordou-se de pessoas. — Sim... —, então de estar amarrado. — Um pouco... —, de ser atacado. — Eu... —, de haver libertado-se. — Eu acho... —, de ouvir uma voz. — Eu diria. —, de chamas.
O soldado barbudo apenas desviou seu olhar e deu um longo e cansado suspiro. Entreolhou-se com o provavelmente velho homem a sua frente e levou o copo aos lábios novamente.
— Eu já mal acreditava mais na Justiça de Yahlov —, disse, enfim. —, mas vocês dois estão me fazendo repensar minhas crenças.
O silêncio tomou conta da sala novamente.
O velho homem olhou outra vez para Darl. Ele parecia sorrir levemente, mas não por alegria ou bom humor, mas como algum tipo de consolo.
— Darl, este é Rognir. —, o soldado fez a apresentação. — Foi ele que nos encontrou essa manhã e nos trouxe pra cá.
— É só um prazer poder ajudar um par de jovens. —, Rognir afirmou com o sorriso agora mais amplo.
"Jovens"...?
Ver Gundar ser chamado assim era realmente estranho, pois já havia, por um considerável tempo, concluído ser o homem mais velho que conhecia. Ainda assim, ao olhar para Rognir, parecia plausível afirmar que qualquer pessoa era jovem comparada a ele.
— Bem, por que não senta aqui... —, Gundar sugeriu, olhos semiabertos em seu copo, enquanto chamava com a mão. — e diz o que lembra da noite passada? Rognir... Ele pode ajudar, talvez.
Com o atraso de costume, Darl obedeceu. Andou até a mesa e sentou-se em uma cadeira livre, na beirada mais próxima da mesa, de frente para os dois homens. Não sabia exatamente em que o velho poderia ajudá-lo. Contudo, raramente transformava suas dúvidas em palavras, de toda forma.
— É um prazer, meu garoto. —, disse Rognir. Darl conseguiu apenas responder com um breve assentir.
— Certo. —, cansadamente suspirou o soldado. — Não me seria surpresa se aqueles homens —, virou-se para o garoto. — tivessem te tirado da nossa tenda e te levado pra longe. Foi isso, não?
— Uh-hum... —, Darl respondeu, lento.
— E então?
— Hm...?
— O que aconteceu depois?
— Ah! Bem... Eles me amarraram... numa árvore. —, preferiu omitir a parte de haver acordado apenas depois de ter sido preso à árvore.
— Sim. E então?
— Eles... discutiram...?
— Sobre o quê?
As perguntas do soldado já se tornavam excessivamente pertinentes. O que houvera já estava feito. Ou, ao menos, era isso que Darl tentava pensar.
De toda forma, por que exigir tantos detalhes? Não havia razões para Gundar desconfiar do garoto.
Não.
Havia sim.
Darl buscou refúgio com os olhos em algum lugar da sala. Levou-os ao velho Rognir, mas este já não sorria mais, mas mostrava uma face de apreensão.
Então levou o olhar ao chão, aos móveis, às paredes. Ainda assim, a pressão para responder forçou-lhe a dizer algo logo.
— Não lembro... —, mas ele lembrava.
— Continua. —, insistiu Gundar. — O que eles fizeram?
— Eles... queriam me matar.
— Mas não conseguiram.
— Aham…
O soldado suspirou.
— Tá certo... —, ergueu o copo e deu um último e longo gole. — Se não quer contar o que viu, vou dizer o que eu vi: eu acordei no meio da noite, e percebi que você não tava mais na tenda. É claro, logo pensei que tinham te levado, só não sabia pra onde, e se tinha acordado muito tarde. Saí e fui te procurar. E logo que saí, um escudeiro me viu e disse que você foi levado pra ser interrogado, mas que não devia me preocupar, porque eram ordens do capitão. Mas não tinha nenhuma luz acesa dentro da tenda do capitão. Ah, se eu não devia me preocupar!
Após mostrar sua insatisfação com uma pancada na mesa, Gundar encheu seu copo novamente, em silêncio.
— Quer beber um pouco, Da...? —, ofereceu Rognir.
— Hã...? Ah, é “Darldollum”, senhor.
— Oh, sim! Quer um pouco? —, fez um gesto para a jarra no centro da mesa. — É só água.
O garoto hesitou por um instante, mas, por fim, assentiu. Sua garganta estava seca, e não queria desvalorizar a gentileza.
Enquanto o velho enchia-lhe um copo, refletiu sobre como Gundar fazia tantas pausas para beber água.
Olhou para dentro de seu copo, e viu que o líquido era realmente transparente. Talvez apenas um pouco... esverdeado, e com pequenos pontos escuros que dançavam submersos. Parecia chá, talvez, mas não havia qualquer cheiro.
Deu de ombros mentalmente e bebeu um gole.
O sabor realmente não era o de água. Era um tanto amargo e, logo depois, surgiu uma estranha sensação de formigamento no céu de sua boca.
— Água na maior parte, quis dizer. —, Rognir sorriu. Apesar de não desejar fazer pouco da cortesia, Darl sentiu-se, mesmo que só um pouco, traído.
— Enfim. —, com sua grave e evidentemente cansada voz, Gundar cortou uma situação desconfortável com outra. — Dei um jeito de passar o mais despercebido que deu. Não tinha muita gente acordada, de qualquer jeito, só os escudeiros que faziam vigia. Acabei achando Rhaffur na beira do acampamento, acordado, e ele me disse pra onde ir, mas ficou pra trás, pra não levantar suspeita e atrasar quem pudesse vir atrás. Não era a vez dele vigiar...
Resmungou algo enquanto virava o copo outra vez. Quando a colocou de volta sobre a mesa, respirou profundamente antes de continuar.
— Fui pra dentro da floresta, e não demorou pra ver luz. Pensei que fossem tochas, mas, quando andei mais, vi que era a floresta pegando fogo. E quando cheguei na fonte do fogo, só achei corpos queimados e despedaçados, e um menino ileso no chão: você.
E esse menino ficou nada surpreso com o que ouviu. Ele realmente já se lembrava de tudo, mas, estranhamente, tudo parecia ter sido nada mais que um sonho.
Não eram as memórias de algo feito por suas mãos em plena consciência. Eram as de um sonho tão real que poderia haver acontecido.
E havia acontecido.
Então, Darl refletiu sobre se poderia ter sido uma boa ideia fingir surpresa. Ainda assim, suas memórias pareciam distantes demais para lhe chocar.
— Agora... —, Rognir parecia tentar organizar os pensamentos em sua cabeça. De um momento para o outro, pareceu ainda mais cansado que Gundar, como se o simples ato de falar fosse uma atividade desgastante. — Meu jovem —, virou-se ao soldado. —, você disse que a floresta estava queimando, e que havia mortos?
— Sim. —, o soldado finalmente ergueu a cabeça. — Exatamente.
— Sabe... meu garoto... —, as pausas e escolha de palavras de Rognir fizeram Darl suspeitar que seu nome havia sido esquecido novamente. — Quando eu ainda vivia na cidade igual todos, muitos boatos circulavam sobre os reinos vizinhos. Os reinos gundordianos, principalmente. Era lá de onde vinha todo tipo de coisa ruim. Ou é o que diziam. Eu costumava acreditar, mas parei depois... de vir pra cá. Mas parece que tinha um pouco de verdade, no final.
A ponto de, aparentemente, tornar-se ofegante, Rognir parou e bebeu um pouco mais.
— Era feitiçaria... —, continuou. — Diziam que os gundordianos faziam feitiçaria, atiravam maldições nos seus inimigos, vendiam as almas das suas filhas para demônios... Mas também falaram de outra coisa... Não lembro mais como chamavam, mas faziam algum tipo de ritual pra trazer um espírito, e esse espírito entrava no corpo de alguém. Eram crianças de rua, normalmente... pelo que lembro. E essas crianças eram mandadas pra guerra com o espírito.
Darl nada sabia sobre rituais ou feitiçaria. Mas algo sobre ter um espírito inserido em seu corpo deixava-lhe incomodado.
— Essas crianças não morriam. Elas matavam todo mundo em volta sem nem precisar tocar neles... Alguém com um exército assim poderia vencer qualquer guerra, com certeza... Seria bem injusto aos inimigos...
— Então... —, o garoto sentiu a necessidade de trazer a principal questão de volta ao foco. — Eu sou um deles? Como?
— Não sei, De... Da... Tudo isso era coisa dos gundordianos, e foi há muito tempo.
— Uns trinta anos, provavelmente. —, adicionou Gundar. — Nunca ouvi sobre esse tipo de coisa, mas não é impossível que tenha chegado aqui recentemente.
— Mas... Mas eu nunca saí da minha casa... desde que nasci até aquele dia... —, indagou o garoto. Talvez quisesse que a explicação estivesse correta, pondo fim às dúvidas, mas, ainda era incapaz de seguir tal raciocínio. Havia muitas incongruências. — E aconteceu do nada. Eu tava dormindo quando aconteceu... Na frente da lareira, igual... toda noite... —, sua voz morria aos poucos.
— Sim. E eu nem estava te ensinando a lutar pra te mandarem pra... —, por alguma razão, Gundar interrompeu-se.
O treinamento que dava a Darl tinha como pretexto fazer o garoto seguir sua carreira como soldado. Contudo, se pensasse mais, nutria dúvidas até mesmo quanto a isso.
— Isso é tudo que eu sei, meus jovens. Desculpe... Mas eu também posso estar errado. Não... se preocupem tanto com isso.
— Sim... —, concordou o soldado. — Algumas coisas são melhores sem uma explicação. Sem uma justificativa... Sem um culpado.
Um desconfortável silêncio ecoou pela sala. Apenas o vento que balançava as árvores no lado de fora era ouvido.
Até que se ouviu mais goles de Gundar.
— Estão com fome? —, perguntou Rognir, novamente com aquele sorriso no rosto. — Tenho aqui dois coelhos que peguei de manhã, quando achei vocês... no chão... perto do rio. —, sua expressão escurecia-se novamente.
Ninguém respondeu. Até que Gundar soltou um longo suspiro.
— Rognir —, ele chamou. —, vamos agradecer devidamente sua generosidade.
O velho e Darl olharam para o soldado. Não demorou muito para o garoto compreender suas palavras.
— Vamos pegar alguma coisa decente pra nós quatro.
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