Quando o havia visto pela janela, era pouco mais que uma suposição. Porém, ao cruzar a porta e caminhar sobre as estradas parcialmente tomadas pela vegetação, tornou-se plenamente claro.
Aquele vilarejo estava em ruínas.
— Acho que não cheguei a te ensinar muito de arco? —, girando o pescoço, Gundar, que andava na frente, perguntou. — Isso vai te ser útil, então presta atenção.
— Uhum...
O soldado carregava um arco e aljava emprestados por Rognir. Mas não era nele que se mantinham os olhos de Darl.
Mais interessado estava o garoto no desolado horizonte que lhes rodeava.
Telhados caídos, vinhas e musgos que se agarravam aos restos de paredes. Nenhum outro ser humano devia viver na vila há muito tempo. Ainda assim, Rognir conseguiu, de alguma forma, manter-se por todo esse tempo.
Talvez fosse uma intervenção, o Trabalho de Yahlov — algum tipo de milagre. Contudo, viver daquela forma parecia ser nada melhor que uma maldição. Que bem faria manter vivo alguém que conheceria apenas mais dor em vida? Seria nada mais que prolongar seu sofrimento.
Enquanto se aproximavam do que podia ser o limite do vilarejo, entrou no campo de visão de Darl uma estranha paisagem. Sobre um largo espaço aberto, espalhavam-se dúzias de pequenas pilhas de pedras.
O que as pedras empilhadas deviam marcar, não havia como saber. Ainda assim, o vazio daquele lugar parecia refletir-se no peito de Darl.
Um gelado vento soprou, acompanhado pelo farfalhar das árvores no entorno do vilarejo. O garoto teve que esfregar os braços para conter um pouco o frio.
Não vestia qualquer agasalho por cima de suas roupas. Afinal, fora com estas mesmas que, na noite anterior, havia ido dormir. Ao menos, recebera um par de sapatos de Rognir, pois também os havia perdido, já que dormia com os pés descalços.
Ainda assim, talvez não fosse generosidade demais emprestar um agasalho também. Era um dia de poucas nuvens, mas o outono já estava no fim, e o sol pouco se erguia no horizonte.
— Os bosques de Nouwer são bem vivos. —, declarou Gundar, enquanto caminhava. — Aqui deve ser mais ainda. Isso quer dizer que vai demorar menos pra achar comida, mas também que vai ser mais fácil virar comida. Entendeu?
— Hã...? Aham!
— A primeira coisa que você precisa lembrar é que animais ouvem muito bem. Se você pisa num galho, mesmo se parecer que fez pouco barulho, o animal pode ouvir. Sem falar que o chão agora está cheio de folhas secas, então não tem jeito de não fazer barulho. A solução é andar leve e com passos curtos e rápidos, basicamente pra imitar um animal pequeno. Nossa ideia é pegar um cervo. Vamos andar e fazer pausas longas até avistar um, e quando isso acontecer, é hora de tomar outra precaução com o som: andar só quando o vento soprar, porque ele é bem forte aqui e as árvores fazem muito barulho. Acompanhando?
— Sim!
Até este momento, pelo menos, havia conseguido acompanhar.
Gundar dedicou um longo tempo diante da fronteira do arruinado vilarejo com as detalhadas instruções acerca de diversos possíveis cenários que ousou chamar pelo termo "dicas".
Embora suas palavras tenham resultado na criação de algo semelhante a expectativas, tal produto foi rapidamente esmagado.
Talvez uma caçada pudesse ser descrita como um glorioso evento, digno de uma longa e emocionante narrativa. Afinal, em Nouwer, até poucos anos atrás, fora um luxo dado somente aos nobres. A primeira caçada da vida de alguém que se habituara a passar todo seu tempo dentro de uma casa trancada, por conseguinte, poderia ser nada menos que marcante.
Ainda assim, aos olhos de Darl, que apenas se restringiu a acompanhar as instruções e passos de Gundar, a realidade não poderia ser mais diferente.
A caçada não se estendeu por muito tempo, pois logo um cervo fora encontrado, atingido, perseguido por seu rastro de sangue e abatido. Contudo, isso foi tudo. Nada mais, nada menos.
Talvez houvesse sido algo mais, se narrado com mais detalhes, mas uma história é tão longa quanto as memórias nas quais ela habita. Se poucos detalhes são lembrados, o evento que eles compõem é igualmente obsoleto.
Assim foi a caçada. Assim foram gravadas suas memórias. Simplesmente entediante. Irrelevante.
Decepcionante.
Não era como se Darl não estivesse concentrado no mundo a sua frente. Apesar de dividir sua mente entre a caçada e os acontecimentos recentes, ele realmente estava focado em seguir Gundar sem fazer barulho. Ele não lhe queria decepcionar. Talvez até pudesse orgulhar-se por não haver pisado sobre um galho seco sequer.
Quando o garoto observou o esvair do brilho dos olhos do animal caído aos seus pés, nada sentiu.
Se indiferença era um sentimento, nem mesmo isso fora sentido. Absolutamente nada.
Completamente vazio.
Tão vazio que mais palavras seriam necessárias para descrever tal vacuidade do que tal ocorrência seria digna de receber.
Darl até chegou a pensar que se sentia culpado por nada haver sentido, mas então notou que nem mesmo culpa era capaz de sentir naquele momento.
...
Gundar e Darl retornavam ao vilarejo em ruínas. O garoto carregava os velhos arco e flechas emprestados por Rognir, enquanto o soldado arrastava o corpo do cervo abatido.
Não havia um muro em torno da vila. Uma barreira invisível — a transição entre as contrastantes densidades de árvores — era tudo que separava as casas dos bosques ao redor. Considerado o número de pessoas que vivia lá, não seria surpresa se algum animal fizesse de uma das casas vazias sua toca.
Enquanto se aproximavam da casa de Rognir, algo chamou a atenção de Darl. Era algo estranho em meio a uma vista familiar.
Quando deixaram o vilarejo para caçar, o garoto já havia notado o grande espaço aberto com dúzias de pequenos montes de pedras empilhadas. Contudo, apenas na volta percebeu que havia um alongado buraco cavado no solo em meio às pilhas de pedras.
Era grande o bastante para uma pessoa deitar em seu interior, e havia montes de terra a seu redor. Mas não era uma terra escura e fofa, mas cinzenta e uniforme, como se o buraco houvesse sido cavado há algum tempo.
Isso trazia questionamentos à mente de Darl, mas havia uma outra pergunta que ainda queria fazer.
— Gundar... —, chamou, enfim, apesar de hesitante.
— Sim? —, o soldado nem mesmo virou o olhar para o garoto. Apenas continuou a caminhar a passos lentos enquanto arrastava o animal.
— O que aconteceu com Rhaffur?
Nenhuma resposta veio. Nenhuma reação foi esboçada. O soldado apenas continuou a andar. O silêncio meramente serviu para agravar a ansiedade do garoto que lhe seguia.
Até que Gundar parou.
— Queria que não tivesse feito essa pergunta.
— Desculpa... —, era óbvio que não era um assunto que devia ser tocado. Darl cometera um erro estúpido. — Não precisa res...
— O corpo dele agora está apodrecendo entre as árvores... Digno do traidor que era.
Não havia rancor em sua voz, apesar da escolha de palavras. Era como se o soldado tentasse encontrar conforto ao atribuir um título pejorativo ao amigo.
Como se quisesse justificar sua desfortuna.
Quando Gundar deu mais um passo, acabou por soltar um baixo gemido, mas continuou sem demora. Darl, talvez pela resposta recebida, ou pelo curto momento do que poderia ser fraqueza do soldado, não retornou a andar. Ficou onde estava.
As costas largas de Gundar, tensionadas com o animal que um dos braços a elas acoplado arrastava, distanciaram-se. Estavam cobertas com apenas uma peça de roupa branca, apesar de possuir algumas manchas amareladas.
Mesmo que, em circunstâncias comuns, as manchas pudessem ser consideravelmente chamativas, diante da escura e avermelhada com um tamanho próximo a uma mão aberta que se formava nas costas do soldado, pareciam desaparecer em meio ao branco.
Pelo tom, apenas, era difícil ter certeza do quão antiga aquela mancha de sangue era. Mas, certamente, se a percepção ou a memória de Darl não lhe falhavam tanto, não estava lá durante a caçada.
Ainda assim, o soldado não havia ferido-se nos bosques. Apesar de não ser impossível cortar-se entre as plantas, algo que causaria um sangramento tão severo certamente era.
— Gundar, suas... costas...
— Não importa. Vai sarar.
— Isso foi...
— Uma flecha. Foi sorte só uma me acertar. Teria sido pior se Rhaffur não ficasse pra atrasar os outros.
Rhaffur, o soldado cuja vida pessoal era completamente desconhecida para o garoto.
Tudo que Darl sabia sobre ele podia ser resumido em duas ou três frases.
Era o velho amigo e colega de trabalho de Gundar, além de também não ter uma família para chamar de sua. Apesar da solidão — se é que tal condição pudesse implicar um comportamento contrário — era um homem gentil.
Um homem gentil que permanecera gentil até seu fim.
Talvez ele desejasse uma morte na qual fosse possível manter-se fiel a si mesmo. Ao seu modo de ser.
A escolha de assistir o amigo havia sido dele. Ainda assim, não importava a forma como olhasse, não teria acontecido se Darl não estivesse lá.
Gundar tinha todas as razões do mundo para odiá-lo.
O garoto nada mais foi capaz de dizer. Nada mais havia para dizer. Sua mera presença devia ser desagradável. O melhor que podia fazer era fingir não estar lá.
Apagar sua presença.
Assim, apenas voltou a seguir o soldado, em silêncio.
...
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