Darl teve dificuldades para dormir. Sua mente ocupou-se em revisar as informações recebidas várias e várias vezes. Era uma forma de autotortura, mas o sono custava a vir, de toda forma.
Então, em um piscar de olhos, o garoto encontrou-se acordando um pouco tarde no dia seguinte.
Ele e Gundar dormiram no mesmo quarto no qual havia acordado no dia anterior, já Rognir e Grena em outro. Uma casa com dois quartos naquele vilarejo aos pedaços era um pouco surpreendente.
Quando Darl chegou à sala, viu o soldado preparando-se para partir. Estava enrolando pedaços de carne e vegetais em um tecido, e Rognir ao lado lhe entregava um arco e aljava; provavelmente os mesmos usados no dia anterior.
— Oh, bom dia! —, disse o velho homem ao notar o garoto.
— Bom... dia.
O soldado apenas virou o olhar a ele e, friamente, retornou ao que estava fazendo. Após dar um firme nó no saco, deixou-o no chão e recolheu as armas das mãos de Rognir.
Darl também notou que, sobre a mesa, havia uma espada embainhada e uma adaga. Apesar de encobertas, apenas pela aparência exterior das armas era possível imaginar que suas lâminas estavam em péssimo estado.
Deviam pertencer a Rognir há muito tempo, ou a algum antigo habitante do vilarejo. De toda forma, se fossem partir, era melhor estarem armados com algo.
O velho andou até Darl. Sem qualquer palavra, com apenas seu sorriso questionável quanto à sinceridade no rosto, pôs a mão na cabeça do garoto. Darl quis recuar, mas não conseguiu. A situação era verdadeiramente desconfortável, mas não desejava ser rude.
Com seus dedos trêmulos, Rognir acariciou o cabelo do garoto. Aquele cabelo que representava nada além de dor e morte.
O que faria aquele homem querer tocar aquilo?
— Eu... —, palavras saíram da boca de Rognir como o vento. — tinha medo de ser o último, sabia?
— "O... último"?
— Oh! —, finalmente, recolheu a mão. — Acho que não dá pra ver mais. Eu também sou como você... meu garoto. Acho que a idade me tirou a cor.
Então apontou para o pouco que sobrava de seu próprio cabelo amarelado. No dia anterior, Darl deduzira ser apenas um tom de loiro, mas, agora que pensava mais, fazia sentido. Cabelos normalmente se tornariam brancos com o avançar da idade, como deverua ser o caso de Rognir. Porém, aparentemente, se sua cor inicial fosse vermelha, perderia o pigmento de um modo diferente.
— Meu jovem. —, o velho chamou. Desta vez, seu olhar estava em Gundar. — Antes de irem, queria pedir uma coisa a você.
O soldado continuou em silêncio. Olhou para Darl, depois de volta para Rognir, a quem assentiu.
— Agora... —, virou-se o velho uma última vez para o garoto. — Me promete uma coisa? Quero que tenha orgulho de quem é, Da... Darl.
Assim, sorriu mais uma vez antes de virar as costas.
O soldado e ele partiram para o quarto onde estava Grena, e lá permaneceram por algum tempo. Tempo este que concedeu a Darl a chance de pensar mais em tudo que ouvira.
Fazia sentido Rognir ser como ele. Essa fora a razão que lhe obrigara a viver neste vilarejo isolado.
O garoto apenas esperou na sala. Inicialmente permanecera de pé, mas, pelo momento em que Gundar retornou, já havia decidido aguardar sentado sobre uma das cadeiras à mesa.
— Darl. —, o soldado chamou. Apenas ele havia saído.
— S-Sim?
— Volta pro quarto. E fica lá dentro até eu chamar.
Um pouco confuso, Darl assentiu. Gundar permaneceu de pé diante da mesa até o momento que garoto perdeu-lhe de vista.
Mais uma vez, sentia que algo importante acontecia fora do alcance de seus olhos. Por alguma razão, após finalmente conseguir sua resposta no dia anterior, iludira-se com o pensamento de que não sentiria isso novamente.
A curiosidade, mais uma vez desperta, fez com que Darl ficasse atento à sala da qual estava separado pela velha porta. Pôs a cabeça próxima à folha de madeira, e ouviu passos. Eles cessaram para dar lugar a outro ranger de porta. Havia apenas duas opções: a que levava ao lado de fora, e a do quarto ao lado.
Talvez uma pessoa com melhor percepção pudesse distinguir a direção da qual o som vinha, mas Darl fora capaz de encontrar sua resposta apenas quando ouviu os passos novamente. Estavam mais lentos e suaves desta vez, e eram ouvidos da parede ao lado.
Uma voz foi ouvida. Devia ser de Gundar, mas quando o garoto levou sua orelha à parede, nenhuma palavra a mais foi dita.
O silêncio ressoou por tempo suficiente para o garoto questionar suas ações. Se fora mandado para dentro, era porque ocorreria algo que não deveria ver. Ainda assim, não podia evitar.
Um gemido pôs fim aos seus pensamentos. Era estranho, rouco, mas nada grave. Não devia pertencer a um dos dois homens.
— Se segura em mim. —, disse uma voz profunda que só podia pertencer a Gundar.
Então o mesmo gemido foi ouvido novamente, seguido de vários ruídos. Pareciam passos, ou pés arrastando-se. Eles ficaram mais distantes, até que saíram do quarto.
Darl tentou acompanhá-los enquanto se arrastava até a parede que separava seu quarto da sala. Continuaram a se afastar, até mais uma porta ranger — esta certamente diferente e mais distante que a última.
Então nada mais ouviu além de sua própria respiração.
Não havia como saber se todos os três haviam saído do quarto, ou apenas um ou dois. Ainda assim, a primeira opção parecia-lhe a mais viável. Desde o momento que havia acordado naquela casa, no dia anterior, não tivera a chance de ver a esposa de Rognir. Agora tinha quase certeza de que ela havia, finalmente, levantado-se.
Talvez houvesse tido esse pensamento apenas em tentativa de justificar sua próxima ação, por mais fraco que o argumento pudesse ser. De toda forma, o garoto cedeu à curiosidade, girou a velha maçaneta e abriu a ruidosa porta.
Havia ninguém na sala adiante. A porta do quarto ao lado estava aberta, assim como a que levava ao lado de fora.
A residência vazia provocava uma estranha sensação de abandono. O farfalhar das árvores no exterior podia ser ouvido, além do uivante vento que entrava por todas as brechas da casa, assim como o brilho levemente morno do sol matinal.
Ao chão estava um saco e, próximo a ele, sobre a mesa, descansava uma espada tão velha que talvez nem mais cortasse, além de um arco e aljava com algumas flechas.
Com toda cautela possível, Darl andou até a saída e, com apenas a cabeça para fora, espiou pelo vão da porta.
Na estrada adiante, entre as casas abandonadas, caminhavam duas pessoas. No meio, apoiada aos ombros de Rognir e Gundar, seguia uma pessoa com um folgado vestido e com cabelos brancos muito longos. Ela mostrava claras dificuldades para andar pelo modo como arrastava os pés. Fazia uma longa pausa após cada um de seus curtos passos. Decerto estava apenas de pé graças ao apoio dos dois.
Aquela era Grena, a esposa de Rognir. Não havia espaço para dúvida.
Eles andaram uma distância curta, apesar de por um tempo relativamente longo. Em um momento, pararam no meio da estrada.
Grena ajoelhou-se com a ajuda de ambos os homens. Em seguida, Rognir também se pôs de joelhos à sua frente. Ele parecia dizer algo, mas a distância não permitia que palavras viajassem até os ouvidos do garoto. O soldado permanecia de pé, seu olhar distante ao horizonte.
Rognir segurava as mãos de sua esposa enquanto falava. Em um momento, envolveu-a lentamente em um abraço. Quando seus corpos separaram-se, suas testas gentilmente se encontraram e, por fim, seus lábios. Darl não se lembrava de ter visto um anteriormente, mas pôde reconhecer o gesto como um beijo.
Após se separarem novamente, Rognir pareceu dizer algo a Gundar, que se virou para os dois. Ele puxou um objeto de sua cintura, e logo o garoto identificou ser uma adaga.
Grena foi lentamente deitada no chão. O velho homem não soltava sua mão em momento algum. Gundar aproximou-se dela e também ajoelhou a seu lado.
O soldado pôs a ponta da sua adaga no meio de seu peito, e Darl pôde apenas desviar o olhar. Apesar de não ter visto o momento em que a lâmina desceu, seu estômago pareceu saltar. Uma sensação amarga tomou sua garganta.
A morte não era desconhecida para o garoto, e ele tivera razões suficientes para saber, com antecedência, o que ocorreria naquela estrada. Ainda assim, tudo soou repentino demais.
Quando olhou de volta, viu Gundar retirar a lâmina do peito de Grena. Seus movimentos não eram rudes, mas tinham a firmeza que só poderia ser esperada de um soldado experiente, de um homem familiarizado à dor.
A postura de Rognir baixou. Ele levou uma mão à boca, aos olhos, à testa, ao chão. Não parecia exatamente confuso, mas perdido, como alguém que acabara de se dar conta de que se encontrava sozinho em uma floresta e sem noção de onde estava.
Gundar pôs uma mão em seu ombro, e foi quando ele pareceu recuperar compostura.
Rognir levantou a mão de sua esposa, quem não mais suspirava vida, e beijou-a.
Sem a soltar, também deitou ao chão.
Logo o mesmo repetiu-se. Desta vez Darl não recolheu os olhos. Ele precisava presenciar aquilo.
À distância, viu a lâmina entrar, e então sair.
Em um momento, havia um velho casal de mãos dadas. No outro havia dois corpos sem vida ligados pelas mãos.
Darl sentiu que não havia mais curiosidade a ser saciada. Nada mais havia para ser visto.
Retornou ao quarto e, ao entrar, fechou a porta e restringiu-se a observar a paisagem pela janela.
Rognir estava fraco. Não seria mais capaz de alimentar a si e a Grena, que já nem era mais capaz de ver ou andar por conta própria. Ela logo não estaria mais viva de toda forma, e teria que suportar seus últimos dias resumidos às dores da Praga. Já Rognir conheceria apenas fome até encontrar seu fim.
Não importava a forma como olhasse, fora a melhor coisa a ser feita. Era esse o pedido que o velho homem havia feito a Gundar.
Ambos viveram toda sua vida juntos. Seria impensável um dos dois ter que suportar seus últimos dias sem o outro. Então eles permaneceram juntos até o fim.
As casas adiante dificilmente possuíam uma parede intacta. Musgo, vinhas, e todo tipo de plantas tomavam conta do cenário. Logo a floresta apagaria quaisquer rastros de que, um dia, naquelas casas, viveram famílias. Famílias que precisaram fugir, que tentaram reconstruir sua vida, e que acabaram por falhar. Suas dores e suas alegrias, independente de qual viveram em maior quantidade, seriam igualmente esquecidas.
— Darl. —, chamou Gundar. — Vamos partir.
Darl virou-se para trás, em resposta. Nem ao menos percebera o momento em que a porta, apesar do quão barulhenta era, havia sido aberta.
As armas e as provisões, já separadas, foram recolhidas. Já que não possuíam mais donos, também pegaram agasalhos. A primeira coisa que Darl notou ao vestir um casaco e capa por cima de suas roupas foi o cheiro de mofo. Novamente, de toda forma, não podia queixar-se.
Ao deixar a casa, Gundar fechou a porta. Ninguém sabia melhor que ele que a casa estaria vazia a partir de agora. Se o fizera sem pensar, ou com alguma razão, Darl não sabia.
Seguiram pela mesma estrada na qual o casal fora visto pela última vez, mas não havia nem mesmo sangue no solo.
Ao caminhar um pouco mais, Darl notou mais uma vez o espaço aberto com pedras empilhadas. O que chamou sua atenção desta vez, entretanto, foi o fato de não ter encontrado a cova aberta de antes. Em vez disso, em seu lugar, estavam duas modestas pilhas de pedras sobre um pequeno monte de terra remexida.
Cada uma das dúzias de pilhas devia representar uma pessoa. Talvez algumas fossem de ex-soldados, artesãos, agricultores. Talvez algumas houvessem nascido com a cor de cabelo errada. Mas o que todos tinham em comum era o fato de terem vindo a este lugar para escapar da morte.
E fora aqui que a encontraram.
Ambos o soldado e o garoto prosseguiram em silêncio. Talvez Gundar já imaginasse que Darl soubesse a verdade, ou talvez realmente quisesse evitar o assunto e não a revelar.
As secas folhas de outono dançavam sem vida com o vento e cobriam o solo como um tapete. As árvores com suas copas amareladas que sacudiam ao vento pareciam apenas acentuar a solidão que o garoto, de repente, sentia.
Darl virou-se para trás. Ao observar mais uma vez para o cemitério, perguntou a si mesmo se o que sentia naquele momento era inveja.
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