Os olhos de Fernanda estavam arregalados.
— O-o que você é? — perguntou à esposa.
— Fê, sou eu — tentou tocar o braço de Fernanda, mas ela se afastou. — Fê? Eu não vou te machucar. Eu prometo. Fê?
Fernanda não respondeu. Não podia ser verdade. Ou podia? A mulher que amara por tantos anos era uma divindade? Como ela não soube disso antes?
— Você tá me dizendo que era tudo uma farsa? A mulher que eu amava não existe?
O peito de Ana se apertou. O uso do verbo no passado a machucou.
— Claro que não, Fê! Eu te amo! Eu sempre te amei!
— Por que não me contou antes?
— Porque eu não sabia, tá bom? Eu admirei os humanos por tanto tempo. Eu só queria ser um de vocês. Eu nasci do nada. Eu fui o primeiro ser neste planeta. Foram milhares de anos solitários, sem absolutamente ninguém. Sim, quando as plantas começaram a nascer, não foi tão solitário. Mas então eu descobri que, apesar de sua beleza, elas não eram companhia. Quando os humanos nasceram, eu me apaixonei por vocês: vocês tem apenas uma certeza imutável: a morte. Mesmo assim, esforçam-se para viver o máximo! Carpe diem, certo? Eu só queria ser um de vocês. Eu consegui sair do reino divino. Foi complicado no início, mas, quando percebi que nenhum dos outros deuses iria me tirar daqui, eu mesma esqueci quem eu era. Eu inventei todo um passado: mãe e pai, uma casa no campo. Eu inventei memórias nas quais eu mesma acreditei! Eu acreditei que era humana! Porque era o que eu sempre quis: fazer amigos, me apaixonar... Viver. Quando eu conheci você e a Ana, eu finalmente estava feliz, principalmente depois que você também aceitou meu filho e tratou-o como se fosse seu.
— E você chamou o Marco de aberração? — perguntou incrédula, com um sorrisinho tímido no rosto. Olhou mais uma vez as asas de Ana. — Acho que sabemos a quem ele puxou — Riu. Respirou fundo e fechou os olhos por poucos segundos. — Então você realmente me amou?
— Não — disse com um sorriso maroto e se divertiu com a reação surpresa da esposa. — Eu te amo. No presente, tá?
— No presente — Fernanda repetiu e riu com algumas lágrimas prestes a deixar seus olhos. — No presente — disse novamente, segurou as mãos de Ana e beijou sua bochecha.
***
— Você tá maluco? Você foi atrás dele?! Ele podia ter te matado! — Beatriz disse assim que ouviu o barulho das chaves arranhando a fechadura. Calou-se assim que viu Miguel atrás do irmão. Parou em frente à porta com os braços cruzados.
— Ele não vai me machucar — Marco disse.
— Ele já machucou! Você realmente acha que não vai acontecer de novo?!
— Não vai acontecer de novo! — Miguel quase gritou. — Não vai — repetiu em voz baixa.
Beatriz balançou a cabeça em reprovação.
— Como você sabe? Você sequer sabe o que você é! Como pode ter certeza disso?
— Eu...
— Bia, deixa ele quieto!
— Não, Marco! Não! Ele podia ter te matado! Qual a parte que você ainda não entendeu?!
— Eu não vou... me permitir machucá-lo novamente! — Miguel gritou. — Eu não me perdoaria... Eu nunca me perdoaria.
— Isso não prova nada! Sua consciência não vai te impedir de agir... daquele jeito. Não quando... seja lá o que for estiver no controle do seu corpo!
— Bia! — Marco repreendeu-a.
— Não, Marco — Miguel segurou sua mão. — Ela tá certa. Não tem como ter certeza. É muito perigoso pra você.
— Miguel, eu não vou desistir de você. Eu já falei.
— Mas...
— Eu já falei que não! Não vou discutir isso com você de novo.
Marco segurou o rosto de Miguel com ambas as mãos, de modo que seus olhos se encontrassem.
— A gente vai dar um jeito nisso juntos. Esqueceu?
Miguel balançou a cabeça negativamente. Não, não tinha esquecido, mas também não queria continuar colocando Marco em risco.
— Tá bom, entrem — Beatriz falou. — Mas vocês precisam se lembrar de que isso não é um musical da Disney: o amor não salva tudo — disse e adentrou a casa. Foi direto para seu quarto. Não queria dar mais uma chance para Miguel, mas ela sabia que Marco é teimoso e não iria desistir tão cedo, estão decidiu ceder logo para se poupar de uma baita dor de cabeça.
***
Marco guiou Miguel até seu quarto. Sentaram-se na cama e permaneceram abraçados por alguns minutos.
— Vai dar tudo certo — Marco falou, incerto se dizia isso para Miguel ou para si mesmo.
Miguel se desvencilhou do abraço e olhou Marco nos olhos.
— Acho que você já se meteu em muita confusão por minha causa — falou.
— Miguel, eu... Eu gosto muito de você. Muito mesmo. Eu não vou te abandonar — disse e beijou a testa de Miguel. — Não esqueça: estamos nessa juntos. Tá bom?
Miguel balançou a cabeça positivamente e embalou Marco por mais um tempo.
Miguel adormeceu no embalo de Marco que se desvencilhou e deitou Miguel na cama cuidadosamente. Acariciou seus cabelos por alguns segundos e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
***
Miguel acordou assustado. Beatriz e Marco estavam discutindo.
— Marco, se isso for mais uma daquelas suas histórias de bom samaritano...
— Não é!
— Como você sabe? Você sempre teve uma queda pelos mais frágeis, né? Pelo quebrado... Você tem que salvar todo o mundo, mas não porque é certo, só pra alimentar seu ego. Não é ajudar que você quer, né? Você quer sentir orgulho de você. Foi assim com o Simba, é assim com o Miguel!
— Não é!
— É sim! Eu sei que é! Eu te conheço, Marco. Você só salvou o Simba pelo seu ego. Sim, você se apegou a ele, mas o que motivou sua ação de ajudá-lo foi você, não ele. E é assim com o Miguel. Você não quer ajudá-lo, você quer se ajudar.
— Não é!
— Você tem que aceitar que é egoísta, Marco. Todos temos defeitos. Mas você tá esquecendo que o Miguel é um ser humano, com pensamentos e sentimentos próprios e, depois que ele melhorar, você vai abandoná-lo.
— Não vou!
— Como você sabe?
Marco suspirou pesado e fechou os olhos.
Miguel, ainda na cama, percebeu que Simba estava deitado no pé da cama. Sentou-se e aproximou-se do gato, lágrimas nos olhos.
— É só isso que somos? Troféus para o ego dele?
— Eu sei... — Marco tornou a falar. — Eu sei que não é assim... Porque... Porque eu acho que o amo.
Beatriz calou-se, surpresa. Miguel congelou. As lágrimas de tristeza viraram lágrimas de alegria.
— Marco... — Beatriz começou.
— Sim, eu sei que a gente praticamente acabou de se conhecer, mas ele é especial pra mim. Antes mesmo de saber das asas dele, eu já... Ele já não saia da minha cabeça. E eu acho... Acho que ele também gosta de mim.
— Tudo bem, Marco. Você me convenceu. Mas isso não quer dizer que não estou receosa, só que acredito que suas razões para ajudá-lo são legítimas. Tenha cuidado — Beatriz falou. Marco apenas acenou.
Miguel levantou-se e esperou alguns segundos atrás da porta para ter certeza de que Beatriz não estava mais lá. Abriu a porta devagar e sorriu para Marco com seus olhos ainda molhados. Abraçou-o.
— Depois daqueles beijos você acha que eu gosto de você? Acha? Vou ter que te beijar de novo para você ter certeza?
Marco corou e sorriu. Balançou a cabeça positivamente com um sorriso maroto nos lábios. Miguel também sorriu, segurou o rosto de Marco e beijou-o.
— Acho que ainda preciso de alguns beijos para ter certeza — Marco falou sorrindo quando se separaram.
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