Nos andares mais baixos no subsolo da FMU, Carlos treinava seu corpo e sua mente. Era um dos treinos padrões de sua mestra Alessandra. Ela o fazia treinar sua energia, um fluxo de poder que corre pelo corpo da pessoa e é controlado pela mente; para que o usuário se torne forte, ambos mente e corpo precisam estar fortes. Ele possuía um enorme potencial, mas desperdiçava isso por algo que o mantinha fraco e não o fazia treinar, era a preguiça. Carlos começou a treinar tarde e, sempre que podia, fugia do treino para passear pelos corredores da FMU — apenas onde tinha acesso — e achar uma maneira de se divertir. As vezes ficava lendo livros ou histórias em quadrinho, que era uma aquisição difícil naquele lugar.
Naquele dia em específico, resolveu treinar, apesar de estar muito cansado por ter passado a noite em claro; era possível ver pequenas olheiras em seu rosto. Andou pensando em tudo o que ouviu na noite anterior, tentando raciocinar sobre todas as informações e sobre toda aquela conversa estranha.
Resolveu levar os ensinamentos da Srta. Alessandra a sério. Mantinha os olhos fechados e no rosto uma expressão calma, enquanto tentava concentrar o fluxo de sua energia.
— Está indo muito bem. — Ela o fitou com um olhar avaliador, o elogiou, mas sabia que isso não era normal. — Desde quando leva seu treinamento a sério? — Ajeitou o cabelo, olhou para baixo e suspirou, como se estivesse com medo da reposta. — Você quer me dizer alguma coisa?
Apesar de sua pergunta, Carlos continuou concentrado. Fez apenas movimentos necessários para uma meditação, sua respiração era suave e ao mesmo tempo firme. Depois de um tempo abriu os olhos e resolveu responder.
— Eu sou um clone? — ele perguntou rapidamente, sem expressão alguma, ainda pensava nas possibilidades de tudo aquilo.
Por um momento a sala ficou silenciosa, Alessandra o olhou com um olhar de pena, sabia qual seria a sua pergunta, mas ainda não estava preparada para respondê-la.
— E então. Não vai me responder? — De repente, ele parou sua posição de meditação e sua respiração começou a ficar menos ritmada.
— Você tem que tomar cuidado com o que pergunta. — Ela o encarou com um olhar frio. O ar da sala começou a ficar mais pesado. — Eu poderia matá-lo agora.
— Se você fosse mesmo me matar, teria feito isso ontem, enquanto eu espiava sua conversa. — Ele sabia a intenção daquela ameaça, então não esboçou medo.
— Então você já sabia que eu o havia notado. — Ela estava contente por ele ter notado isso. A atmosfera ao redor ficou mais calma.
— É claro, conheço bem suas habilidades, seria impossível não ter me notado lá, — ele colocou a mão no queixo, pensativo. — Mas a questão é, se você sabia que eu estava lá, por que continuou a conversa? Eu digo o porquê. — Apontou o dedo para ela, acusando-a. — Você queria que eu ouvisse tudo.
— Ora, ora, não sei de onde tirou isso. — Alessandra deu de ombros, fingindo não saber sobre a acusação dele. — Não é como se eu te deixasse ouvir de propósito. Apenas não tinha motivos para impedi-lo. Aquela conversa se tratava de você, afinal.
Carlos parecia um pouco irritado, apesar de ter tido a confirmação de suas suspeitas. Notou que Alessandra em nenhum momento tentou negar o que havia dito naquela conversa com aquele homem desconhecido. Isso o deixou mais irritado ainda. É claro que ele sabia que as chances de tudo aquilo ser um mal-entendido eram baixas, mas Carlos ainda tinha um pouco de esperança.
— Mas agora que sabe de tudo isso, o que pretende fazer? — perguntou ela enquanto se sentava em uma cadeira.
— Não pretendo ficar aqui — ele respondeu firmemente, estava decidido.
— Fugir. Huh? — Ela suspirou enquanto olhava em volta, encarou alguns alunos por um instante, então voltou seu olhar para Carlos. — Sente-se, vou te contar tudo sobre você.
— O que você… — Antes de tentar perguntar algo, foi abruptamente interrompido por Alessandra.
— Mas antes, eu preciso que você siga algumas regras. — Ela olhou para o teto, encarou por um momento seriamente, como se estivesse esperando algo acontecer. Carlos ficou olhando-a esperando alguma reação; esperando que algo acontecesse. Alessandra virou o olhar para ele novamente e levantou seu dedo indicador direito. — Nós apenas começaremos a falar a respeito de seu passado quando eu levantar o dedo direito. — Ela abaixou o dedo direito e levantou o indicador esquerdo. — Quando eu levantar o dedo esquerdo, nós pararemos imediatamente de falar. Outra regra: não fique a mais de 10 metros longe de mim. Entendeu?
Carlos fez com a cabeça que sim. É claro que ele havia entendido sobre as regras, mas não o motivo de tudo aquilo. Eram regras específicas de mais e sem sentido algum, mas não se importou com isso, apenas confiou em Alessandra. Se ela fazia algo era porquê tinha algum motivo, dado a natureza de suas habilidades complexas.
— É claro que não preciso nem dizer para falarmos baixo. — A mestra olhou ao redor encarando algumas pessoas na sala, eram todos alunos que estavam tendo treino para poderem dominar a energia, e melhorar seu desempenho físico, assim como suas habilidades de combate. — Vamos começar.
— Não entendo o porquê de tais regras, mas tudo bem. — Carlos focou toda a sua atenção na conversa para que não esquecesse de nada do que seria dito.
Então o dedo indicador direito de Alessandra foi levantado, e assim começou a contar os fatos.
— Você é um clone, como já tinha ouvido. Um clone de um Crescente, uma raça que é capaz de absorver energia infinitamente ao matar outros seres, eles são bem perigosos. A FMU o criou de uma tentativa de milhares para que pudesse ser capaz de derrotar um outro Crescente, que é um perigo ao universo. — Ela cruzou os braços e fez uma cara enfezada. — Não é algo que sou a favor, todas os meios que estão sendo utilizados para derrotar esse inimigo são cruéis. Eu quero acabar com isso.
Então o dedo indicador esquerdo de Alessandra foi levantado, e assim ela mudou de assunto. Carlos não teve tempo para processar a informação que havia acabado de receber.
— Você precisa focar mais em seu treinamento, ficar vagabundeando por aí não irá te ajudar. — Ela respirou fundo e continuou agindo como se estivesse dando um sermão há muito tempo. — Existem muitas pessoas poderosas neste mundo. Carlos, você precisa aprender a controlar sua energia, ou vai acabar morrendo.
— Cer… certo, vou me lembrar disso. — Sua resposta foi sincera, apesar de esse sermão ter parecido falso, ela nunca havia dito por qual motivo ele deveria treinar, como se não considerasse a opção de ele sair dessa organização.
E mais uma vez o dedo indicador direito de Alessandra foi levantado. O assunto importante foi retomado.
— Por ser um clone você possui uma expectativa de vida baixa, você tem no máximo mais 5 anos de vida. — Alessandra olhou Carlos firmemente, esperando sua reação, mas ele não esboçou reação alguma, parecia estar escondendo seus sentimentos. Ela conseguiu sentir que o rapaz estava determinado a encontrar um jeito de sobreviver. — Mas existe uma forma de você viver mais. Ouça com atenção.
Ao ouvir essas palavras, o rapaz não conseguiu esconder a reação; seus olhos se encheram de brilho, como se estivesse vendo uma luz no fim do túnel.
Alessandra se levantou e começou a caminhar lentamente em direção à porta, Carlos se lembrou da regra de não se afastar por mais de 10 metros e começou a segui-la. Ela voltou a falar enquanto andava.
— Atualmente, existem quatro artefatos poderosos que podem te ajudar. A FMU está incessantemente em busca deles, mas pouco foi achado sobre seu paradeiro. Histórias dizem que ao juntar esses quatro artefatos, é possível formar o Círculo Mágico. — Alessandra parou de andar subitamente. — Um grande poder que é capaz de alterar toda a realidade, curar qualquer doença, tornar qualquer um imortal, ou aumentar a expectativa de vida de alguém. — Ao ouvir essa última parte, Carlos tremelicou os lábios levemente de felicidade, era isso que ele queria ouvir. — Sim, a dificuldade e os riscos de procurar por tal poder é alta, esse é um poder que ninguém deveria ter. Por esse motivo tento achar um jeito de a FMU não colocar as mãos no Círculo Mágico.
— Então você quer que eu vá atrás do Círculo Mágico para não cair nas mãos da FMU?
— Não, não é esse o motivo de estar te contando tudo isso. Eu não confiaria a você um trabalho tão importante e difícil, você é bem fraco ainda. — Ela não estava mentindo, mas não deixou de notar a expressão descontente de Carlos. — Estou contando isso para você ter um caminho a seguir caso realmente queira fugir.
— Não entendo. Por que você não se importa que eu fuja?
— Como eu disse, não concordo com o que essa organização está fazendo atualmente. Lembra-se do homem conversando comigo? Ele é o dono da FMU, alguém que conheço há muitos anos. Ele já foi uma boa pessoa que se importava com os outros, mas começou a mudar há algum tempo. Isso refletiu na organização em como ela está hoje.
Alessandra levantou o dedo esquerdo, então mudaram de assunto.
— Existem muitas pessoas não confiáveis no mundo. Você precisa treinar sua mente e corpo para passar por situações difíceis, e saber o que fazer no momento certo — disse Alessandra em um tom calmo.
— Entendo.
— E mais importante, leve a sério seus objetivos.
— Sei, sei… — Carlos fez uma careta fingindo deboche. Ouvia sermões de sua mestra diariamente, os sermões não eram novidades, mas o contexto deles sim.
Alessandra começou a caminhar novamente, dessa vez em direção oposta a porta. Enquanto andava ela fez o sinal com o dedo direto e voltou a falar sobre o Círculo Mágico.
— Recentemente, a FMU perdeu um de seus pesquisadores. Ele saiu em busca do Círculo Mágico para utilizá-lo em seus próprios objetivos, dizem que descobriu segredos importantes sobre os artefatos e decidiu ir atrás deles por conta própria. — Alessandra abaixou a cabeça, com recordações em sua mente. — Ele era um amigo querido, mas se foi sem me falar nada.
— Quem é essa pessoa?
— O nome dele é Ernane. Não se engane, se você também vai atrás do Círculo Mágico ele pode ser um inimigo poderoso. Tome cuidado.
— Obrigado pelo alerta, mas duvido que eu vá dar de cara com ele. De qualquer modo, você me treinou bem.
— Ha! Ha! — A risada de Alessandra foi quase alta o suficiente para fazer os outros alunos olharem para eles. — Não seja muito confiante, o que acabei de dizer era verdade, você é fraco demais e precisa continuar treinando. Não conseguiria enfrentá-lo nessas condições. Mesmo sendo um clone de um Crescente você ainda é ridiculamente fraco… — Alessandra iria continuar falando e falando, ofendendo Carlos se o mesmo não tivesse a tivesse interrompido.
— Certo. Já entendi, não precisa esculachar. Tomarei cuidado. Mas me diga, sou o clone de um Crescente; tenho as mesmas habilidades dessa tão dita raça poderosa?
— Através de testes realizados secretamente em você, há muito tempo, você possui cerca de 10% dos poderes e capacidade de um Crescente, mas seu tipo de habilidade é desconhecido.
— Tipo de habilidade? — Carlos estava confuso, estava recebendo muitas informações em tão pouco tempo.
— Sim. Cada Crescente possui algum tipo de habilidade com características diferentes. Alguns podem aprender habilidades instantaneamente apenas vendo alguém as utilizando, outros roubam habilidades. Alguns a adquirem apenas por querer, outros precisam treinar para isso. Mas todos os Crescentes conseguem absorver energia ao matar outro ser, isso é uma característica geral.
— E que tipo de habilidade eu possuo?
— Não sabemos, suas habilidades ainda permanecem uma incógnita. Você vai ter que descobrir isso sozinho, lamento.
— Então, minhas habilidades de gelo não têm nada a ver com o fato de eu ser um clone?
— Não. Nós dissemos que você havia nascido com essas habilidades, mas na verdade isso foi um experimento nosso, realizado após diversos testes comprovarem que sua clonagem foi um sucesso. — Alessandra não estava muito contente em ter que dar esse tipo de informação, mas não demonstrou isso, achava que não tinha o direito e se sentir triste enquanto falava sobre tais atrocidades. — A FMU utilizou o sangue de uma raça que possui aptidão para usar o gelo. Após muitos testes falharem em outras cobaias, você recebeu esse sangue e foi o único a não morrer.
— Fizeram novamente experimentos em mim? Mas não me lembro disso.
— Os experimentos foram realizados após você ficar desacordado por uma semana por conta da condição de seu corpo.
— Haviam me dito que eu estava doente.
— Sinto muito por isso, nós precisávamos de uma oportunidade para testar o sangue em você, e esse foi o melhor momento. Não me orgulho disso.
— Tudo bem, isso me ajudou, de certa forma. — Carlos não tinha muita certeza sobre como responder e como se sentir sobre isso, afinal, não havia nada para se fazer contra tal fato. — Mas porque não houveram mais testes? Poderiam me dar mais habilidades, talvez.
— O dono da organização cancelou os testes em você, apesar de seu corpo não rejeitar aquele sangue, não houve muita eficiência em utilizá-lo em seu corpo. Por ser um clone, o poder lhe dado pelo sangue foi mínimo. Por esse motivo o uso de recursos em você foi cancelado; você se tornou apenas um alvo de testes. Após isso foi pedido a mim que treinasse alunos, incluindo você, para aumentar o poder de fogo da organização.
— Então sou apenas uma arma, que ao dar defeito é descartada?
Carlos entendia que Alessandra não gostara do que fizera, mesmo assim ficou furioso com toda aquela história. Era pior do que ele pensava. Ser um clone criado para ser usado em uma guerra, e ainda por cima continuar sendo alvo de experimentos sem que soubesse, por todos esses anos. E quando parou de ser útil o descartaram para morrer, não movendo um dedo para salvar sua vida, também o impediram de sair da organização para que vivesse seus últimos momentos de vida.
— Sei que está furioso. Por muitos anos tenho vivido com o peso de todas as atrocidades que essa organização vem cometendo. Peço que se acalme, raiva não irá te ajudar no momento.
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