Mais de meia hora havia se passado desde que Carlos lutou contra os estagiários. Estava todo machucado e dolorido, suas juntas faziam um barulho estranho — provavelmente por conta do bloqueio de inúmeros impactos, — e o pior eram seus machucados que estavam congelados. O sangue havia parado de sair, mas ainda sentia fortes dores, o que fazia com que aos poucos perdesse sua velocidade de movimento.
— Essa dor está ficando cada vez mais forte. — Ele segurava o braço esquerdo com a mão direita, era uma ferida profunda causada por um disparo. Estava tentando amenizar a dor, fazendo com que o ar ao redor do braço se tornasse mais frio.
Carlos possuía uma grande resistência ao gelo, mas não era absoluta, até ele tinha um limite de quanto tempo poderia aguentar um frio abaixo de zero graus. Se continuasse a anestesiar o braço desse jeito, poderia perder o movimento dele.
Depois de muito andar, o Crescente chegou a um pátio cheio de pessoas. Decidiu que não importava mais ficar se escondendo das pessoas por medo de causar histeria, se continuasse a fazer isso, iria se tornar complicado achar algum médico. Há algum tempo deixou de se importar e começou a andar livremente pelas ruas.
O pátio estava bem movimentado, Carlos não sabia para quem pedir ajuda, todas as pessoas agiam de uma forma pouco amigável; apenas olhavam para seus ferimentos, mas não pareciam querer ajudar.
Antes que pudesse pensar para qual pessoa pediria ajuda, um homem chamou por ele. O Crescente se virou e se deparou com um homem alto, cheio de músculos e careca. Sua pele era morena e sua cara enfezada dava a impressão de ele ter poucos amigos.
— Hey, você. — O homem tinha uma voz forte e intimidadora. Isso fez com que Carlos hesitasse em responder. — Estou falando com você.
— Comigo? – Carlos respondeu sem pensar.
— Hehe, desculpe-me. Eu vivo fazendo isso, não queria intimidá-lo. — Sua voz repentinamente mudou para um tom mais humorado. — É que vi você ferido, e pensei que precisaria de ajuda.
— Eu. Hã, sim, preciso de ajuda — Carlos ficou mais aliviado depois de ter ouvido aquilo. Finalmente teria alguma ajuda, mas não deixou de achar tudo aquilo muito suspeito — por que quer me ajudar?
— Hmmmm, não é o que uma pessoa normal faria? Ajudar alguém ferido?
Carlos olhou ao seu redor, fez uma cara de confuso enquanto observava a multidão que estava no pátio.
— Acho que isso não é muito normal nessa cidade.
— Oh, sim, claro. — O homem soltou uma risada alta. — Ultimamente, as pessoas dessa cidade têm perdido a noção de solidariedade. Isso é por conta da aristocracia, que não se importa com nada além da futilidade.
— Deu para notar — disse Carlos olhando para as pessoas que andavam com roupas sofisticadas e com olhares indiferentes.
— Isso é culpa da prefeita. — O homem abaixou a cabeça entristecido como se estivesse se lembrado de algo obscuro, ia continuar a falar o que pensava, mas hesitou e não continuou. — Mas vamos deixar de lado esse assunto. Conheço uma médica muito boa que pode te ajudar.
Aquela era uma ótima notícia para Carlos, que havia por bastante tempo procurado por ajuda, mas ele não podia tirar a sensação de desconforto. Havia algo suspeito naquela pessoa e não sabia o que era. Poderia ser apenas uma intuição, ou o choque de realidade que recebeu recentemente ao descobrir toda a verdade sobre sua vida. Não sabia se podia ou não confiar naquele homem, mas decidiu, após pensar por algum tempo, que não tinha outro jeito. Era isso ou morrer por conta dos ferimentos graves.
— Bem — Carlos fechou os olhos e suspirou. — Acho que não tenho escolha, não é? Leve-me até essa médica. Hum…
— Kelvin. Eu me chamo Kelvin. — Ele deu uma risada escandalosa, parecia algo que fazia parte de sua personalidade, as pessoas ao redor o olharam como se ele fosse louco. — Sou um relojoeiro.
— Sou Carlos e sou, hã… um viajante.
— Siga-me Carlos, eu o levarei até uma médica confiável. Ela tratará de suas feridas, é muito boa com isso.
E assim Kelvin liderou o caminho. Não levou mais de 10 minutos para chegarem em uma rua estreita que parecia ser uma parte pobre da cidade. A rua era composta de inúmeros prédios antigos e algumas casas que sobreviveram com o tempo. Apesar de tudo, era um lugar ajeitado e possuía poucos moradores de rua, diferente da parte aristocrática da cidade.
[Maria]: Isso é muito estranho.
[Bortoluzzo]: O que?
[Maria]: O Carlos que conheci não confiaria em um desconhecido assim tão facilmente. Ele, na verdade, tentaria achar um jeito de se curar de uma maneira segura.
[Bortoluzzo]: Bom, não sei se ele tinha alguma opção ali, mas nós podemos dizer que o Carlos de antigamente era um pouco ingênuo.
[Maria]: Achei que ele sempre fosse um babaca.
[Bortoluzzo]: Não, quando eu o conheci ele já havia mudado um pouco, mas durante nossa jornada ele mudou mais. Na verdade, todos nós mudamos, inclusive você, não é?
[Maria]: Eu… apenas deixei de ser fraca.
[Bortoluzzo]: Bem, não há o que fazer, as pessoas mudam conformem passam por experiências, sejam de fracasso ou sucesso. Acho que é isso que nos torna humanos, ou quase isso.
E assim, chegaram ao seu destino. Uma pequena clínica maltratada pelo tempo que ficava no final da rua. Na verdade, parecia mais uma casa. Carlos não reconheceria como um local de trabalho de um médico, se não fosse pelo cartaz que dizia “Clínica da doutora Rena”. Na verdade, o nome da médica era Serena, mas duas letras haviam caído. Carlos soltou uma pequena risada ao ver isso.
— Então é aqui que essa médica, hã, Serena trabalha? — indagou Carlos enquanto olhava para o letreiro.
— Sim, ela vive aqui por muito tempo, tratando de pessoas doentes que não conseguem pagar uma consulta em uma clínica mais cara. Geralmente, não cobra pelo serviço, dependendo da condição financeira da pessoa.
— Acho que isso é bom, não tenho nenhum dinheiro comigo.
— Não se preocupe com isso, ela irá ajudá-lo.
Ao entrar na clínica, Carlos teve uma impressão diferente da fachada. Era muito diferente dentro e fora. Lá dentro o lugar era limpo e bem organizado, a entrada era bem convidativa e o local aconchegante. Era como se a fachada fosse de propósito uma porcaria, para espantar clientes, pelo menos foi isso que pensou.
— É um pouco diferente aqui dentro… — disse Carlos sem querer ser ofensivo.
— Sim, hehe. Como a maioria das pessoas dessa parte da cidade a conhecem. Serena não se importou em deixar a fachada chamativa.
— Entendo. Ela não precisa de novos clientes.
— Sim. Espere aí, vou avisá-la de que está aqui. Ei, Serena. — Kelvin deu um grito ensurdecedor. Ele era bem escandaloso, mas pelo menos isso fez efeito ao chamar a médica. — Tenho um novo paciente.
— Já vou, já vou. Não precisa gritar. — Uma voz suave e forte respondia Kelvin, era a voz de Serena.
E logo Carlos teria uma nova impressão, diferente das anteriores. Serena veio caminhando lentamente em direção a entrada da clínica. Era uma moça jovem, teria no máximo uns 30 anos, com um cabelo prateado e brilhante como o luar, que apesar de branco, realçava sua jovialidade. Usava um casaco verde e uma camisa branca, calça marrom e uma sandália. Mas não foi a aparência que chamou a atenção de Carlos, mas sim seu olhar. Era um olhar frio. Era um olhar que penetrava sua alma lhe dando calafrios. Ele imaginava como uma pessoa com um olhar desses poderia ser uma médica.
Ela recebeu Carlos e Kelvin com um olhar gélido e com um maço de cigarro entre os dedos. Fumaça saía de sua boca enquanto soprava suavemente contra o ar.
— Você, como sempre escandaloso, Kelvin. — Ela falou de maneira rígida sem perder a postura. Apagou um cigarro e o jogou em um cinzeiro, mas logo tirou outro de seu bolso e acendeu. — Você não poderia ser mais silencioso?
— Desculpe-me, é que isso é uma emergência, ele está bem ferido. — Kelvin falava rapidamente, enquanto apontava para as feridas de Carlos.
— E quem seria ele?
— Sou Carlos, um viajante — respondeu enquanto fazia um gesto de cumprimento.
— Certo, certo. Sou Serena. Pode me acompanhar. — Fez um gesto para que ele a seguisse.
Carlos adentrou mais a clínica, até chegar em uma sala de estar. Era tão confortável quanto a entrada do lugar. Um espaço calmo e luminoso, com móveis organizados o suficiente para você se sentir em casa. Tinha uma lareira acesa que ficava próximo a poltronas aconchegantes, algumas estantes cheias de livro estavam atrás. Carlos não deixou de notar que existia muitos livros de medicina lá. Assim como alguns livros de contos fictícios. Ela parecia gostar muito de ler.
— Não é aqui que eu atendo meus pacientes, mas é um bom lugar para a espera, não acha? — disse Serena enquanto tragava o cigarro.
— Sim. — Carlos olhava em volta, percebia os inúmeros detalhamentos da sala, admirando-os. — É bem acolhedor.
Apesar de estar tudo bem naquele momento, o Crescente não conseguia parar de sentir algo estranho naquele lugar. Desde que entrara na clínica, sentiu algo suspeito; não sabia o que era, também não conseguia pensar no porque estava pensando naquilo, mas algo dentro dele dizia que eles não eram confiáveis. Infelizmente, teve que ignorar essa preocupação. Carlos não duraria muito tempo com o corpo daquele jeito, então o melhor a se fazer era receber tratamento médico e depois que estivesse curado lidaria com o que viesse. Caso não recebesse tratamento e tudo aquilo fosse alguma armadilha, não deixaria de lutar para sobreviver. Ele era assim, pensava nos mínimos detalhes estrategicamente, mas as vezes arriscava a sorte e deixava que o destino decidisse para ele. De qualquer jeito, depois de sua primeira batalha se sentia confiante o suficiente para lidar com o destino.
— Algum problema? — perguntou Kelvin ao notar que Carlos estava estranho após conhecer Serena.
— Não, nenhum. — Ele rapidamente foi tirado de seu devaneio. Olhou para a médica. — Só estou com uma forte dor.
— Entendo. Siga-me — disse Serena se virando e andando. A fumaça logo a acompanhou.
Antes que Serena fizesse um gesto para que Carlos a seguisse, ele a interrompeu.
— Espere. Não tenho nenhum dinheiro para pagar o tratamento. Está tudo bem?
— Hum. Você disse que era um viajante. Um viajante sem dinheiro?
— É, eu… hã, fui assaltado. Levaram tudo o que eu tinha. — Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Carlos. — Atiraram em mim…, mas eu consegui fugir.
Serena analisou o Crescente de cima a baixo. Notou suas feridas congeladas. Na verdade, era difícil não notar isso. Podemos dizer que uma pessoa com vários cortes congelados não era muito comum naquela cidade, mas Serena não disse nada quanto a isso, sabia que ele estava mentindo, e que ele mesmo havia feito aquele congelamento improvisado, ninguém poderia fazer aquilo senão alguém que pudesse controlar energia.
[Maria]: Meu deus… ele é um péssimo mentiroso. Quem seria idiota a ponto de cair nessa?
[Bortoluzzo]: Pois é, não vou comentar nada quanto a isso, só estou contando a história.
[Maria]: Não sei como esse cara sobreviveu por tanto tempo.
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