Serena não respondeu de imediato. Enquanto o Crescente se levantava, ela caminhou lentamente na direção oposta. Graciosamente se sentou em uma cadeira de consultório, perto de uma mesa de trabalho na qual ela usava para estudos e anotações. Virou-se junto com a cadeira, cruzou as pernas delicadamente e novamente fumou outro cigarro — ela provavelmente não ligava para o fato de isso fazer mal para a saúde, — fechou os olhos serenamente e, ao soltar a fumaça dragada, os abriu de novo e começou a falar.
— Você sabe o que está acontecendo com essa cidade? — perguntou normalmente como se estivesse em uma conversa casual com alguém.
— Não, e não quero saber. — Carlos estava irritado e confuso, não era como se não esperasse que algo estranho acontecesse, mas queria saber de imediato o que era para resolver. — O que isso tem a ver com a situação?
— Vou te contar uma pequena história. — A médica despejou seu cigarro no cinzeiro e cruzou os braços. Carlos se impressionou por ela não ter tirado outro cigarro do maço. — É uma história curta, então não se preocupe.
Carlos simplesmente não falou nada. Sabia que não poderia fazer nada para ela parar de falar sobre coisas que, para ele, eram sem sentido. Por mais que isso o irritasse, e quisesse saber logo o que ela fez, o rapaz teria que esperar. Suspirou e ficou em silêncio esperando que essa história começasse.
— Mesmo sendo um viajante, você deve ter notado que esta cidade não está muito bem. — Serena falava calmamente. — Waft está um caos há muito tempo. Tudo começou quando o antigo prefeito Draco foi eleito, nós mantemos um sistema democrático nessa cidade e ele foi eleito legalmente. As pessoas acreditavam que ele seria uma coisa boa. Podemos dizer que no início ele era mesmo, essa cidade estava começando a ser desenvolvida por conta da aparição da FMU, que nos auxiliou no desenvolvimento tecnológico. Draco fez com que toda essa evolução desse certo. Isso aconteceu há 35 anos atrás. A cidade estava entrando em sua prosperidade.
— Certo. E o que aconteceu? — Carlos fez uma pergunta sobre a cidade. Estava sim irritado por ter que ouvir aquilo, mas como não tinha escolha, teria que deixar se levar e se envolver com a história.
— Aconteceu o que poderia acontecer com qualquer cidade na qual existe um poder político. Não importa o que, a ganância humana sempre fala mais alto. Em Waft, um prefeito pode ser eleito por 5 anos e reeleito por mais 5, esse é o limite. Não é algo que eu concorde, é muito tempo de poder para uma pessoa. Draco completou seus 10 anos de mandato, então outra pessoa ligada a ele foi eleita por mais 10 anos, depois ele voltou para o poder. Após chegar no final de seu mandato, alguns meses antes, ele simplesmente sumiu da cidade. E com isso, foi descoberto que havia levado toda a economia dos cofres públicos da cidade com ele. Infelizmente, não foi descoberto como Draco fez isso.
— E isso causou a falência da cidade... — complementou Carlos.
— Não é só isso. Draco desviava parte do material bruto da cidade e comercializava com outras cidades. Em tais negociações, fez diversas dívidas por todo o nosso continente, inclusive com outros continentes. Isso acabou com a cidade.
— E como ela se recuperou? — Carlos sentou-se no chão. — Suponho que isso faria com que a cidade entrasse em falência sem volta.
— Após o ocorrido, a cidade se manteve de pé. Houve uma nova eleição. Qualquer tipo de idiota estava disposto a se candidatar. Por conta da enorme crise que existia, estava muito fácil se tornar um candidato em quem o povo votaria.
— Sei. Em tempos de crise, imagino que é o melhor momento para um oportunista. Mas eu não entendo como alguém teria a coragem de tomar a responsabilidade disso. A cidade estava totalmente falida, não é mesmo?
— A maioria que se candidatou eram loucos, ou pessoas que queriam negociar o que restava da cidade para terminar de afundá-la. Outros só queriam aparecer, mas apenas uma pessoa estava realmente decidida a mudar essa cidade, pelo menos foi o que eu senti. — A médica desviou o olhar. — E essa pessoa ganhou.
— Quem é essa pessoa? — Carlos cruzou os braços, estava com um olhar de dúvida.
— O nome dela é Melissa. — Serena fez uma pausa antes de continuar, parecia estar pensando em algo. — E por quase 10 anos ela vem mantendo a cidade em pé. Ou é o que ela diz.
— Conseguir manter de pé uma cidade falida, por 10 anos, ela realmente deve ser boa. Mas deixando isso de lado. Qual o sentido de toda essa história? — Carlos levantou o braço e dobrou a mão para trás, questionando-a. — Quer dar alguma lição de moral ou algo assim?
— Não acabei ainda. É agora que vem a parte que realmente importa. — A médica o olhou profundamente com um olhar firme. — Como você acha que a prefeita vem mantendo essa cidade erguida, mesmo com ela tendo tantas dívidas?
— Hum. — Carlos colocou a mão no queixo pensativo. — Investimentos exteriores... não. Talvez empréstimo da FMU? Não seria algo difícil já que essa organização ajudou a cidade antes, não é?
— A FMU não é do tipo caridosa, ajudaram a cidade por um motivo, eu não sei qual é; esperavam algum tipo de retorno talvez. Não fariam isso de novo. Então é algo a desconsiderar.
— É, você tem razão. — Carlos baixou a cabeça e começou a pensar na organização e em como ela agia.
— O motivo real de a cidade ainda existir é mais complexo do que isso. Descobri isso há algum tempo. A prefeita está negociando suas dívidas com outras cidades, mas está conseguindo dinheiro através de atos ilegais.
— Atos ilegais? — Carlos arqueou as sobrancelhas. — Quais seriam esses atos?
— Muitas coisas ao mesmo tempo. Ela possui uma organização que está negociando através do mercado negro. — A médica falava calmamente, mesmo com isso não sendo algo tão simples de se falar. — Eles fazem qualquer tipo de coisas. Vendas de escravos, vendas de órgãos, contrabando de armas; entre outras coisas.
— Isso é meio... brutal. Está me parecendo algo conspiratório, você realmente tem provas disso? E se isso for verdade, tudo isso é mesmo o suficiente para manter essa cidade? — Carlos estava cada vez mais surpreso sobre o que ouvia.
— Sim, tenho diversas provas. Isso é o suficiente para a cidade continuar a existir, pelo menos. As negociações feitas através do mercado negro envolvem outras cidades, que também fazem parte disso tudo.
— Entendo. E suponho que a história acabe por aí. Agora diga o porquê de estar me contando tudo isso. — Ele franziu o cenho, estava sério. Sabia que teria alguma coisa por trás de toda essa história.
Serena descruzou as pernas, procurou em seu bolso outro cigarro, mas o maço estava vazio. Levantou-se da cadeira e começou a caminhar lentamente em direção à Carlos. Curvou-se um pouco para encarar o Crescente que estava sentado no chão. Aproximou o rosto e o olhou com o seu típico olhar frio.
— Porque você é a pessoa que irá acabar com a prefeita.
Um grande silêncio se estendeu no ar. Por um momento ficaram se encarando com a mesma expressão no rosto. Era como se estivessem esperando a reação um do outro para poder fazer algum movimento. Estavam esperando algum movimento do oponente para fazer uma jogada.
— Entendo — disse Carlos. Baixou a cabeça e pensou por um tempo. — Se você está dizendo isso, posso supor que não seja uma piada. E posso supor que você fez algo comigo. Agora, conte o que é.
— Interessante a sua reação. — A médica passou o polegar sobre as próprias unhas. Carlos achou isso uma ação estranha. — Eu esperava algum tipo de surpresa, alguma risada me chamando de louca, ou até mesmo alguma negação.
— Não é como se eu não tivesse alguma dúvida, mas prefiro ouvir antes de tirar alguma conclusão precipitada. — Carlos se levantou.
— Pois bem — Serena cruzou os braços. — A dor que você sentiu foi por conta de uma toxina que estava presente em uma das gazes. Ela entrou por sua ferida e agiu por toda a sua corrente sanguínea. Um comprimido que você tomou foi para inibir a toxina, enquanto o outro foi para injetar uma nova toxina em você.
— Está me dizendo que uma toxina entrou rapidamente no meu corpo me fazendo sentir dor, e um comprimido rapidamente fez ela parar? — Seus olhos estreitaram-se. — Acho que está tendo um conflito de lógica aqui. E que toxina nova é essa que supostamente implantou em mim?
— Essa última toxina irá matá-lo em até quatro dias. Não existe problemas de lógica aqui — Serena andou até um armário que estava perto, abriu uma gaveta e tirou um maço de cigarro de lá. Começou novamente a fumar. — Sabe... Eu sou um prodígio quando se trata de medicina.
Ao ouvir que poderia existir uma toxina que o mataria em quatro dias, Carlos ficou imóvel. Ainda custava para ele acreditar, o rapaz achava que tudo não passava de um blefe e que tudo aquilo não fazia sentido, mas no fundo sabia que existia uma chance de isso realmente ser possível. Não é animador para alguém que havia descoberto há pouco tempo que sua expectativa de vida era de apenas quatro anos, ter ela reduzida para quatro dias.
— Cer-certo. — Um suor escorreu por seu rosto, ainda estava com dúvidas. — Isso ainda não faz sentido.
— Você apareceu aqui, na minha clínica, cheio de feridas congeladas. Você quer mesmo falar de fazer sentido?
Carlos não respondeu. Sabia que ela tinha razão.
— Eu tenho a cura para essa toxina. E te darei ela se você me ajudar com o meu problema.
O Crescente se aproximou da médica, cruzou os braços e a encarou com um olhar firme. Um olhar de dúvidas e suspeitas, não aceitaria isso facilmente.
— E porque eu deveria acreditar nisso? Isso pode simplesmente ser um blefe.
— Tem razão. Sabe. — Ela deu uma tragada no cigarro e soltou a fumaça. — Meu jogo favorito é o Poker. O conceito de blefe desse jogo é simples, mas a execução é muito complexa. Você precisa estar atento a todos os seus movimentos e de seu oponente, ao mesmo tempo. Qualquer simples expressão, por menor que seja, pode decidir um jogo. Você já jogou Poker?
— Não, nunca joguei, mas entendo o conceito.
— Pois bem, se supormos que isso seja um blefe, o que você fará? — Ela jogou suavemente a mão para o lado enquanto segurava o cigarro entre os dedos. — Posso estar mentindo, é verdade, mas ao mesmo tempo pode ser que eu realmente esteja falando a verdade. Você pode simplesmente morrer em quatro dias.
Carlos colocou a mão no queixo e começou a pensar. — “Isso parece uma loucura. Um comprimido capaz de injetar uma toxina. Nunca ouvi falar disso antes, mas sou um pouco ignorante quanto a medicina.” — Sua expressão no rosto estava cada vez mais séria. Estava um pouco nervoso e suando. — “Meu tempo de vida é curto. Não sei se vale mesmo a pena apostar no fato de ela estar blefando. Acho que não tenho escolha, a não ser considerar que ela esteja falando a verdade. É a minha melhor opção, por agora.” — Carlos suspirou e limpou suor da testa. — “Isso é mais seguro, se ela estiver mentindo e nada acontecer comigo enquanto a ajudo, não perderei nada.”
— Tudo bem. Irei acreditar que isso é verdade. — Ele olhou para o lado.
— Você resolveu desistir das suas cartas então. — Serena deu um pequeno sorriso de satisfação. — Ótima jogada.
— É a única escolha que eu tinha. — Carlos suspirou irritado com aquela analogia. — Você me deixou em um beco sem saída, médica.
— Quando você joga, precisa estar preparado para perder.
— Eu já tinha isso em mente, mas espero que para o seu bem, você me dê essa cura no final, se é que ela existe.
— Não se preocupe. Eu sempre honro minha palavra. Tanto a toxina em seu corpo quanto a cura, são reais.
— Certo, certo. Vamos deixar isso de lado, já admiti minha derrota. Agora explique o que você pretende fazer comigo.
Nesse momento, Serena começou a andar pelo consultório, guardou todas as suas ferramentas de trabalho. Organizou tudo do mesmo jeito que estava antes. Enquanto ela arrumava, Carlos esperava uma resposta, mas apenas falou uma coisa.
— Venha. — Serena fez um gesto para que ele a seguisse, e começou a andar. — Siga-me, lá em cima é mais confortável para conversarmos.
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