Naquela tarde Ricardo havia chegado mais cedo, afinal, terminara todas as entregas. Era office boy numa grande loja de departamento e portanto era responsável por todo trabalho externo do setor administrativo.
- Sou porta-voz do departamento!
Costumava dizer sempre que algum colega em tom de brincadeira tentava diminuí-lo por sua função.
Ao cruzar a esquina do sobrado rosa em que morava viu ao longe sua crush suprema! Aliás, nos anos 80 não havia sequer a palavra crush pelas redondezas, então, vamos chamá-la de sua paquera.
Uma moça um anos mais velha e de cabelos louros quase castanhos e uma mechas tão claras que refletiam o sol.
Patrícia não se metia com esses garotos da sua rua:
- Um bando de bebês chorões, mamãe! Pare de me empurrar para os filhos das suas amigas.
Patrícia estava já no último ano do colégio Madre Conselheira, um colégio católico só para moças bem afortunadas e educadas. Estava ainda vestindo o uniforme enquanto parada em sua porta tentava recolocar as pilhas de seu walkman. As meias ¾ abaixadas e a saia dobrada atraíram os olhares de Ricardo que morava do outro lado da rua e estava com os hormônios flutuando em suor da puberdade de modo que seu coração bateu mais forte.
Patrícia assim que tirou as chaves de sua bolsa reparou no olhar engraçado do garoto. Aliás, ele estava bastante diferente. Um cavanhaque engraçado e ruivo contrastava com seus olhos castanhos amendoados. Seus traços eram delicados e um sorriso tímido fez com que Patrícia de alguma forma se sentisse intrigada com a presença do rapaz que, na semana anterior, havia acabado de completar 16 anos.
- Pois não é que é o filho da dona Judite. Pensou consigo.
O moço sem saber se a garota o encarava de modo a intimidá-lo acenou com a mão esquerda tendo debaixo do braço direito a pasta que trazia carregava depois da aula e do trabalho. E não é que a pasta de couro sintético marrom com relevos caiu aberta e todas as folhas se espalharam aos seus pés?!
Ricardo já nem sabia o que fazer:
- Que grande parvalhão. Pensou enquanto sentia seu rosto queimar e o rubor logo denunciou seu constrangimento.
Patrícia riu e enquanto girava a segunda volta da chave do portão branco olhou para trás mais uma vez como que desejando lembrar daquele rosto simpático que há pouco a fizera rir. Havia algo diferente naquele rapaz.
Ricardo tendo juntado os papéis abriu vagarosamente o portão cinzento de sua casa e arrastando os pés pesados passou para a garagem dando de cara com a Parati dourada de Hector, seu irmão.
Ricardo estava um pouco preocupado com o irmão mais velho que já estava algumas noites sem aparecer. Ele passou pela porta da sala que era de madeira maciça escura e com flores entalhadas, e reparou no amuleto do canto direito do batente. Tirou os sapatos e sentiu o odor acre de suas meias. Tratou de segurar os sapatos e enquanto atravessava a sala pensou mais uma vez em Patrícia. Que tolice achar que a moça talvez se interessasse por ele.
Seu estômago então roncou alto, mas Ricardo sabia que naquele dia teria uma refeição especial, pois era sexta feira e sua família judaica, apesar de não muito praticante, mantinha algumas das tradições.
Ricardo prevendo que haveria vinho naquela noite, abriu a geladeira azul claro que fazia um barulho grave e metálico quando estava aberta. O vinho na prateleira junto à porta estava ainda fechado o que lhe deixou um pouco decepcionado, afinal sua mãe perceberia e ele sabia como era sua mãe com relação ao Shabbat.
- É o que mantém a família unida. Lembrou-se Ricardo da voz suave de sua mãe quando ele insistia em não participar do jantar de sexta feira para ir ao cinema com os amigos.
Ricardo sabia que o irmão estava em casa, então subindo os degraus que estalaram ele seguiu rumo ao seu quarto tendo passado pelo banheiro que compartilhava com seu irmão. Ouviu o som da água que caía seco junto ao chão.
Ricardo então adentrou seu quarto que estava abafado naquela tarde de fevereiro e tratou de ligar seu ventilador. Desvincilhando-se da calça jeans surrada, deitou-se em sua cama de solteiro que estalou assim que ele se lançou sobre ela. Com as mãos sob a nuca, Ricardo abria e fechava os olhos escutando ainda o som que fazia o chuveiro elétrico na parede ao lado. Sequer teve tempo para pensar mais, pois dormiu.
Alguns minutos depois acordou um pouco assustado, mas viu que o sol não havia se posto. O chuveiro ainda estava ligado.
Com a mão dentro da cueca ele coçou os olhos e decidiu ir ao banheiro pedir para que seu irmão saísse logo.
Ao bater na porta e gritar por Hector ele não ouviu resposta. Tratou então de abrir a porta que estava, para sua surpresa, destravada.
O vapor que saíra do banheiro ocupou o corredor e Ricardo olhando para o chão viu o irmão sentado sob a água de olhos fechados. Algo estava errado. Hector repousava tranquilamente com a cabeça apoiada na parede e as costas junto a outra parede. Só então notou que havia um objeto metálico em sua mão esquerda. Uma poça rosada de sangue já dissolvido vertia de seus punhos.
Ricardo suou frio e um arrepio lhe tomou a espinha. Nenhuma palavra sequer saiu de seus lábios. Era sexta feira de shabbat.
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