França, 1342
Jehan cruzava a aldeia apressadamente, sem se importar com os cumprimentos não respondidos ou os eventuais protestos indignados daqueles em que esbarrava. Não havia tempo, precisava encontrar Gidie o mais rápido possível. Com um pouco de sorte, ele ainda estaria nos arredores.
Os limites da aldeia foram atravessados de forma tão ligeira que em poucos minutos o camponês já não reconhecia mais o chão onde pisava. Mas ele não se importou, apenas continuou sua busca incansável.
Sentiu o desespero tomar conta de si ao constatar o óbvio: talvez Gidie já estivesse distante, até mesmo em outra aldeia. Ofegante, Jehan diminuiu os passos, até parar completamente em uma clareira desconhecida.
Tentando recuperar o fôlego, ele se recostou em uma árvore próxima, finalmente se permitindo olhar em volta, e o pavor ficou claro em seus olhos. Não só desconhecia o lugar em que estava, como também não fazia ideia de onde viera, ou mesmo em que direção ficava a aldeia. Estava perdido.
— Droga! — Praguejou para si mesmo, enquanto escorregava até o chão, sentando-se no amontoado de folhas secas.
Naquela manhã, Gidie havia se despedido e partido para a próxima viagem. Naquela mesma manhã, um pouco mais tarde, Melisende havia finalmente recebido a visita da curandeira que tanto esperava, e tudo parecia estar indo de acordo com os planos. Mas não foi.
Jehan, então, havia decidido buscar ajuda de Gidie, e confiado em sua própria sorte de encontrar o outro não muito longe dos limites da aldeia. E mais uma vez naquele dia, seus planos haviam falhado.
O som do vento batendo nas árvores e de eventuais animais passando por ali eram os únicos presentes. Sentindo a pressão do silêncio esmagador, Jehan se encolheu o mais próximo do tronco que conseguiu.
O sol brilhava alto no céu, mas o frio estava começando a se tornar notável. Em algumas horas o ar estaria gélido, o suficiente para que o camponês encontrasse dificuldades de respirar. Derrotado, ele escondeu o rosto nas mãos, na esperança de que aquele dia não passasse de um pesadelo infeliz.
Um calor repentino tomou conta de seu corpo, e ele demorou alguns segundos para perceber que resultava de um tecido pesado jogado sobre suas costas. O aroma familiar e reconfortante encheu suas narinas, e ele levantou a cabeça lentamente, vendo a costumeira capa vermelha entrar em foco, caída sobre seus ombros.
Confuso e surpreso, ele ergueu a vista, e seu olhar cruzou com o do dono da capa. Não foi capaz de conter um suspiro aliviado ao reconhecer o rosto que tanto ansiava por ver naquele momento, mesmo que agora carregasse uma expressão preocupada.
Antes mesmo que o camponês pudesse formar uma linha de raciocínio coerente sobre o que dizer ou por onde começar, as lágrimas se formaram involuntariamente, e deixou escapar um soluço. Em pouco tempo, estava chorando enquanto tentava em vão buscar as palavras ideais.
Assustado, o bardo sentou-se ao seu lado e passou os braços pelos ombros do mais novo, envolvendo-o em um abraço reconfortante. Jehan permitiu-se afundar o rosto nas vestes avermelhadas, enquanto mais e mais lágrimas escorriam por sua face.
Por alguns minutos nenhum dos dois foi capaz de dizer nada, e os soluços de Jehan eram o único barulho a quebrar o som ambiente da floresta. Aos poucos, os prantos do camponês foram diminuindo e sua respiração retornando ao normal.
— O que aconteceu? — Perguntou o bardo, enfim quebrando o silêncio.
— A curandeira — começou Jehan, fungando —, ela veio finalmente. E disse — ele fez uma pausa, tentando impedir que as lágrimas voltassem a se formar — que não tem jeito. Não é um problema e não existe uma cura.
Gidie mordeu o lábio inferior, seu rosto expressava a mesma preocupação de antes, mas agora com um pouco de pesar. Ele não foi capaz de dizer nada, de forma que esperou o camponês se sentir à vontade para continuar.
— O padre descobriu. — Anunciou, por fim, e dessa vez não conseguiu conter os olhos marejados.
O mais velho arregalou os olhos, numa expressão de puro horror e o ar lhe faltou na hora. A mão no ombro do camponês apertou com força, mas o outro não pareceu se incomodar.
— Hoje à noite. — Ele conteve mais um soluço. — Hoje à noite, em apenas algumas horas, Cateline vai…
Jehan não conseguiu concluir a frase, mas não foi preciso. Ambos sabiam do que se tratava. Gidie aproximou-se mais do camponês, apertando o abraço, tentando em vão amenizar o desespero da situação.
— E Melisende? — Questionou o mais velho, baixinho, temendo a resposta.
— Está segura. — Disse, enxugando o rosto com as mangas. — Por enquanto. — Acrescentou.
— O que faremos? — Ele baixou ainda mais o tom de voz.
— Eu não sei. — Admitiu o camponês. — E é por isso que vim atrás de você. Na esperança de que este bardo iluminado nos mostrasse uma solução. — Explicou, forçando o tom formal que tanto usavam um com o outro, a fim de de aliviar o clima pesado.
A preocupação no rosto do bardo, porém, se intensificou. Conhecia o outro bem o suficiente para entender que o uso do tom formal naquele momento significava que, no fundo, Jehan ainda não havia perdido as esperanças. Uma pequena parte dele ainda acreditava que poderiam salvar a curandeira da execução iminente.
Gidie suspirou pesadamente, antes de perguntar, por fim:
— Onde está Cateline?
Jehan prendeu a respiração por um momento, e seu rosto pareceu encher-se de expectativa. Ele secou desajeitadamente o que restara das lágrimas em suas bochechas e endireitou a coluna, encarando firmemente o mais velho.
— Presa. Há apenas dois guardas — começou —, se conseguirmos distraí-los por tempo o suficiente para—
— Não. — Interrompeu o bardo. — Nem pensar. Isso seria caminhar diretamente para a fogueira.
— Mas…
— Mas — continuou —, há uma solução. Diga-me, o quanto o padre viu?
— Ele não viu. — Respondeu Jehan, incerto. E então, seus olhos se arregalaram, e ele pareceu entender o que o outro queria dizer. — É isso! Ele não viu.
— O que significa que alguém dedurou. E quantas pessoas sabiam da situação com Melisende? — Perguntou, sério.
O mais novo pareceu ponderar por alguns segundos, e seus olhar percorreu os arredores nervosamente. Sua expressão se contorceu em um misto de medo e choque, e ele levantou-se bruscamente, deixando a capa do outro cair de seus ombros.
— O pai dela! — Exclamou, assustando o bardo. — Ele foi contra o tempo inteiro. Disse que não deveríamos nos meter com essas coisas, que Deus sabia o que estava fazendo. Mas é claro!
— Isso! — Concordou Gidie. — E se conseguirmos provar que ele estava errado, que foi tudo um grande mal entendido antes do cair da noite—
— Conseguimos salvar a vida de Cateline — completou —, e não precisaríamos fugir para garantir nossa segurança.
O bardo apenas assentiu com a cabeça e pôs-se de pé rapidamente, jogando a capa de forma desajeitada sobre os próprios ombros e pegando o alaúde que só então Jehan notara estar ali, sobre um amontoado de folhas.
Gidie guiou o mais novo para fora da clareira, adentrando a floresta, parecendo saber exatamente qual direção seguir. E provavelmente sabia, afinal, já havia atravessado aquela mata incontáveis vezes.
O sol ainda não havia se posto quando os dois avistaram os limites da aldeia, e a esperança preencheu o peito do camponês. Em pouco tempo, já estavam atravessando as ruas tão conhecidas à passos largos, atraindo alguns olhares curiosos por onde passavam.
Mas antes mesmo de chegarem ao destino, a figura de uma moça correndo entrou em foco repentinamente, e parou milésimos de segundo antes de colidir com os dois. Ela estava ofegante, e eles a reconheceram na hora.
— Cateline — começou a voz trêmula de Melisende — está sendo levada agora.
O bardo e o camponês se entreolharam horrorizados, e o ar faltou em seus pulmões. Jehan estendeu a mão para Melisende, que aceitou, sem encará-lo nos olhos. Sua palma estava suando frio, e ela tremia.
A camponesa guiou os recém-chegados para longe dali. Nenhum dos três foi capaz de dizer nada, e a cada passo o clima pesado tornava-se mais sufocante. A respiração de Gidie estava pesada, e ele apertava com força o alaúde em uma de suas mãos, enquanto a outra segurava firme o ombro do mais novo. Jehan lutava em vão contra suas próprias lágrimas, enquanto Melisende mantinha o olhar fixo no chão à sua frente.
— Talvez — o camponês quebrou o silêncio —, talvez ainda dê tempo.
A mão em seu ombro estremeceu, enquanto a de Melisende apertou sua própria. Nem a camponesa nem o bardo viraram-se para encará-lo.
Foi com horror que Jehan levantou o olhar e constatou que haviam chegado ao destino. E que era tarde demais.
Ali, rodeada por rostos tristes, preocupados ou raivosos, estava Cateline. Seu vestido longo e verde estava levemente surrado na barra, e uma parte de seus cabelos castanhos havia se soltado da trança que costumava ser tão bem arrumada.
Suas mãos estavam atadas em sua frente, e era possível ver a pele avermelhada por baixo das cordas. Apesar de tudo, sua expressão não demonstrava nada além de valentia e decisão.
O estômago de Jehan revirou ao perceber a estaca de madeira um pouco atrás da curandeira, com todos os preparativos prontamente organizados.
O camponês agora tremia forte, enquanto fitava a moça sendo amarrada sem nenhum cuidado à estaca por dois homens. Seu olhar, porém, permanecia inabalável, e ela não pareceu se incomodar com a brutalidade.
Um terceiro homem se aproximou da cena, segurando uma tocha. Jehan sentiu um forte enjôo, e o suor frio estava cada vez mais intenso. Seus joelhos cederam e ele foi amparado pelo bardo e a camponesa, mas não foi capaz de encarar nenhum dos dois.
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