O ronco do estômago de Darl ecoou pelo seu corpo, como se encontrasse seus ouvidos tanto por dentro quanto por fora. Tal reverberação apenas perturbava o coração inconsolável do garoto.
Não havia como decidir o que desejava mais: descansar ou comer.
Por que deviam passar por aquilo, de toda forma? Porque precisavam de algum lugar seguro para viver.
Por quê? Porque Gundar teve que trair o reino e abandonar seus deveres como soldado por Darl, a quem acolhera e viveu junto por poucas luas.
— Darl.
Por que Darl fora acolhido por aquele homem que respirava tão dificilmente que fazia parecer mais cômodo prender a respiração...?
— Darl!
— Uh?!
— Corre!
Antes que pudesse compreender o que ouvia, sentiu uma larga mão agarrar seu pulso e puxá-lo. Suas pernas apenas acompanharam em resposta para impedir que o corpo caísse.
Darl tentou olhar para sua volta enquanto corria, mas nada conseguiu ver.
Talvez por haver considerado que o garoto já corria em um ritmo aceitável, Gundar soltou seu braço. Assim que experimentou um breve momento de liberdade, os passos de Darl relaxaram e seu ritmo reduziu.
Algo saltou dos arbustos um pouco adiante, mas logo encontrou a sola do sapato do soldado.
Apenas porque que o homem teve que interromper a corrida, o garoto alcançou-lhe e parou a seu lado. No chão estava estirado um pequeno corpo asqueroso aparentemente imóvel.
— Continua correndo! —, um Gundar anormalmente rouco gritou. — Se aparecer algum, chuta!
Darl queria nada além de perguntar "como assim?", mas já estava sendo puxado pelo pulso outra vez.
Se correr repentinamente com fome, sede e com dores nas pernas era difícil, correr repentinamente com fome, sede e dores nas pernas após fazer uma pausa tão breve era ainda pior.
Gundar outra vez soltou sua mão, talvez por confiar nas pernas do garoto que puxava, ou por precisar de seu corpo livre para chutar outro goblin.
Arbustos pareceram farfalhar de suas laterais, mas Darl não quis olhar para ter certeza. Enquanto enfrentava seu dilema, notou que o soldado que corria adiante estava novamente se distanciando.
Com o melhor julgamento que podia fazer no momento, o garoto fechou os olhos e correu tão rápido quanto podia.
Tão rápido, talvez quanto correra naquela noite.
Quando abriu os olhos novamente, viu que estava mais próximo de Gundar, porém mais próximo ainda da criatura que saltou para entre os dois.
Não havia como parar, muito menos como desviar. Darl pôde apenas fazer como fora instruído, mesmo que não exatamente por causa da vaga instrução.
Com o peso de seu corpo ainda em movimento, o garoto transformou o passo que parecia ser o próximo antes de colidir com o goblin, que aparentemente carregava consigo alguma forma rudimentar de arma, em um pontapé.
Já fizera algo semelhante anteriormente no mesmo dia, e havia funcionado.
Ao esperar o impacto, não pôde evitar fechar os olhos outra vez.
Houve um momento um pouco longo demais quando seu corpo nada tocava, e outro curto demais quando certamente atingia — ou era atingido por — algo.
Seu corpo rolou pelo solo coberto por folhas secas mais vezes do que podia contar, ou talvez fosse apenas sua visão confusa.
De uma forma ou de outra, Darl foi capaz de apoiar seu corpo sobre os cotovelos. Porém, quando tentou fazer o mesmo com os joelhos, uma perna recusou-se a cooperar.
A razão para tal era a dor que emergia de sua coxa esquerda.
Ao girar o corpo e apoiá-lo sobre seu lado direito, o garoto teve um vislumbre melhor do estado de sua perna. Mas logo se arrependeu.
Presa à sua coxa havia uma haste de madeira que possivelmente estava nas mãos do goblin atingido. Não havia atravessado sua perna, mas fora fundo o suficiente para o garoto poder, apenas, contemplá-la com olhos dos quais escorriam lágrimas. Suas roupas manchavam-se com o sangue expelido.
— G-Gun... Gah...! —, tentou chamar por socorro, mas até sua garganta seca recusava-se a ajudar.
Uma sombra bloqueou a luz já fraca do avermelhado sol. Quando Darl foi capaz de discernir sua silhueta, engoliu a saliva que nem mesmo estava em sua boca.
A desespero batia em sua porta.
Estava certamente errado se alguma vez pensou que não precisar temer a morte tinha implicações semelhantes à dor.
Não importa o quanto quisesse fugir, mesmo que pudesse apenas rastejar-se e adiar brevemente a dor, Darl não conseguia mover um músculo. Nem mesmo podia tirar os olhos da criatura diante de si.
O goblin tinha as mãos nuas, o que sugeria que fosse possivelmente o antigo dono da arma. Sua expressão, com pontiagudos e amarelados dentes à mostra, parecia esbanjar escárnio.
Até que outra silhueta, como a de um urso, cobriu-lhe.
Em um instante, sangue jorrou.
Uma mão tão grande quanto sua cabeça tomara sua nuca enquanto a outra terminava o trabalho com uma adaga em seu crânio.
O corpo da criatura foi atirado para fora do caminho.
— Merda! Levanta! —, gritou o urso furioso chamado Gundar.
— Não dá! —, respondeu surpreendentemente à altura a lebre flechada chamada Darldollum.
Subitamente, moveu-se a cabeça do soldado que, com um grunhido, pôs a mão na têmpora.
Apenas quando mais pedras começaram a ser atiradas, o garoto compreendeu o que acontecia.
Elas vinham de todas as direções. Algumas atingiam Gundar, que se protegia com os braços, outras erravam, enquanto poucas iam ao encontro de Darl. Tudo indicava que já estavam cercados.
O soldado agachou diante do garoto. Sem explicações, empurrou seu joelho ao chão com uma mão enquanto, com a outra, arrancou a arma que perfurava sua perna. Era a agilidade de alguém apenas que sabia como agir diante do perigo teria.
Darl estaria admirado se todos os seus esforços não estivessem focados em gritar.
Em seguida, Gundar ergueu o garoto. Antes que Darl pudesse questionar o que estava havendo, já era carregado sob o braço do soldado que corria apesar do novo fardo.
Como a parte superior de seu corpo estava virada para frente, podia ver o caminho tão bem quanto seus olhos cheios de lágrimas permitiam. Desta forma foi capaz de observar o próximo goblin que se aproximou pela frente e também encontrou o pé de Gundar.
Chutes, de repente, pareciam uma arma sem igual, mesmo que Darl não pudesse gabar-se por saber usá-los com o mesmo nível de proficiência.
Sem demora, o soldado continuou sua fuga sem ao menor assegurar a morte do goblin.
Contudo, sua corrida pouco durou.
Repentinamente, cambaleou e caiu para frente enquanto girava o corpo. Quando atingiu o chão, Darl caiu sobre seu corpo.
Outra vez, antes que pudesse compreender a situação na qual estava inserido, Darl foi arremessado para o lado.
Quando seu corpo parou de rolar, viu as costas de Gundar, que possuía uma haste de madeira presa à capa. Em algum momento, havia sido atingido, o que resultara, aparentemente, em sua queda.
Ele avançou com um grito de fúria em direção a dois goblins. Cravou sua adaga na cabeça de um e roubou sua arma, que utilizou para atacar o outro. O segundo goblin recuou e foi capaz de evitar ser atingido.
Enquanto observava o combate, Darl notou a aproximação de outras criaturas armadas com pedaços de madeira e pedra. Uma a uma elas saíam de arbustos.
Não importava o quão forte Gundar fosse, não teria chance contra tantos.
Darl não podia simplesmente permanecer no chão. Ele tentou levantar-se e preparou-se para suportar a dor, mas, estranhamente, ela não veio.
Novamente de pé, o garoto pôs a mão na coxa. O tecido estava úmido de sangue, mas nenhuma ferida era encontrada.
Não havia dúvida. A dor de poucos momentos atrás e todo o sangue que manchava ruas roupas eram provas de que sua perna havia sido perfurada por uma daquelas criaturas.
Então, como era possível?
O mais importante no momento, porém, era como agir. Ele podia tentar fugir enquanto Gundar distraía parte dos goblins ou esperar que Gundar derrotasse a todos.
A última opção, muito provavelmente, seria impossível. Mas, talvez com a ajuda de Darl, houvesse uma chance.
O garoto podia ser de pouca ajuda no combate a curta distância, apesar da espada em seu cinto, mas possuía um...
Onde estava seu arco?
Muito provavelmente deixara sua arma cair em algum momento. Talvez ao ser puxado por Gundar e correr, ou quando haviam sido derrubados. Mas, de toda forma, refletir devia ser sua última prioridade no momento.
O arco ainda podia estar próximo. E foi com esse pensamento que Darl correu os olhos por seus arredores enquanto tateava sua aljava, apenas para descobrir que estava vazia. Após rolar tantas vezes, não era surpreendente que as flechas houvessem caído também.
Depender de uma arma de longo alcance estava agora fora de questão.
Conforme suas opções tornavam-se escassas, igualmente se reduzia sua distância aos goblins que lhes cercavam completamente. Qualquer direção seria igualmente arriscada para escapar.
Havia quase tantas criaturas de pé quanto dedos em suas mãos.
Quando olhou novamente para Gundar, viu que havia apenas um último goblin em combate, que logo caiu. Os mais próximos não pareciam ter pressa em entrar em combate todos ao mesmo tempo, como seria esperado.
Na verdade, ao observar melhor, foi possível notar que todos haviam parado de se aproximar. Apenas formavam uma circunferência em torno dos humanos.
Agilmente, o soldado girou a cabeça e então o corpo. Apesar da quantidade de sangue em seus braços e torso — cujas manchas são difíceis de discernir se são suas, dos goblins ou de ambos — parece identificar a posição de todos os inimigos e aliados em um instante.
Então se aproximou de Darl, sua respiração uma mistura de dor e bestialidade, apenas acentuadas por sua postura curvada e todo o sangue em suas roupas. Em uma mão ainda estava a adaga que usara repetidas vezes, assim como algo que parecia ser uma curta lança feita pelos goblins na outra.
— Conseguindo ficar... em pé...? —, perguntou em meio a suspiros, tirando os olhos dos inimigos apenas brevemente.
— Uh...? A-Ah! Sim...! Fechou! —, respondeu o garoto, entendendo e tentando falar em velocidades que não encontravam harmonia.
— Dá pra correr? —, Gundar não parecia entender ou ter qualquer interesse no evento fantástico que o garoto presenciara. Em vez disso, estava evidentemente focado em sobreviver.
— S-Sim!
— Então ouve bem...
O soldado aparentava ter instrução para conceber, mas interrompeu sua fala. Já seu olhar, diferente de antes, focava-se em uma única direção. Os olhos de Darl seguiram, e lá encontraram algo fora do normal.
De além das baixas criaturas, que facilmente se camuflavam entre os arbustos, algo abria caminho sob as sombras das árvores.
Era grande.
Um goblin abriu caminho para a nova criatura, que não fazia o menor esforço de circundar o outro que continuava no caminho. Casualmente continuou a andar e sua perna esbarrou no corpo do outro goblin, que cambaleou para o lado.
— Por Yahlov! —, exclamou Gundar. — É um hobgoblin!
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