Dar um nome tão semelhante ao daquelas pequenas e asquerosas criaturas a uma, apesar de igualmente desagradável aos olhos, tão grande soava como um insulto. Talvez "ork" fosse um nome mais adequado se "goblin" fosse a escolha para os demais.
Seu corpo era protegido no torso por o que certamente era uma armadura de anéis metálicos, agora escurecidos por ferrugem resultante de negligência. A cota de malha fora possivelmente adquirida do corpo de alguma vítima anterior, assim como a espada que carregava em uma de suas mãos.
O hobgoblin andava com as costas eretas, peito estufado. Ostentava uma confiança em sua força que nem mesmo Gundar poderia ter. Os músculos de seus braços pareciam ameaçar romper a áspera pele cinzenta que os cobria.
De sua mandíbula inferior cresciam dois dentes anormalmente grandes, evidentes mesmo com a boca fechada. Do topo de sua cabeça também cresciam ralos pelos escuros, assim como os goblins.
— Darl! —, o grito de Gundar fez-lhe pular. — Pro noroeste! Puxa a espada e corre com o sol na sua esquerda!
O plano do soldado com as costas viradas para o garoto imóvel parecia envolver ficar para trás e combater o hobgoblin. O modo como não parecia retirar os olhos do novo inimigo apoiava a hipótese.
Mas Darl não podia obedecer. O que faria sozinho? E se fosse perseguido pelos outros goblins? E como continuaria sua jornada por conta própria?
As instruções recebidas mais cedo, de toda forma, provavam que Gundar tinha isso em mente desde antes de entrar na floresta.
Mas era apenas uma forma de precaução, uma solução para um cenário completamente hipotético. Darl não seria deixado só.
Ele não morreria, certo? Então tudo que precisariam era manter Gundar vivo também. Na verdade, mesmo se a ferida em sua perna fechasse, fome e sede ainda poderiam matá-lo, não?
Ele estava com sede, sua garganta seca. Devia dizer algo, mas nada saía de sua boca aberta. Queria chorar, mas seus olhos, que não deviam piscar há algum tempo, estavam igualmente secos.
Talvez pudesse ser feito de escudo. Suas feridas fechariam, afinal. Desde que o soldado vencesse, estariam todos bem no final.
Mas isso doeria. Doeria muito.
Darl não queria sentir dor.
Não mais.
— Corre!
— M-Mas...! G-Gun... Eu... n-n-n...!
A figura do enorme homem se moveu e logo deixou o campo de visão do garoto.
Não. Era Darl que olhava para frente em um momento e para o lado em outro.
A sensação que logo queimava sua bochecha era resultado do golpe que recebera. Fora um tapa de Gundar, um gesto que parecia carregar a hostilidade que tanto temia receber da última pessoa ainda gentil com ele.
O soldado jamais havia levantado a mão contra o garoto antes.
— Agora! Corre!
Outra vez, Darl apenas obedeceu. Ele moveu os pés, virou as costas, fechou os olhos e correu.
Ele estava deixando Gundar para trás.
Ele estava deixando a última pessoa no mundo que lhe acolheria para lutar até a morte.
Ele estava para abandonar o pouco que restava do mundo que conhecia.
Ele abriu os olhos outra vez. O tempo em que nada vira, aparentemente, havia sido menor do que pensava. Porém, de toda forma, logo alcançaria a barreira imaginária feita pelos inimigos.
Darl podia escolher entre tentar correr por entre dois goblins ou atacar um conforme corria.
Mas ele não escolheu, apenas seguiu adiante, o que resultaria no mesmo que optar pela segunda opção. Tão agilmente quanto podia, retirou sua espada da bainha, segurou-a na frente do peito e continuou a avançar.
O goblin adiante tinha uma espécie de machado em mãos e parecia pronto para receber o ataque. Ainda assim, seus braços eram curtos e sua arma também.
Darl não precisaria de habilidade para atingi-lo de uma distância segura. Só precisava fincar sua arma no corpo da criatura e continuar a correr. Talvez nem precisasse parar para recuperar a arma.
Com essa esperança, no momento do encontro com o goblin, o garoto esticou os braços e deixou que seu peso atuasse onde faltava planejamento. Desta vez, entretanto, não fechou os olhos.
Viu sua espada ser empurrada para frente, e então para o lado.
Com o cabo de seu machado, o goblin refletiu a lâmina da espada que vinha em sua direção. Era como se até mesmo esta criatura fosse mais habilidosa que ele.
O garoto perdeu a postura que nunca teve e cambaleou para o lado que sua arma fora desviada. Pensou em revidar assim que recuperasse o equilíbrio. Afinal, devia ser mais capaz que um goblin, mas teve uma ideia que, dadas as circunstâncias, pareceu-lhe próxima de genial.
Ao invés de retomar o combate, ainda em sua desequilibrada inércia, continuou a fugir.
Não olhou para trás. Apenas contou com a chance de seu adversário não lhe perseguir imediatamente e correu com a espada em mão.
Os goblins eram rápidos, mas talvez, só talvez, se corresse com todas as forças, pudesse sair ileso.
Até que seu pé acertou algo. Por culpa de uma pedra, uma raiz, ou o fantasma que vive para quebrar expectativas, caiu sobre o chão escuro. Sem espera, forçou seu corpo a se levantar. Apesar de sua espada haver caído sob seu corpo, não lhe feriu. Foi sorte, muita sorte.
Restava-lhe fazer bom uso de tal sorte.
Mas os ágeis passos que vinham de trás pareciam próximos demais. Temente do que se aproximava, girou seu corpo e fez um corte cego para trás.
Sua espada nada encontrou. Já seus olhos, diferentemente, depararam-se com a figura cinzenta que não podia fazer melhor uso do momento. Darl fizera um corte descuidado, com o inimigo distante demais para ser atingido, e próximo demais para se manter seguro.
O goblin desferiu um corte com o machado. Só restou a Darl proteger-se com seu braço livre.
A dor foi tal que o garoto mal pôde forçar-se a abrir os olhos.
Ele nem mesmo quis olhar para o estado de seu braço esquerdo. Da posição em que estava, apenas fez uma estocada com a espada.
Pareceu atingir o goblin na barriga, mas não fundo. A criatura havia se afastado, então a distância não era ideal para a lâmina.
Mas era para seu pé.
Com toda sua força, Darl empurrou o goblin para trás com o pé.
Apesar de leve, o inimigo apenas cambaleou para trás e recuperou sua postura em poucos passos. De toda forma, a distância novamente adquirida, apesar de pequena, era tudo com o que o garoto podia contar.
Rapidamente pôs as mãos no chão e conseguiu o impulso para levantar. Pela forma como pôde usar o braço ferido, o corte não havia sido profundo. Chegou a considerar se havia fechado como antes, mas ainda doía, então a resposta estava clara.
Enquanto Darl considerava se deveria lutar contra o único inimigo ou correr enquanto a distância entre os dois estava favorável, mais dois goblins se juntaram ao do machado.
Era tão injusto. Simplesmente impossível.
Por que as coisas chegaram a tal ponto?
O que esteve havendo em sua vida desde aquela noite no verão poucas luas atrás?
De quem era aquela voz que ressoara em seu coração naquelas vezes?
Com um grito que dificilmente refletiria suficientemente sua frustração, Darl atirou sua espada contra o goblin mais próximo, virou-se e correu.
As lágrimas que o vento secava tinham seu lugar tomado por novas que escorriam.
Existia alguma opção? Existia algum caminho?
Gundar já devia estar morto.
Mesmo que suas feridas fechassem por conta própria em instantes, o que aconteceria se os goblins pudessem-lhe encurralar?
Ele já escapara de uma situação pior, não?
Já esteve amarrado a uma árvore, cercado de pessoas pouco diferentes das criaturas que lhe perseguiam.
Naquele momento, também ouviu aquelas palavras.
Aquela voz.
Era dito que Yahlov auxiliava os verdadeiramente justos em situações de injustiça quando são humildes o bastante para admitir sua fraqueza.
Mas não foi pelo Padrasto que Darl chamou.
— Se você tá me ouvindo… —, o garoto direcionou suas preces ao único ser que podia vir à sua mente, por mais que guardasse dúvidas quanto à sua existência. — Não sei quem você é, mas me ajuda!
Os gritos de Darl foram respondidos pelo golpe que recebeu nas costas de seu joelho.
Seu rosto foi imediatamente de encontro ao chão. Tomou sua boca o gosto da terra que foi logo cuspida.
Quantas vezes caíra neste mesmo dia enquanto fugia de goblins?
O garoto tentou levantar-se, mas era seu joelho que se recusava a dobrar. Qualquer tentativa de forçar aquela perna era recebida com mais dor.
Logo sua perna não foi mais o único local atingido.
Suas costas foram o próximo alvo, assim como a cabeça e os braços que se moveram para a proteger.
— P-Por favor! Me ajuda! —, com todo o ar que restava em seus pulmões, Darl gritou suas dolorosas súplicas novamente.
Mas os goblins continuaram a atacar sem piedade. Chutes, cortes com machados e estocadas com suas lanças de madeira e pedra.
O som dos golpes que abriam fendas na carne de Darl junto ao bater de seu coração criavam uma cacofonia única em seus ouvidos sobreposto apenas por seus gemidos.
Até que a melodia pareceu acalmar.
Não que as batidas cessassem. Era como se, aos poucos, tornassem-se distantes.
Elas davam lugar ao único som permitido neste mundo de silêncio.
— Dai wallu em Ridet. Dulendai-yu dai Sanvituz ue. —, foi dito pela morna voz sem face.
Aquelas palavras, tão familiares, trouxeram consigo a leveza que apenas aqueles que possuem asas sentiriam imersos no ar.
A tranquilidade daqueles que descansam diante da chama de uma lareira nos últimos dias de inverno.
E daqueles que vivem sem temores, o sorriso.
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