França, 1349
Jehan adentrou a casa às pressas, removendo o pano que cobria parte de seu rosto e atirando-o num canto. Melisende ainda não havia chegado, e o silêncio no local era quase sufocante.
A cura fornecida pelo padre agora não passava de uma memória distante, soterrada por sonhos esmagados e esperanças destruídas. Não houve mudanças. Não teve novo membro na família. Mas com o passar do tempo, o casal se acostumou com a situação.
A casa, porém, raramente permanecia na calmaria por muito tempo, já que ao menos três vezes por ano o bardo era acolhido pelo casal de camponeses. Ou assim costumava ser. Jehan lançou um olhar rápido para o monte de feno, sentindo um aperto no peito.
Há pouco mais de um ano Gidie partira em mais uma de suas jornadas, e desde então não se ouvia mais falar no bardo. Não muito tempo depois de sua despedida, os rumores sobre a praga haviam começado a surgir.
Em exatos seis meses da partida de Gidie, o primeiro caso da doença afetou a aldeia. Não demorou muito a partir daí. O caos se instaurou de forma rápida e devastadora. Muitos deixavam o povoado diariamente, na esperança de conseguir fugir do perigo avassalador.
Jehan e Melisende haviam diversas vezes cogitado a possibilidade de fuga também, e estavam prestes a seguir por esse caminho no dia em que a taverna não abriu as portas.
A lembrança vívida de apenas algumas semanas atrás ainda atormentava o casal. O homem de máscara andando à passos largos em direção à casa da irmã de Melisende. Naquela tarde, nenhum dos dois camponeses foi capaz de visitá-la.
Em menos de três dias, a notícia do falecimento da dona da taverna atingiu a aldeia como uma bomba. Melisende entrou em estado de choque, e Jehan não encontrara palavras que pudessem apaziguar a situação.
Na última semana, a camponesa parecia estar finalmente se recuperando. O dia-a-dia do casal, porém, ainda era carregado de medo constante pelo que viria a seguir, e muitas vezes, o apoio emocional que tinham um no outro não parecia o suficiente para afastar todo o receio.
A porta de madeira se abriu bruscamente, e o grito ininteligível quebrou o silêncio, despertando o camponês de seus pensamentos. Sem pensar duas vezes, ele correu ao encontro da recém-chegada, amparando-a desajeitadamente.
Melisende o agarrou com força, afundando o rosto em seu pescoço, chorando de forma quase que descontrolada. Jehan sentiu o corpo gelar e tremer, enquanto tentava em vão acalmar a esposa, retribuindo o abraço apertado e acariciando suas costas.
— Roul se foi! — Exclamou, em meio aos soluços. — Eu o vi! Eu o vi, Jehan, eu—
Mas a frase não foi concluída, tamanho era o desespero da camponesa. E não precisou, a notícia foi como um balde de água fria sendo jogado sobre Jehan.
O ferreiro, quem ele conhecia desde que se entendia por gente. O homem que sempre estivera ali, disposto a ajudar, quando Gidie não estava na aldeia e seus pais já haviam partido há muito tempo.
A pessoa sorridente que o acolhera em seu local de trabalho quando se sentira sozinho. Que o deixava brincar com as ferramentas mais variadas, por vezes lhe ensinava como manuseá-las. Quem havia prestado socorro, beirando ao desespero, quando Jehan derrubara o martelo pesado no próprio pé. O que muitos anos depois viraria uma piada interna entre eles.
Se Gidie tornara sua adolescência iluminada, Roul era o responsável por boa parte de seus sorrisos na infância. E sobre isso não restavam dúvidas.
Pensar que jamais o veria novamente doía. Doía muito mais do que o ferro pesado rasgando seu próprio pé. Muito mais do que a ideia de não ter filhos. Doía muito mais do que Jehan conseguia suportar naquele momento.
Aos prantos, ele apertou ainda mais o abraço e deixou-se cair de joelhos no chão, levando Melisende consigo.
E assim permaneceram os dois, por longas e dolorosas horas. Naquele momento, Jehan não se importou com o futuro, ou com o medo constante do que aconteceria. Afinal, já estava acontecendo.
Os dias que seguiram foram arrastados e sombrios. Poucas palavras eram trocadas entre o casal, e Jehan parecia cada vez pior.
Seu olhar, outrora refletindo esperança, já não possuía mais brilho. Seu sorriso radiante parecia cada vez mais uma lembrança longínqua, esvaindo-se aos poucos da memória da camponesa. O homem tão apaixonado pela vida e o conhecimento agora já não tinha sonhos, e sequer conseguia manter um diálogo por mais de alguns minutos.
Por vezes, faltou comida. Por vezes, o pavor era tanto que o casal de camponeses não era capaz de deixar a casa.
As notícias, porém, eram bradadas em alto e bom som por aqueles que ali passavam. Os pedidos de perdão, piedade e misericórdia eram esbravejados sem o menor pudor. O destino cruel daquele povoado agora parecia uma certeza.
E foi em um dia particularmente frio que o camponês sentiu as pernas fraquejarem ao tentar se levantar da cama. Melisende acordou com o baque, assustada, e prontamente pôs de pé, ajudando o marido a se erguer.
A fome que o camponês sentia beirava ao insuportável, e ele não tinha mais forças, de forma que se deixou apoiar na moça e ser guiado de volta para o colchão de palha.
Ela pareceu hesitar por um instante antes de ir até a velha bolsa de pano e voltar com uma maçã na mão, entregando-a a Jehan.
— Quando? — Questionou ele, aceitando a fruta. Não precisou concluir a frase para que Melisende compreendesse sua pergunta.
— Ontem à noite. — Disse, levando uma das mãos até o próprio pescoço, coçando discretamente e desviando o olhar para o chão. — Era a última da macieira.
Jehan paralisou com a maçã à poucos centímetros de seu rosto. Ele fechou a boca e encarou a esposa, preocupado.
— Por favor, coma. — Pediu ela. — Você sequer está aguentando ficar de pé. Precisa mais do que eu.
— Melisende… — Começou, com a voz trêmula.
— Não se preocupe. — Interrompeu a camponesa. — É o mínimo que esta pobre dama pode fazer por seu amado instrutor e marido. — Ela forçou um sorriso, virando-se para Jehan e curvando-se suavemente.
O homem lançou-lhe um olhar apreensivo, recebendo em resposta um aceno positivo de cabeça. Hesitante, ele mordeu a maçã, sentindo o estômago embrulhar ao constatar que aquela poderia ser a sua última refeição pelos próximos dias.
Mas o camponês parou de comer quando a fruta chegou ao tamanho que ele julgou ser a metade de seu original. Então, estendeu o que restou para Melisende.
A camponesa, porém, desviou o olhar novamente e voltou a esfregar a mão no próprio pescoço, aflita. Ela respirou fundo antes de admitir:
— Ontem, quando fui até à igreja, o padre me deu um pedaço de pão. Estava me sentindo tão fraca, e ele disse que não teria problemas… — Ela estremeceu levemente. — Eu peço desculpas. Sei que deveria ter trazido para cá—
— Está mentindo. — Jehan constatou, encarando-a incrédulo. — Está mentindo para mim. — Ele repetiu.
A moça pôs-se a fitar o chão novamente, parecendo arrependida e assustada. Um silêncio esmagador pairou no ar entre o casal, e o camponês sentiu medo do que viria a seguir. Pela primeira vez em tantos anos, Melisende estava tentando enganá-lo e isto havia ficado claro pelo seu tom de voz. Embora não soubesse o motivo, o ato por si só já era suficiente para deixá-lo aterrorizado.
Por um breve momento, a camponesa baixou a mão inquieta para o ombro. E foi com horror que ele notou o inchaço no pescoço da esposa e as pontas dos dedos escurecidas.
Naquele segundo, Jehan sentiu o mundo desabando sobre sua cabeça, esmagando-o sem dó nem piedade. A maçã caiu no chão com um baque, fazendo a camponesa virar-se para o marido. O choque em seu rosto foi claro ao notar os olhos marejados do homem.
Ela estendeu a mão na direção dele por um breve segundo, antes de recolher e esconder atrás de si, tentando em vão proteger Jehan da verdade.
E então, Jehan se permitiu chorar descontroladamente. Seu último sustento, sua última pequena esperança de uma vida feliz estava prestes a ser arrancada violentamente de si. E mais uma vez, a dor veio como um golpe de espada atingindo seu coração.
Melisende deu um passo para trás, sentindo as próprias lágrimas começarem a escorrer por seu rosto. Ela ajoelhou-se, entregando-se à todo o sofrimento contido que havia tentado esconder. Os soluços violentos e irregulares quebravam o silêncio cortante daquela manhã que há pouco parecia uma das mais pacíficas que teriam em algum tempo.
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