Um grande estrondo ecoou por toda a clareira. A Grande Árvore Déku sentiu suas folhas caírem novamente e seus galhos penderem sem forças, cada vez mais difíceis de aguentar. Está mais constante, pensou. Apreensiva, respirou o mais profundamente que pôde.
Desde o acontecido, tentara manter-se firme e imponente perante todos, mas tem ficado pior a cada dia. Orgulhosa, deixou que seus próprios anticorpos defendessem seu íntimo, mas sabia que talvez fosse tarde demais. Sua dor crescia enquanto seu lar jazia e em breve não teria mais desculpas para seu sofrimento.
Olhou para o céu envolta de pensamentos. Os vaga-lumes da floresta sobrevoavam ao seu redor e podia sentir olhos preocupados a observarem por entre as árvores próximas; a clareira pressentia. Logo, todos saberiam. Protegi a tudo e a todos por tantos e tantos anos. Um espírito guardião deveria dispôr de mais resistência. E por fim sentiu seu orgulho se estilhaçar mais um pouco em conjunto de mais um estrondo. Os vaga-lumes se afastaram em sobressalto, apenas para voltar segundos depois, ainda mais preocupados.
Já não havia mais tempo.
A árvore respirou fundo e juntou suas forças para chamar. A voz pesada e cansada.
— Navi! Navi, onde tu estás? Venha até mim...
Pareceram horas até a fada surgir em sua frente, mas sabia que ela fora rápida como sempre. Com peito estufado e uma lealdade inestimável, Navi exibia-se ereta diante de seus olhos, escondendo sua preocupação com pouco sutileza. Ali, com seu ar poderoso, sabia que seria perfeita para o caso.
— Chamou, mestre? O que deseja? – perguntou a fada. A voz aguda e intensamente respeitosa.
Navi era uma das muitas criaturas mágicas comumente encontradas nas florestas de Hyrule. Era minúscula como um inseto, pouco maior que os vaga-lumes que pairavam na clareira, mas exibia felicidade e sabedoria como poucos conseguiriam – embora Navi fosse a fada mais exigente que já conhecera, seu ímpeto lhe trazia grandes provações.
— Oh, Navi... – arfou a Árvore. – Ouça minhas palavras com atenção. Palavras da Grande Árvore Déku. Tu estás sentindo? A atmosfera maligna que se alastra por este reino...
A fada permaneceu quieta, mas ali, embora em tamanho diminuto, a Grande Árvore podia ver que Navi certamente sentia. A própria guardiã era motivo disso, as dores em seu interior refletiam na floresta mais do que poderia ignorar. A outrora gigante e majestosa árvore era visivelmente menor que em seus tempos majestosos. O brilho em suas folhas se fora, e muitas delas agora se amontoavam ao redor das raízes. Sua voz, antes poderosa e imponente, perecia da mesma enfermidade. E a enfermidade era ainda mais evidente em seu tronco enegrecido e enrugado.
— Minha pequena fada, enquanto estamos aqui presumindo que estamos protegidos, forças maléficas estão reunindo tropas para assolar nossa terra, a grande Hyrule... – começou ela, com dificuldade. – Por muito tempo, a Floresta Kokirí foi a fonte de vida de todo o reino e resistiu como uma exímia barreira que impedia intrusos e mantinha a ordem de nosso mundo, mas, diante desta nova e emergente perversidade, até mesmo o meu poder não é nada.
Navi ergueu seus olhos em surpresa.
— Como assim, mestre? Seu poder não é suficiente? Você está mesmo...
— Apenas me ouça, por favor... – interrompeu, quase sem força. – Temos que agir o mais rápido possível, já não disponho de muito tempo, devo admitir. Há chegado o momento do garoto-sem-fada desempenhar o que o destino lhe propusera desde seu nascimento. O jovem cujo propósito é conduzir Hyrule ao caminho da justiça e da verdade...
A fada se enrijeceu, pressentindo o que estava por vir.
— E por que ele? – Perguntou, curiosa e insensível.
— Apenas obedeça, minha filha. Ignore suas adversidades com tais criaturas. Seja prudente e vá imediatamente encontrar nosso amigo. Guie ele até mim. Voe até onde ele adormece. O destino da floresta e do mundo depende de ti neste momento, não permita que suas contrariedades reflitam em inconveniências muito maiores.
— O-Ok. Farei isso – respondeu com relutância.
— Agora, vá.
A fada se remexeu com impaciência e pôs-se a voar para o túnel de saída da clareira, sem dizer mais nada.
A Grande Árvore Déku tornou a olhar para o céu, reflexiva. Havia pouco a se fazer a partir daquele momento, a não ser confiar em sua pequena Navi. Sentindo as dores dentro de si cada vez mais fortes, tentou se concentrar de modo que pudesse resistir um pouco mais. Apenas um pouco mais.
**
O garoto-sem-fada. Um Kokirí. Certamente não era possível.
Apesar de toda a urgência, Navi não conseguia acreditar que agora teria de lidar com os Kokirís tão de perto. Nunca gostara dos pequenos, era a verdade. Navi era uma fada livre, servindo apenas seu mestre, só o fato de pensar que um dia poderia ter feito parte do círculo de fadas conselheiras a deixava inquieta. Todas aquelas fadas que tinham como único objetivo guiar toda criança Kokirí para o crescimento espiritual não eram mais do que tolas, é claro. Haviam bens maiores na floresta, como prestar serviços à grande guardiã, por exemplo. Qualquer coisa era melhor do que lidar com os filhos da árvore, crianças que nunca cresciam, pirralhos aventureiros que eram incapazes de perder o fôlego e manterem-se formais e quietos um minuto sequer, pensou. Navi sem dúvida alguma não tinha a paciência necessária para aguentá-las.
Mas lá estava ela, a caminho da vila dos Kokirís. Uma vila, até podia-se admitir, bastante organizada. Um lar criado para que as crianças se mantivessem entretidas em afazeres, estudos e brincadeiras ao ar livre. No fim, a vila era na verdade um grande parque à céu aberto, muito bem escondida na área central da floresta profunda, repleta de pontes, cavernas, árvores e labirintos de civilizações há muito esquecidas. O garoto-sem-fada, como era conhecido por todos pelo fato de ser o único Kokirí sem uma fada conselheira, morava no centro da vila, e era, sem sombra de dúvidas, o mais irritante de todos e, notava-se, de uma forma bastante peculiar. Não só pelo fato de ser o único sem uma fada, fato sequer comentado pela grande guardiã, mas também por seu comportamento incomum; era ainda mais animado do que os outros, sempre correndo para todos os lados em uma impressionante brincadeira que nunca parecia ter fim, um verdadeiro incansável cuja motivação Navi queria passar longe e ainda assim, não era de muito falatório como outros Kokirís tagarelas.
O fato mais corriqueiro, apesar de tudo, se devia ao modo como todas as crianças gostavam dele de uma forma quase incompreensível. Era o que ouvia comentarem. E agora, não havia dúvidas de que a Grande Árvore Déku também nutria um carinho pelo garoto. Sua origem era repleta de mistério e vez ou outra a grande guardiã lhe delegava missões das mais estranhas, como vigiá-lo a cada mudança de estação para ver se seu corpo espichava mais do que os outros. Navi não entendia, é claro, mas aceitava o fardo de bom grado, desde que mantivesse a tão adorada distância. Sempre dizia que vigiá-lo não incluía salvá-lo de seus próprios problemas, e isso acontecia muito frequentemente ao redor do garoto-sem-fada, como perder-se na floresta ao redor da vila, o que a divertia em seu relatório.
Mesmo sendo orgulhosamente conhecida como a maior floresta do Reino de Hyrule, a floresta Kokirí não era nenhum obstáculo para Navi, voava depressa por entre árvores e galhos do túnel principal que levava à vila, ultrapassando criaturas e animais sem qualquer decoro. A vila surgiu em sua frente intocável desde sua última visita. Os lagos no centro, as pontes suspensas que ligavam os tetos das casas e estabelecimentos feitos em troncos de árvores, as cavernas ao fundo e, claro, os muitos Kokirís em seus afazeres aleatórios - alguns corriam para todos os lados, outros brincavam com suas fadas e uns com os outros, e alguns tentavam, por algum motivo que ela não tentaria imaginar, carregar pedras e empilhá-las em um circulo perfeito.
Respirou fundo e se pôs a caminho da casa mais ao alto no centro da clareira. As crianças nem notaram sua velocidade ao passar, as fadas companheiras, por outro lado, faziam questão de virar a cara quando Navi surgia. Tolas, pensou. Sua pressa não permitia lidar com disparates irrelevantes. Voava sem parar, desviando dos muitos obstáculos no caminho, como quando quase esbarrou com uma das orelhas pontudas de uma Kokirí sentada no alto de uma escada suspensa. Mas sua habilidade não fora o suficiente para desviar de um cercado que havia próximo a casa do garoto-sem-fada, dando de cara com a madeira e gritando em alto bom som para todos ouvirem.
Recompôs-se e respirou profundamente. É urgente. É urgente.
A cada do garoto era localizada bem no meio da vila, entre dois pequenos morros no alto de um grande tronco de uma árvore secular. Era muito semelhante a todos os imóveis na vila, é claro. Um grande espaço oco no interior de um tronco podia abrigar camas, pequenas estantes, baús para roupas e apetrechos e as mais variadas decorações, dependendo para que o estabelecimento serviria. Ao entrar, porém, assustou-se não com a decoração, mas com o menino que se remexia na cama de maneira inquieta. Intrigada, aproximou-se e ouviu sussurros inaudíveis. Não havia jeito:
— Link! Acorde!
O garoto apenas se remexeu enquanto franzia o rosto em meio ao sono.
— A Grande Árvore Déku o chamou, Link. Levante-se agora, por favor!
Nenhuma resposta. Navi tentou se aproximar ainda mais do rosto do garoto, empurrando seu nariz com toda a força que tinha, até fechar suas mãozinhas e disparar socos e pontapés. É urgente, pensou novamente.
Link abriu os olhos lentamente e a encarou por alguns segundos, até colocar-se de pé em sobressalto, aos gritos de surpresa, arremessando Navi para longe.
— Garoto! – Gritou a fada, freando em pleno ar para não se chocar com um vaso. – Você está louco?!
O rosto de Link estava perplexo. Seus olhos pesados piscavam em confusão enquanto observava Navi se aproximar com cautela, e sua boca desenhava um grande sorriso em seu rosto.
— Creio que você estava tendo um pesadelo... – começou ela, enquanto Link franzia a testa tentando lembrar-se. – Mas eu lhe peço, por favor, esqueça-o. Você tem importantes deveres para tratar neste momento, e eu estou aqui para guiá-lo...
Link arfou sonoramente, sorrindo ainda mais. Navi demorou alguns segundos para entender e logo arrependeu-se do que dissera.
— Espera um segundo — retorquiu ela imediatamente —, não é...
O garoto gritou em alegria e a agarrou de maneira desengonçada enquanto pulava para lá e pra cá. Em seus braços, Navi parecia que iria golfar a qualquer momento. Mas suspirou. Link era, de fato, um garoto peculiar, e que nunca tivera uma fada conselheira em sua vida. Na mesma hora Navi arrependeu-se do que dissera.
Uma criança peculiar, de fato. Não só por seu comportamento estranho e irremediável, Link tinha mais uma característica incomum: nunca falava mais do que algumas poucas palavras, como se as guardasse para os momentos mais importantes. E os outros Kokirís o adoravam por isso, lhe dava um ar de simpatia que Navi nunca entendera. No fundo, possivelmente, Link fosse apenas uma criança qualquer que buscava aceitação e o fato de nunca ter adquirido uma parceira fada conselheira o incomodasse desde sempre. Sempre que questionava a Grande Árvore Déku sobre tal fato, sua resposta era sempre silenciosa. Assim como Link, que não tinha fada e resumia suas palavras a quase nada além de gargalhadas e um humor além da conta.
Depois de soltá-la, Link espreguiçou-se e deitou novamente na cama, como quem se delicia com as novidades.
— Como pode o mundo depender de um garoto tão preguiçoso? – Navi murmurou baixinho enquanto o observava por alguns segundos, e então limpou a garganta. — Pois bem, eu me chamo Navi. A Grande Árvore Déku solicitou que eu o chamasse à sua presença, prazer em conhecê-lo. Irei acompanhá-lo por hora.
De súbito, Link correu em círculos pelo quarto-sala de sua casa em comemoração. Seus braços se erguiam para o alto e suas pernas inquietas não erravam o passo enquanto dava pulos de alegria.
— Acalme-se garoto – interviu Navi, relutante. – Isto é temporário... Só estou aqui porque a Grande árvore Déku convocou você. Então vamos indo imediatamente, temos certa urgência.
Link parou, ainda sorrindo. Sua resposta limitou-se a passar a mão pelos cabelos, ajustar o cinto, e correr para fora, pulando em direção à porta como quem acabara de ganhar um grande prêmio. Navi o observou sumir enquanto assimilava o comportamento do garoto. Estava absorta e um tanto ansiosa, era claro, mas sentiu-se estranha por um momento, como se sua autoestima a engrandecesse a partir da felicidade de Link. Suspirou. Lidar com Kokirís, o quão importante são seus pedidos, ó grande árvore. E o seguiu para fora batendo suas asas com velocidade.
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