Cada dia seguinte repetiu-se como o anterior, um ciclo perfeito de crepúsculo a crepúsculo.
A única diferença, contudo, era que cada manhã parecia mais fria, seu estômago mais vazio e suas pernas mais fracas.
O soldado e o garoto raramente dirigiam uma palavra ao outro, como se quisessem preservar a saliva que também se esvaía junto à água, ou porque cada palavra dita doía de mais formas do que uma.
Quando finalmente se depararam com um riacho novamente, lavaram o sangue já velho de suas roupas como foram capazes, além de beber e armazenar toda a água que puderam.
Ambos seguiam a norte, mas, ao longo do caminho, as estradas bifurcavam-se com certa frequência.
Darl era deixado a se questionar sobre como o mundo se estendia para os demais caminhos. Talvez houvessem reinos, talvez houvessem cidades e vilarejos, talvez houvessem mais guerras.
O mundo parecia inacabável, seu horizonte eterno. Era, de muitas formas, assustador.
Poucas luas atrás, podia jurar que a terra estendia-se até onde iam os bosques, onde morava. Isso dava-lhe certa segurança, como se seu conhecimento curto como a lareira que lhe aquecia no inverno fosse o que a mantinha próxima.
Agora, contudo, eles caminhavam sem fim, sem uma lareira, mas com um inverno que se aproximava.
Em um dia, repentinamente — ou apenas assim parecia, pois qualquer evento distinto naqueles dias idênticos seria uma novidade sem igual — muros e construções ergueram-se no horizonte, com campos cultivados ao redor e as conhecidas bandeiras de Alken a balançar ao vento.
— Aqui é Lendal. —, o ex-soldado abriu a boca pela primeira vez em muito tempo. — Depois daqui, o reino de Alken vai ter acabado, e logo vamos estar em Weid...
Enquanto explicava, Gundar foi novamente tomado por uma crise de tosses. Talvez todo o tempo sem falar houvesse secado sua garganta.
Ainda assim, também havia tossido com certa frequência nos últimos dias, mesmo quando nada falava.
Após retirar a mão da boca, cruzou os braços e prosseguiu.
— Weidmar... A gente vai fazer o mesmo da última vez, mas as florestas aqui são mais vazias e seguras. Enfim... Ficar aqui no meio da estrada é perigoso. Vamos contornar a cidade.
E assim fizeram outra vez.
Como o próprio ex-soldado havia dito, as florestas de Lendal eram mais vazias que a de Alkerfell, a capital. Não apenas na vida selvagem, mas a própria vegetação era menos densa.
Ao mesmo tempo que isso reduzia as chances de ataques de lobos ou goblins, aumentava o risco de serem vistos por outros humanos. Era como se todo o mundo fosse seu inimigo.
Após haverem contornado a cidade, à noite, fizeram uma pausa para dormir.
Estavam relativamente longe da estrada, em meio às árvores e arbustos, mas Gundar decidira não acender uma fogueira, para não correr o risco de atrair atenção. Curiosamente, desde que deixaram a casa do velho Rognir, o ex-soldado também já não fazia o Rito quando acendia suas fogueiras.
Estava frio, mas foram capazes de dormir.
E nesta mesma noite, Darl sonhou novamente.
Era o mesmo sonho, com a mesma escuridão, com o mesmo frio, com a mesma voz.
— Luses canor em aruldanai canor, Shierd.
O gélido vento soprou outra vez, mas Darl não tinha medo.
Ele sabia que vivia um sonho, e que nenhuma sensação era real. Ele não precisava seguir a voz, nem depender de seu calor.
Ele apenas ficou de pé, como se olhasse para sua direção, mesmo que nada mais ouvisse. O ar gélido soprava contra suas costas, mais frio a cada momento, mas ele não se movia.
Até que algo tocou seu ombro, como uma mão. Mas era fria como apenas gelo podia ser.
Imediatamente, o garoto virou-se, e seus olhos encontraram uma imagem pálida naquele mundo de escuridão.
Era a silhueta de um homem adulto, sem quaisquer detalhes no rosto ou no corpo que pudessem ser identificados, exceto por seus reluzentes olhos azuis.
Como uma sombra branca.
Ela meramente permanecia de pé diante de Darl, imóvel.
— Vu wont Vendar ue. —, disse a suave voz que agora vinha de trás. — Dukoirus.
Algo em seu tom atraiu a atenção do garoto, mesmo que por um momento. Era como um aviso.
Quando retornou o olhar à figura pálida, porém, ela havia se movido.
Seu braço estava estendido para a frente, ligado por uma espada de gelo ao peito de Darl, cujo coração atravessava.
— ... orda. Acorda, Darl! —, o ombro do garoto era sacudido enquanto uma voz chamava por ele. Era Gundar.
— Huh...? O... que...? —, ele mal era capaz de manter os olhos abertos.
— Tem alguma coisa errada. Vamos.
Apesar da vaga explicação do homem, Darl usou todas as suas forças para se pôr de pé.
Era muito cedo, e o horizonte estava coberto por uma espessa névoa, tão densa que quase lhe parecia anormal. O sol ainda demoraria para subir e brilhar ao céu, iluminando o mundo sob si.
Estava também ainda mais frio que o normal, talvez pela hora que fora acordado, talvez por não haverem acendido uma fogueira. Ou ainda ambas as opções.
— Abaixa e me segue. —, de repente, instruiu Gundar enquanto já se esgueirava pelos arbustos. — Cuidado pra não fazer barulho.
Ainda sem haver compreendido completamente a situação, Darl apenas obedeceu.
Haveriam eles sido encontrados? Mas ainda era tão cedo, e a visibilidade tão baixa. Além disso, nem mesmo haviam acendido uma fogueira.
Se eles deviam ser encontrados, já haveriam sido há dias.
Ainda assim, o ex-soldado observava seus arredores de forma semelhante a um animal encurralado. Era como se ele visse e temesse coisas que o garoto não via.
— Droga... —, sussurrou para si antes de, então, dirigir-se ao garoto. — Darl, quando eu der o sinal, vamos correr pra lá.
Gundar apontou o dedo para o caminho adiante, entre árvores e arbustos, e então pegou uma pedra do chão com a mão livre. A ocupada segurava uma adaga, a única arma que ainda possuíam, já que a espada e arco haviam sido perdidos durante a fuga dos goblins.
— Ouviu?
— S-Sim!
Ele deu mais alguns passos antes de, repentinamente, atirar a pedra para um lado e apontar para outro.
— Agora!
O plano era, aparentemente, utilizar o som da pedra ao colidir com a vegetação para atrair a atenção de seus perseguidores para outro local, abrindo uma brecha pela qual fugiriam.
Ambos correram por entre a vegetação e densa névoa. A visibilidade era tão baixa que Darl perguntava-se se estavam realmente a percorrer uma linha reta.
Até que pensou ter ouvido sons além de seus próprios passos e os do ex-soldado. Aparentava haver vindo de sua direita. Contudo, ao virar a cabeça, seus olhos nada puderam encontrar.
Quando tornou sua atenção para o caminho, viu que Gundar havia parado, e seu corpo quase colidiu contra o do homem. Estava prestes a questionar a razão da pausa, quando o ex-soldado pôs a mão em sua cabeça e empurrou-lhe para baixo enquanto esgueirava-se.
E assim permaneceram.
Escondiam-se de um inimigo que não podiam ver nem ouvir — ao menos não o garoto. Ele já estava sem fôlego. Havia sido acordado poucos instantes atrás, e pouco ainda compreendia da situação.
Apenas confiava nos sentidos do homem que lhe guiava, mas o pensamento que lidavam apenas com sua imaginação já cruzava sua mente.
Até que, no enevoado horizonte, uma silhueta foi avistada.
Ela andava para um lado e para o outro, como se procurasse por algo. Ou por alguém.
Mas como isso seria possível?
Numerosos questionamentos vinham à sua cabeça, mas foram logo abafados pelo ruído que agora vinha de trás.
Apesar de hesitante, Darl virou-se para trás. Enquanto fazia isso, notou que o ex-soldado já havia, também, virado-se. Talvez seus ouvidos atentos houvessem notado ruídos vindos da direção antes mesmo dos de Darl.
E quando este, enfim, virou-se, seus olhos encontraram o que mais temia.
Lá estava um homem coberto por armadura. Ele segurava uma longa lança, a qual apontava para os dois fugitivos. A mensagem estava clara.
Eles não podiam fugir.
— Pelo Padrasto... —, o homem armado arregalou os olhos ao ver o rosto do garoto. Não havia muitas dúvidas sobre o que ele via em Darl que tanto lhe espantava.
O garoto estava encapuzado, mas sua avermelhada e já longa franja estava plenamente visível. Não que, na ocasião, ser capaz ou não de esconder o cabelo pudesse fazer alguma diferença.
— Aqui! —, repentinamente, gritou o inimigo — Encontrei!
Por que Gundar não o atacou enquanto chamava pelos outros? Se fossem rápidos, poderiam fugir e...
Não. Darl apenas tentava encontrar caminhos onde não havia. Seria suicídio simplesmente atacar com uma adaga um inimigo com uma lança apontada para si, especialmente dadas as desvantagens da ocasião.
Mas não estava tudo perdido. Já haviam escapado de situações piores.
O garoto não tinha certeza sobre o que causava o evento, mas, mais de uma vez, quando tudo parecia perdido, aquela voz falou com sua alma e ambos foram salvos. Onde Gundar não fosse capaz de lutar, aquela força — aquela existência — faria sua parte outra vez.
Enquanto o garoto depositava sua fé no metafísico, mais meia dúzia de homens vestidos e armados similarmente apareceram e cercaram-nos.
Todos usavam a mesma armadura e empunhavam lanças, as quais apontavam para a dupla de fugitivos. Todos com exceção de dois.
— Vocês estão detidos por transgredir as terras de Lorde Vengarl sem autorização. —, afirmou, sem espera, um dos homens que se destacavam. — E você, especialmente, é culpado pelo pecado de cooperar com... —, aproximou-se e, violentamente, retirou o capuz de Darl de sua cabeça. — ... essa coisa.
Apesar de vestir uma armadura similar, sobre sua cota de malha caía um manto verde com o brasão de Alken. Já, em sua cintura, descansava uma espada. Certamente estava acima dos demais na hierarquia.
— Por Yahlov! —, após finalizar suas acusações, o mesmo homem exclamou a outro ao lado, agora com uma expressão contrastantemente relaxada. — Você estava certo!
— Apenas cumpri meu dever como... Como vocês chamam isso aqui? "Cidadão"? "Fiel"? —, em um tom fortemente sarcástico, após ser dirigida, respondeu a segunda pessoa destacável.
Este, contudo, estava vestido de uma forma completamente diferente dos demais. Usava longos trajes de tons escuros, luvas e, sob o capuz que caía sobre sua cabeça, uma máscara amarelada marcada por uma cruz negra.
Da cabeça aos pés, estava completamente coberto por roupas, de forma que nem um pouco de pele podia ser vista. Apenas sua voz, que soava como a de um jovem adulto, apesar de um pouco rouca, dava pistas sobre sua identidade.
— Vocês gundordianos são mesmo umas figuras! —, o homem da espada entregou-lhe uma pequena bolsa da qual escapavam sons metálicos ao ser movida. — Aqui, sua recompensa.
— Foi um prazer fazer negócios com você. —, o mascarado assentiu em agradecimento enquanto aceitava a bolsa.
Darl pouco entendia do diálogo, mas sentia que ele e Gundar estavam sendo, de alguma forma, vendidos.
Ele queria pôr-se de pé e correr, mas apenas permaneceu de joelhos ao lado de Gundar, que fazia o mesmo. Talvez o ex-soldado tivesse algum plano em mente. Afinal, ele estava, estranhamente, quase perfeitamente calmo, apesar do contexto no qual se encontravam.
Mas, a cada instante que se passava, a hipótese do garoto perdia força. Em especial quando dois homens puxaram cordas, e então as usaram para atar as mãos da dupla de fugitivos.
Eles eram, agora, prisioneiros.
— G-... Gundar, o que vai...? —, enquanto Darl tentava pôr em palavras seus questionamentos internos na esperança de ouvir respostas, o homem que segurava sua corda deu-lhe um empurrão nas costas.
— Vai andando! —, ele dizia, enquanto forçava o garoto perdido a andar.
Algo estava errado.
Eles estavam tão próximos de deixar as fronteiras de Alken. A partir daquele ponto, nada mais entraria em seu caminho.
Ainda assim, no momento mais improvável, foram encontrados pelas forças do reino e, agora, estavam sendo levados para onde Darl podia apenas imaginar.
Rhaffur havia-lhe explicado, em algum momento, que prisioneiros recebiam fins proporcionais ao pecado que cometiam. Aqueles que roubavam tinham dedos cortados, aqueles que assassinavam tinham suas vidas tiradas.
Mas, então, qual seria a punição para o pecado que haviam cometido?
— Posso perguntar o que exatamente fará com os dois, capitão? —, questionou o mascarado.
— O mais velho vai ser vendido, se alguém se interessar. Senão, talvez faça parte do... espetáculo. —, com o tom pensativo de quem se pergunta o que fará para o jantar, respondeu o homem com a espada. — Já o outro... Por que estragar a surpresa? Não ficará na cidade para assistir?
— Parte meu coração dizê-lo, mas sou um homem muito ocupado. Hei de partir o quanto antes.
— Oh, mas é mesmo uma pena. Mas farei questão de citar seu nome, senhor...?
— Meu nome não é importante. Quero apenas que se lembre de mim como alguém que veio para ajudar.
...
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