Asas de fogo suspendiam o corpo de Darl aos céus, sobre os bosques de Alken.
As copas das árvores, vistas do alto, pareciam pequenas como ervas plantadas em um jardim. As distantes montanhas ao norte podiam ser vistas com clareza.
Dos céus, o mundo inferior parecia, de alguma forma, obsoleto. Aquele era o mundo como visto pelas aves, como visto pelos homens antigos, quando ainda possuíam suas asas.
Mas não era o mundo de Darl.
Sua face novamente veio a expressar o que realmente sentia. O sorriso em seus lábios foi quebrado, seus olhos tomados por lágrimas.
Seu corpo era novamente seu. E o mundo ao qual pertencia também se aproximava. E rápido.
Quando notou que caía velozmente em direção às árvores abaixo, protegeu o rosto com os braços, que logo encontraram folhas e galhos secos.
Até que, em algum momento, seu mundo escureceu outra vez.
Assim, estava de pé na já familiar escuridão, à mercê do igualmente conhecido frio vento. E ele soprou incessante, soprou impiedoso. Mas Darl pouco se importava.
Se o frio era seu castigo, aceitaria em silêncio. Naquele mundo onde apenas ele existia, apenas ele, também, feriria-se.
Até que seu mundo foi invadido por calor.
Uma alta silhueta estava diante de si, de forma semelhante à pálida e gélida que o mesmo fizera antes. Porém, também em modo completamente diferente.
Ela era morna, seus olhos brilhavam em um vermelho dourado como apenas o sol da tarde podia. E essa figura andou em sua direção.
Por um momento, o garoto teve medo, mas não recuou. Não resistiu. Se a nova figura também desejava empalar seu peito, deixaria que o fizesse. Não possuía mais desejos a nutrir, nem temores a evitar.
Então a silhueta pôs a mão em seu peito, e Darl sentiu que tocava seu coração destruído.
— Sim... —, sua gentil voz ecoou, e logo o garoto soube quem estava diante de si. Entretanto, diferente das outras vezes, ele entendia suas palavras. — Estás pronto para ouvir minha Worbal... Minha voz.
E essa voz ressoou por seus ossos, sua carne e seu sangue. Cada sílaba reverberava em sua alma, e sua alma, por sua vez, gemia em resposta.
— Mas, sarien... Ainda não é hora.
O ser de luz recolheu sua mão, e Darl sentiu a ânsia de correr em sua direção e implorar por mais de seu calor. Mas tal ato seria, por si, uma heresia.
Diante daquela existência, a única vontade que podia ser concretizada era a sua própria. Qualquer outro desejo além dos seus eram uma afronta à sua autoridade.
— Q-Quem... —, clamou a pobre alma do garoto. — Quem é... você...?
— Por tantos Sorlus... nomes já fui chamado. Koruste... Talvez a pergunta correta seja o que Eu não sou. —, começou a caminhar com leves passos em torno de Darl, que não se atrevia a acompanhar o movimento com o corpo. — Diz-me, Shierd... O que Eu sou para ti?
Havia apenas uma resposta.
— Um... deus...?
— E tu... —, atrás do garoto, respondeu a entidade, cujos longos braços lentamente envolveram, por trás, os ombros da criança. Sua alma logo soube a quem pertencia. — és meu escolhido. Carregarás minha santa Vitam... missão, mas não como os Faruus... tolos de Alken.
Então, Darl sentiu-se como o mais importante mortal a caminhar sobre a terra. Se aquele deus, que lhe envolvia com o mais tenro dos calores, confiava-lhe uma missão, esta deveria ser carregada a todo custo.
— Sua... missão...
— E quando a houver cumprido —, trouxe seus dedos ao queixo de Darl e manipulou-o de forma a aproximar seus rostos. —, terás aquilo que mais seik... desejas.
Mas o que Darl mais desejava?
Por mais que a dúvida procurasse voz, seu coração, agora, podia apenas ser preenchido por certezas. Quando seus olhos contemplavam de tão perto os da força que lhe envolvia com os braços, a única pergunta que podia fazer era sobre como poderia servi-lo melhor.
— O que... eu devo fazer?
— Continua a carregar a Khras... a Chave. Quando a hora chegar, saberás.
Então, o deus afastou-se novamente do garoto.
Ao ser separado do morno abraço, deixado novamente à mercê do frio, Darl quis gritar. Quis pular a seus pés e implorar por mais um pouco de seu calor.
Mas, para um mero servo como ele, tal atitude seria do maior ultraje. O deus não podia ser tocado por suas mãos. Apenas Ele escolheria quem tocar.
E agora ele escolhia ascender na escuridão.
— Até o dia, lembra-te de quem é teu verdadeiro Onas, teu único Deus.
E foi com o eco dessas palavras que o mundo de luz e escuridão deu lugar ao de vida e morte.
Darl podia sentir a terra morna em seu rosto, além da areia e uma estranha umidade em suas roupas.
Com as forças que lhe restavam em seus membros, o garoto pôs-se de pé. Quando sua visão retornou ao foco, viu que estava no centro de um grande círculo de terra movida e grama queimada.
Os troncos de árvores caídas, assim como as copas queimadas das que se mantinham firmes, abriam um caminho aos céus, como se uma esfera de chamas houvesse caído tangente ao solo, passado por elas e pousado onde estava o garoto. E ele mesmo era aquela esfera.
Do distante horizonte, adiante além da vegetação destruída, erguia-se uma cauda de fumaça negra aos céus. Havia boas razões para acreditar que ela nascia da cidade deixada em chamas, Lendal.
Por um momento, Darl sentiu um impulso de seguir em direção à fumaça, à cidade. Mas tal disposição logo se esvaiu.
Aquele era o local onde fora aprisionado junto ao homem do qual agora, assim como os habitantes e guardas, pouco devia restar. Mesmo com aviso, a morte sempre vinha repentina.
O último desejo de Gundar fora para que Darl vivesse, independente de quantas vidas devesse destruir. E ele havia destruído mais do que conhecia números para contar.
Era um desejo egoísta, sem dúvidas. Do que valeria uma vida que se mantinha pelo sacrifício de outras? Seria, então, a perda alheia a unidade correspondente ao ganho próprio?
Certamente, vidas de reis deviam valer como nenhuma outra, dados os sacrifícios necessários para travar suas guerras.
Não importava como pensasse, aquilo estava errado.
Mas, ao mesmo tempo, nada estava correto.
Além da vontade do homem que lhe encontrara nos bosques luas atrás, também havia a do deus de luz e chama, transmitida por suas vagas palavras.
Era uma missão de grande importância, por mais que tal qualidade fosse onde estava o limite da extensão do conhecimento do garoto. Tudo que ele sabia era que devia esperar. Mas esperar estava entre seus últimos desejos, ao mesmo tempo que uma de suas poucas opções.
Então, a curtos e vagarosos passos, Darl caminhou. O sol estava às suas costas, mas esse era todo o senso de direção que podia extrair no momento.
Não sabia dizer se o que movia seus pés era a instrução de Gundar de que, mesmo se algo viesse a acontecer com ele, o garoto continuasse sua jornada, ou meramente a incapacidade de suportar contemplar sua existência por mais um instante sequer.
Então ele caminhou.
...
Ele caminhou até que nuvens escureceram o céu, e delas caíram gotas d'água. Inicialmente, fracas e ralas, mas ganharam força a cada momento que se passava.
O vento soprava mais frio do que jamais soprara naquele outono. Ao corpo de Darl, suas roupas rasgadas e molhadas aderiam-se.
Seus braços tremiam, seus dentes batiam. Mas não havia onde abrigar-se da chuva naqueles bosques cujas árvores já haviam abandonado suas folhas, assim como o garoto abandonava a si.
Ele queria apenas jogar seu corpo ao chão e esperar que o frio tomasse sua consciência, mas era incapaz. Suas pernas moviam-se em contradição ao seu coração, como se perdição e insistência duelassem por seu lugar.
Até que Darl pensou avistar algo.
A visibilidade era baixa. Porém, pouco adiante, uma forma mais acidentada do relevo salientava-se sobre o solo. Quando, então, o garoto aproximou-se, viu que, na baixa encosta que se erguia sobre a terra, havia um pequeno recuo — um vão.
Estava diante de uma convenientemente posicionada caverna, e dentro desta buscou refúgio da chuva, deitando-se sobre seu chão rochoso.
Encharcado, tremia em posição fetal. Não sabia o que era água em seu rosto ou lágrimas. Ele queria gritar e perguntar por que isso acontecia a ele, mas sabia que nenhuma resposta conseguiria.
Tudo que sabia sobre si no momento era que fora chamado pelo deus em seu sonho de escolhido. Mas qual qualidade poderia possuir a fazer uma entidade de tal grandiosidade escolhê-lo?
Ele queria apenas desaparecer, fugir. Mas, novamente, fugir de si era impossível. Para onde quer que caminhasse, seu frágil corpo e dolorosas memórias caminhariam junto.
Ele poderia ter aquilo que mais desejasse, ou foi o que o deus dissera-lhe. Mas que forma de ambição poderia ter no momento?
Aquele era mesmo um favor desperdiçado em si.
Mordia a língua, como diversas vezes fizera para controlar as lágrimas e afastar pensamentos desagradáveis, mas era inútil. Talvez apenas não aplicasse força o suficiente, pensou. Mas, quando a dor tomou proporções diferentes e sentiu um sabor metálico cobrir sua boca, reconheceu que era hora de parar.
Já mal sentindo seus dedos, Darl sabia que precisaria fazer algo em relação ao frio. A opção natural seria acender uma fogueira, mas não poderia encontrar peças secas de madeira em meio àquela chuva.
Ainda assim, tinha uma ideia. Ou, talvez, um mero palpite. Mas esse palpite era tudo que tinha.
Ergueu-se e, o mais brevemente possível, coletou folhas caídas e galhos nas proximidades imediatas. Após reunir os materiais diante de si sobre o chão da caverna, sentou-se. Então, em vez de esfregar um galho até que o atrito criasse fogo, esticou os braços.
Mas nada aconteceu.
Estava com as mãos nuas estendidas a gravetos e folhas tão encharcados como si. Tudo que o mantinha daquela forma era um conceito difícil de descrever, um pouco conhecido ao garoto.
Era aquilo que movia aqueles que já haviam esgotado todas as possibilidades dentro de seu poder.
Fé.
— ... Por favor. —, suplicou.
Então, um brilho dourado nasceu. Junto dele, uma fogueira.
O garoto sentiu que deveria agradecer ao deus pelo milagre que acabava de tomar forma a partir de suas preces, mas se conteve a alimentar mais a chama e aquecer-se em seu calor.
Logo, seu corpo deixou de tremer. Também sentia suas roupas e cabelos mais secos.
Tudo que restava, novamente, era esperar.
O garoto tinha muita fome, mas já estava habituado às lamentações de seu estômago. Se dormisse logo, também cedo viria a manhã seguinte.
Mas pouca razão via em esperar pela luz do sol, se todo dia de sua vida era como a escura tempestade que agora apenas tornava mais negra a noite.
E no negro horizonte além da chama, brilhou um par de olhos. Eram como os olhos que brilharam, luas atrás, na noite em que o mundo que conhecia desabara.
Mas, dessa vez, Darl não tinha medo.
Quando, a silenciosos passos, aproximou-se, seu corpo cinzento também se revelou. Sob a chuva, os pelos que cobriam o lobo caíam, dando à fera uma imagem estranhamente digna de simpatia.
Suas intenções estavam claras. Desejava um refúgio para a chuva, e o mais próximo e quente era a caverna que devia brilhar no bosque à noite como um chamariz a almas perdidas. Tal refúgio, no entanto, já estava ocupado. E seu ocupante não estava disposto a abrir mão dele.
Os afiados dentes da fera puseram-se para fora. Seu rosnado batalhava para ser ouvido além dos sons da pesada chuva e o retumbar dos trovões. Sua intimidação, contudo, foi em vão.
Darl apenas permanecia no mesmo local, seus olhos fixados no do lobo. Até que não era apenas seu olhar a perfurar o animal.
Assim, sua expressão mudou. Suas orelhas ergueram-se, presas foram escondidas. O lobo andou até a entrada da caverna, onde sacudiu a água de seu pelo e, como se fosse sua própria toca, deitou-se à fogueira.
O garoto jamais havia pensado em ver uma fera como aquela tomar uma postura tão dócil, mas podia imaginar qual era a influência por trás de tal comportamento.
Afinal, apenas tolos não se curvariam àquele calor.
...

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