O barulho da chuva ressoava alto, e os rugidos dos trovões eram ainda mais ensurdecedores. Aquela era uma tempestade como dificilmente vista, especialmente naquela época do ano.
Estava tarde na noite, certamente, mas os olhos de Darl recusavam-se a fechar. Por mais que a fatiga castigasse seus ossos, seu corpo negava qualquer forma de descanso.
Era quase como se esperasse por algo.
Novamente virou o olhar para o lobo que descansava à distância de um braço de si. Pensou se poderia esticar a mão e tocar seu pelo, mas hesitou.
Ouvira que cães eram semelhantes a lobos, mas frequentemente também eram companheiros de homens em caçadas e também podiam lealmente proteger sua residência. Seria um pensamento muito distante imaginar a fera diante de si portar-se de forma similar?
Darl passou a observar a escuridão que tomava o mundo além de sua pequena caverna. A fraca luz da fogueira morria poucos passos adiante, refletida apenas nas gotas que caíam rapidamente.
Então, o clarão de um relâmpago tornou os bosques pálidos por um momento. Nesse mundo apenas brevemente iluminado, entre as sombras das árvores, parecia erguer-se uma negra silhueta.
Mas a luz apenas clareou o mundo em dois tons por um piscar de olhos. Era difícil ter certeza. Se pensasse melhor, não havia como alguém ainda andar sob uma tempestade como aquela, tão tarde, em meio aos bosques e afastado de qualquer civilização.
Com tantas plantas com formas retorcidas, não seria surpresa se houvesse sido apenas a imaginação do garoto. Ainda assim, não podia evitar senão fixar o olhar ao escuro horizonte, na esperança de confirmar seu pensamento.
Até que outro relâmpago, acompanhado por um estrondoso trovão, trouxe luz outra vez ao mundo. E lá a silhueta estava, mas não no mesmo local. Era como se estivesse a se aproximar.
Darl pensava temer mais nada. Neste exato momento, havia um lobo — uma perigosa fera — deitado a seus pés. Mas, ainda assim, um arrepio subia suas costas ao pensamento de que alguém se aproximava na escuridão eterna.
O mundo além de sua caverna, negro e gélido, era, de certo modo, muito similar ao que Darl tantas vezes vira em seus sonhos. Um mundo onde o frio perseguia-o incessantemente, e o calor que emanava do deus e suas palavras era seu único refúgio.
Quando um terceiro relâmpago iluminou a terra, estava lá. Pouco além do alcance da luz do fogo, de pé, estava a silhueta que devia pertencer a um homem adulto.
Sem mais esperar, Darl apanhou um graveto da fogueira e, em direção à saída, atirou-o.
Sua chama era fraca, e a tempestade daria fim a sua luz em instantes, mas um piscar de olhos era tudo que precisava.
O graveto voou, até que um pálido brilho azul ofuscou sua chama. Esse brilho cruzou o ar como uma flecha e passou ao lado da cabeça do garoto com um assovio.
Quando ele virou-se para sua direção, viu que, cravada na rochosa parede da caverna da encosta, estava um alongado objeto semelhante a um sincelo formado da água congelada nas janelas e portas durante o inverno. Era como uma lança de gelo, atirada tão rapidamente que seus olhos não podiam acompanhar.
O lobo que, até então, parecia dormir, pôs-se de pé e rugiu para a entrada.
Não havia dúvidas — havia alguém ali. E, seja lá quem fosse, não era uma pessoa ordinária.
— Nunca entenderei a razão que o levou a escolher uma criatura tão frágil. —, ressoou a voz do homem que, apenas então, pisou dentro do alcance da luz. — Uma tão... patética.
Ele vestia longos trajes escuros, além de uma máscara marcada por uma cruz negra que se intersectava na altura dos olhos. Suas roupas cobriam cada polegada de sua pele. Só podia haver uma pessoa com uma aparência tão distinta.
Era o homem que recebera uma recompensa após a captura de Gundar e Darl, dias atrás.
— Você...
Quando o corpo de Darl ainda jazia paralisado ao fundo da caverna, atônito, o lobo deixou de rugir e avançou em direção ao recém-chegado.
— Não me interrompa, fera. —, com o tom de quem era importunado por uma mosca, o homem mascarado virou a mão para o animal que, no mesmo instante, foi perfurado por outra lança de gelo.
Seu corpo foi lançado para trás, até colidir com a parede da caverna, onde se contorceu em agonia enquanto o chão era tomado por seu sangue.
— Ele só não te atacava por causa do Encantamento, de toda forma. —, deu de ombros a figura que manipulava o gelo. — Você não tem a menor ideia de sobre o que falo, não é mesmo?
— Você é aquele... daquele dia...
— É uma honra ser lembrado, ó "O Escolhido". —, curvou-se exageradamente, à proporção do sarcasmo em sua voz.
Ele falava sobre Darl ser "escolhido". Só podia haver um significado para aquilo.
— Mas como você sabe sobre...
— Foi uma ótima demonstração que você fez essa manhã, não acha? Com certeza não pode fazer uma faísca agora.
— O que quer dizer...?
— Como esperado... —, parecia quase decepcionado com algo. — O que ele queria com alguém tão distante?
Ele apenas falava mais e mais, sem dar qualquer forma de explicação. Era como se suas palavras fossem mais direcionadas a si mesmo do que ao garoto.
Ainda assim, havia uma dúvida que Darl queria respondida mais que qualquer outra.
— Foi você que descobriu a gente? Você... contou pra eles que Gundar e eu... que a gente tava lá?
— Acho que é justo dizer... —, suspirou. — Veja, você tem uma coisa. Uma coisa que eu quero muito. Uma coisa que deveria ser minha desde o começo.
— Então... —, por mais que pouco entendesse, o garoto sabia que havia algo inconsistente em sua justificativa. — Então por que não foi só atrás de mim?
— Eu precisava julgar bem a força dele agora, é claro. Aquela foi a chance perfeita para fazer ele gastar tudo que tinha, e tenho que admitir que aquilo ainda foi impressionante. E, além disso... bem, quanto mais porcos khanlofianos morrem, um favor maior ao mundo vocês fazem.
Sua forma de falar era estranha, assim como, às vezes, sua escolha de palavras.
Se não era das terras do antigo império de Khanlof, só podia vir do oeste, das terras de Gundord. O garoto podia não possuir uma noção da história e geografia do mundo tão boa quanto desejaria, mas isso significava que aquele homem viera de muito longe.
E viera especialmente atrás de Darl — ou algo que ele carregava consigo.
— O que você quer é... Você quer esse fogo?
— Não só a chama. —, balançou a cabeça. — Eu quero sua fonte.
Até onde sabia, a origem das chamas podia apenas ser o deus. Poderia ser ele que dava a Darl sua força para que sobrevivesse e levasse adiante sua "santa missão"?
Nesse caso, o que o homem desejava era ser escolhido pelo deus?
Darl não podia acreditar que alguém pudesse almejar o destino ao qual fora condenado. Fora graças às chamas e seu deus que a simples e pacífica vida que conhecia fora tomada de si, assim como a de todas as pessoas que cruzaram seu caminho.
E fora graças aos desejos desse homem que, por fim, Gundar teve que pagar o último preço.
O que levaria alguém a buscar essas chamas consumidoras para si? Se havia algum benefício a quem carregasse tal fardo, seria o destruidor poder que trazia, ou ser capaz de garantir a própria sobrevivência em qualquer ocasião.
— Isso é uma maldição! Se... Mas se eu puder passar pra você...
Talvez aquela fosse uma oportunidade. Sua chance de, ao menos, passar o fardo adiante.
Darl já havia observado e provocado dor suficiente. Ele não queria carregar sua "missão", ou qualquer outra coisa. Queria apenas se ver livre. Livre como uma vez fora, mesmo sem saber.
— Mas, veja bem... O problema é que só há uma forma, e ela é matando-o.
Mais de uma vez, o garoto estivera às portas da morte. O conceito de observar seu próprio fim não era mais tão assustador.
Ainda assim, contudo, era uma escolha difícil de fazer.
— Eu acho... que não vai ser tão fácil. Já tentaram antes... várias vezes.
— Sim, eu sei. —, seu tom fazia parecer que sabia ainda mais que o garoto. — Mas já tomei todas as... precauções.
Por mais que pouco entendesse, Darl sabia que aquele homem que falava sobre morte como um jogo era diferente dos outros. Talvez espadas ou presas e garras não pudessem dar-lhe um fim, mas estava diante de alguém que parecia controlar poderes além de sua compreensão.
O velho Rognir e sua esposa, dadas suas circunstâncias, também buscaram seu próprio fim. Algumas vidas podem tornar-se tão dolorosas que a morte, por sua vez, torna-se uma forma de piedade.
Talvez fosse hora de aceitar tal piedade.
— Então, por favor... —, respirou fundo e abriu os braços, resignado. — seja rápido.
— Hmph! Realmente não tem graça nenhuma você.
O mascarado deu um passo adiante. Em sua mão, formou-se uma espada de gelo semelhante às estacas que invocara instantes atrás. E mais semelhante ainda a outra espada que vira em um de seus sonhos.
Também como nesses sonhos, contudo, uma voz ecoou em seu coração.
— Tens uma missão.
O homem que empunhava a gélida avançou e desferiu uma estocada. No mesmo instante, entretanto, intensas chamas tomaram a caverna, cobrindo todo o interior da caverna e bloqueando o campo de visão de Darl.
Quando baixaram outra vez, o mascarado estava vários passos para trás, sua postura defensiva. Provavelmente havia saltado para trás a tempo de evitar o fogo.
— Heh! —, zombou. — Não pensou que eu cairia em uma armadilha como essa, pensou?
Mas não havia armadilha. Darl estava realmente disposto a se deixar ser atingido. Ainda assim, pouco surpreendentemente, o deus brilhante protegeu-lhe.
— Mas isso não foi...
— Impressionante ainda poder fazer isso depois de usar tanta força mais cedo... Mas não importa. Só preciso esgotá-lo mais um pouco até o limite!
Sem dar oportunidade ao garoto para que pudesse explicar-se, estendeu a mão livre e, ao redor dela, quatro lanças de gelo formaram-se no ar. E logo foram disparadas.
Surpreso, além de incapaz de esquivar ou pensar em qualquer possibilidade melhor, Darl fechou os olhos e protegeu o rosto com os braços. Quando os abriu novamente, viu que não fora atingido pelo ataque — possivelmente protegido outra vez pelas chamas.
Mas aquele não era o único detalhe a atrair sua atenção, pois o homem mascarado também havia desaparecido.
Haveria ele fugido? Seria pouco provável, dada sua determinação e confiança demonstrados há pouco.
Pouca razão havia para permanecer dentro da pequena caverna onde queimavam os restos de um lobo e tornava-se cinzas o que uma vez fora uma fogueira. Então, o garoto andou para fora.
Chovia forte, mas não sentia a água cair sobre si. Quando olhou para o alto, notou que as gotas de chuva tornavam-se vapor antes mesmo de tocar seu corpo. Sentia por si apenas um confortável calor, mas aquelas chamas deviam ser infernais para qualquer outro que as tocasse.
O fogo que se erguiam do chão acompanhava-lhe, mas produzia pouca luz. Mal era capaz de ver com clareza as árvores mais próximas.
Enquanto contemplava a natureza com outros olhos, mais lanças vieram da escuridão. Nada diferente da última vez, também se desfizeram ao tocar as chamas.
Atacar apenas havia revelado sua posição, então se virou para a direção de onde o último ataque viera. E esperou.
Mas o homem não se revelava.
Até que sentiu um frio na barriga.
Quando olhou para baixo, viu que não era apenas um pressentimento, mas havia uma lança de gelo que brotava de seu estômago. Ele havia sido atacado por trás, e nem mesmo as defesas do deus puderam bloquear o golpe.
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