Não foi difícil achar Rosa, Delilah e o Grande Mentiroso no sábado. Isso se deve pelo fato de que eles chegaram antes de Eugene, Natalie e Gabriel, e também porque assim que a garotinha os avistou, ela saiu correndo para abraçá-los.
Delilah, ao contrário do farsante do irmão, era uma pessoa doce, gentil e adorável. Eugene gostava de passar o tempo com ela, por mais que crianças o deixassem ansioso. ― Lilah, minha querida! ― Natalie exclamou quando viu a garotinha, logo pegando-a em seus braços. ― Você está tão grande desde a última vez que eu te vi! Quantos aninhos você tem agora?
Lilah levantou as duas mãos, fazendo um seis. Ela logo levantou mais um dedo, corrigindo-se. ― Meu aniversário foi ontem, eu já tenho sete.
― Uau! ― Natalie disse. ― Você já é uma mocinha! Agora me diga, o que você mais gostaria de ganhar de aniversário?
― Um velociraptor de estimação. ― E ela disse aquilo com tanta confiança e tanta certeza de que aquilo era um pedido completamente são e sensato a se fazer, que Eugene e Gabriel tiveram de segurar o riso.
Não durou muito tempo, porém, porque o enganador logo se aproximou deles, acompanhado de sua mãe. ― Bom dia! ― Rose disse, abrindo os braços para abraçar Eugene. Novamente, ao contrário do embusteiro, ela era uma pessoa agradável e verdadeira. Ele retribuiu o ato, e ela logo sussurrou em seu ouvido: ― Parabéns por ter se tornado uma Ponte.
Eugene deu um sorriso tenso para ela, as memórias de seu treinamento voltando a preencher sua mente. Ela logo seguiu em frente, cumprimentando Natalie e Gabriel.
― Bom dia, Dallon. ― Eugene colocou um sorriso falso em seu rosto. ― Ou eu deveria dizer, fingido?
Dallon o encarou com um olhar frio, mas Eugene já estava irritado e ansioso demais para se sentir intimidado com toda aquela merda. ― Nós conversamos mais tarde, que tal? ― Ele disse entre dentes. ― Eu tenho que me trocar e me preparar para o jogo.
― Ah, sim! ― Gabriel exclamou. ― Vamos entrar logo, ou então não vamos conseguir bons lugares!
Eugene recebeu cerca de três faltas no jogo, mas no final ele marcou duas cestas de três pontos então quem se importa? Sua mãe, aparentemente, porque assim que o jogo acabou ela lhe mandou várias mensagens perguntando se estava tudo bem.
Agora, Eugene entendia a preocupação; ele não era um cara violento, e era raro que ele levasse faltas durante jogos, mas ele estava puto. Simplesmente puto, e não só com Dallon, mas com todos os aspectos da sua vida, que pareciam se empilhar um em cima do outro para conspirar contra ele.
A carta de seu tio estava jogada em sua mochila, com suas roupas e tudo mais. Ela era a lembrança de um destino que ele simplesmente não queria ter. Ele nunca pediu por nada daquilo, ele nunca quis se meter naquelas confusões. O olhar escrutinante de Dallon durante a partida era uma insegurança que carcomia sua mente, deixando-o cada vez mais irritado e mais ansioso. Ele não conseguia entender como as duas emoções coexistiam dentro dele, mas elas pareciam ter juntado forças para assassinar o controle mental de Eugene.
Ele suspirou, afundando seu rosto em suas mãos. Todo mundo já havia deixado o vestiário, decididos a comemorar sua vitória, mas Eugene só queria desaparecer dali. Seria demais pedir para que ele separasse sua existência de seu corpo, e seus sentimentos e sua vida, no geral, e só descansar um pouco no limbo entre o mundo dos vivos e dos mortos?
Ele ergueu a cabeça, e dizer que seu coração não se acelerou um pouco quando viu a raposa entediada encarando-o do outro lado do vestiário seria mentira.
― Uh…. ― Ele olhou para os lados, procurando alguém. Correu para a porta e trancou-a, quando se certificou de que estavam sozinhos. ― Você é um kitsune ou eu realmente me tranquei aqui com uma raposa?
O animal revirou os olhos, logo se transformando em uma pessoa um tanto familiar; já o havia visto uma vez, mas ele não tinha as orelhas e as caudas. ― Meu nome é Kazuo Yángguáng, eu sou o Representante dos Kitsunes.
― É, eu sei. ― Eugene disse. ― Já nos conhecemos, esqueceu?
― Reuniões do Conselho não são momentos apropriados para realmente conhecer alguém, Foster. ― Ele disse, cruzando os braços. ― Suponho que Lazuli tenha uma vida muito ocupada para que eu tenha que aparecer em um vestiário para adolescentes fedorentos. Já sabe da missão?
Eugene encarou o kitsune, sentindo seu coração se acelerar. ― Missão? ― Ele perguntou, tentando esconder a irritação em sua voz.
― Sim. Daqui a algumas semanas vamos investigar um Templo Kitsune supostamente assombrado no território dos lobisomens. Você é uma das duas pontes a comparecer, juntamente comigo, Lazuli, Genevieve e Nikolai. ― Kazuo explicou.
― Mas… Eu nem consigo usar uma arma, qual é a minha utilidade nessa missão? ― Ele levantou a voz, sentindo seus olhos lacrimejando. Deus, ele estava com tanta raiva.
― Eu concordo. Você não tem utilidade nenhuma nessa missão. ― Kazuo suspirou, sentando-se em um dos bancos e cruzando as pernas. ― Mas precisamos de Lazuli, já que não fazemos ideia do que vamos encontrar no Templo, e foi uma exigência que você nos acompanhasse.
Eugene tentou respirar e controlar sua respiração, mas ele acabou perdendo o controle. Ele queria socar a coisa mais próxima de si, e foi o que fez. O som do contato de seu punho com a parede foi alto, seco, repentino. ― Por mais que seja um ótimo entretenimento observar seu rosto se avermelhar mais e mais a cada segundo, eu devo dizer que há maneiras melhores de se lidar com a raiva. ― Ele ouviu uma voz atrás de si, mas não se importou o suficiente para olhar; sua mão doía, e aquilo aliviava um pouco de seu conflito interno, aliviava um pouco de sua ira. ― Você é uma Ponte, uma figura pública para Terra Pax. Você não pode simplesmente sair por aí tendo explosões como essa. A vida é complicada, mas temos que lidar.
― Você acha que eu não sei disso? ― Eugene gritou, virando-se finalmente. ― A minha vida inteira eu tive que “lidar” com as coisas. ― Ele berrava naquele ponto, e a única reação de Kazuo parecia ser uma sobrancelha levantando-se levemente. ― Você tem que lidar com as coisas, por mais que elas não sejam sua culpa! Eu sei disso! Eu tenho que lidar com as pessoas me olhando com pena por causa das minhas doenças, ou por causa da minha mãe! Eu tenho que lidar com o fato de que a minha vida inteira é uma mentira! Eu tenho que lidar com o cargo que eu nunca quis e nunca pedi pra ter! Eu ficaria mais feliz se o meu “papel no universo” fosse ser a porcaria de uma pedra!
― Você já acabou?
― Não! Puta que o pariu, eu não acabei ainda! ― Eugene cerrou os punhos, sentindo a dor se intensificar em sua mão esquerda. ― A minha vida toda… A minha vida toda eu tive que calar a boca e fingir que tudo estava bem, que nada do que as pessoas diziam me afetava! A minha vida toda eu tive que fingir ser uma pessoa que eu não sou e quando eu finalmente encontro alguém que me entende, e que se importa comigo do jeito que eu sou, é tudo uma farsa!
Os olhos de Kazuo viajaram pelo rosto de Eugene naquela última parte de seu ataque nervoso, mas ele não disse nada. O loiro se distanciou, começando a andar de um lado para o outro no vestiário.
― Seu celular está tocando. ― Kazuo comentou.
― Deixa essa porcaria tocar! ― Eugene disse. ― Eu gastei minha vida inteira escondendo os meus sentimentos e agora quando eu fico com raiva as pessoas ficam “Nossa Eugene, o que deu em você” ou “Nossa, Eugene, você não é assim”. E eles sabem a porra de pessoa que eu sou? Eles já tentaram entender a minha vida, a minha posição? Eles já tentaram entender qualquer coisa além dos narizes empinados deles?
O kitsune suspirou, segurando seu queixo em uma de suas mãos enquanto alcançava pelo celular do garoto, que continuava tagarelando. ― É a sua mãe. ― Ele mencionou, mas Eugene não parecia ter ouvido, estando imerso demais em seu vitupério contra o mundo.
Kazuo tentou digitar uma resposta para a mulher, mas suas garras não ajudavam muito. Ele se concentrou, transformando-se para sua forma inteiramente humana; uma sorte grande, porque alguém logo girou a maçaneta da porta. Era mais fácil explicar porque um cara desconhecido estava no vestiário do que um cara com seis rabos e orelhas de raposa.
Eugene destrancou a porta, e uma mulher de cabelos loiros surgiu, acompanhada de um adolescente metido a golpista. ― Eugene! ― Ela disse, irritada. ― O que aconteceu? Por que você demorou tanto? Eu fiquei preocupadíssima com você!
Enquanto a mulher dava um sermão no filho, os olhos do farsante viajaram pelo quarto, arregalando-se um pouco ao ver Kazuo sentado nos bancos. O kitsune estalou os dedos, e logo a voz de Natalie já não ecoava no cômodo.
― Eugene. ― Ele chamou o garoto, que se virou rapidamente. Kazuo conseguia ver que ele ainda estava com raiva, e por isso mesmo havia decidido intervir. ― Não se preocupe, ela está bem. Nem vai perceber o tempo que se passou.
O loiro assentiu. Seus olhos lacrimejavam, seu rosto estava inteiramente vermelho e era difícil saber se ele estaria tendo um ataque de raiva ou de desespero. Talvez fossem ambos.
― Como eu disse, você tem que aprender a lidar com a raiva, coisa que você obviamente não sabe como fazer. Você está guardando tudo para si por anos, eu sei como é isso. ― Ele disse. ― Todos nós temos raiva, mas não podemos deixar ela subir às nossas cabeças.
― Você não parece ser do tipo calmo. ― Eugene disse, condescendente. ― Alguém que perde a paciência e grita toda hora não me parece a pessoa mais indicada para me ensinar a lidar com a raiva.
Kazuo franziu o cenho, claramente irritado. ― Para sua informação, pirralho… ― Ele ergueu um dedo, apontando para Eugene. ― Você nunca me viu com raiva. Com sorte nunca vai ver. Eu costumava ser como você, escondendo todos os meus sentimentos negativos. Isso acabava criando uma pilha de raiva e tristeza dentro de mim, que sempre, sempre, acabava desabando nos momentos mais inesperados. Soa familiar?
Eugene desviou o olhar, mostrando que sim, era bem familiar. ― Adivinhe só: esconder seus sentimentos o tempo todo não é bom para ninguém. Todo mundo tem um limite, não importa o quão alto ele seja. ― Kazuo cruzou os braços. ― Sendo uma Ponte, ou um Representante, você está sob muito estresse. Você tem que aprender a aliviá-lo. Eu não reprimo meus sentimentos, o que ajuda bastante. Você poderia começar por aí.
― Todo mundo diz que eu sou um livro aberto. Eu não reprimo meus sentimentos.
― Se você repetir isso vezes o suficiente, eu tenho certeza que você acaba acreditando. ― Kazuo riu, sem humor. ― Aeris geralmente coloca a raiva dela em atividades físicas, como balé ou uma caminhada. Leilani tem um travesseiro que ela sempre usa quando ela está com raiva, seja gritando nele ou o socando.
Eugene finalmente voltou a olhá-lo. ― Eu cozinho quando estou com raiva. Genevieve faz meditação. Nikolai faz tai chi. ― Ele continuou. ― Tristan tricota. Eu não conheço o Arkiel para te dizer como ele lida com as coisas, mas eu sei que Lazuli desaparece quando está com raiva, provavelmente para destruir alguma coisa longe dos civis ou algo assim. Não é muito saudável mas ninguém nunca teve coragem para conversar sobre isso.
Eugene deu uma leve risada, as lágrimas finalmente descendo por suas bochechas. ― Dallon escreve. ― Kazuo terminou. ― Você tem algum hobbie?
― Eu… pinto. ― Eugene suspirou, esfregando o rosto. ― Tem o basquete e… jardinagem, também.
Kazuo assentiu. ― Tente correr para essas coisas quando você está com raiva. ― Disse ele. ― Talvez não o basquete, mas você entende. Quando estiver com raiva, respire fundo, conte até dez. Tente clarear sua mente. Faça uma caminhada ou algo assim. Explodir desse jeito não vai ajudar ninguém.
Eugene secou seu rosto. ― Obrigado. ― Ele disse, desviando os olhos do kitsune, que deu de ombros.
― Não ligue pra isso. Quando eu olho para você, eu me lembro de quando eu era mais jovem. Eu também não tinha muitas pessoas que tentavam entender a minha posição. ― Disse, suspirando. ― Mas eu tinha um amigo, e os meus pais. Quando eu percebi que eu não estava sozinho, foi mais fácil. E a sua mãe está bem ali, porque ela estava preocupada com você. Nem todo mundo tem esse luxo.
Eugene assentiu. ― Agora volte para onde você estava, eu vou fazer tudo voltar ao normal. Fui claro?
― Sim. ― Ele respondeu, respirando fundo. A voz de sua mãe logo inundaria seus ouvidos novamente, e ele teria que olhar para o rosto enganador de seu ex-melhor amigo, mas ele estava se sentindo um pouco mais leve do que há poucos minutos atrás.
Se isso era parte dos poderes psíquicos de Kazuo ou por causa de suas palavras, ele não tinha certeza, mas aquele breve momento era o suficiente, por enquanto.
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