― O que Kazuo estava fazendo no vestiário? ― Dallon perguntou quando suas famílias estavam afastadas, mas Eugene sinceramente não estava nem um pouco a fim de lidar com aquele cara.
― Você deveria ir no oftalmologista, ou então no psiquiatra. Você está vendo coisas, farsante. ― Ele respondeu, dando de ombros. ― Toma cuidado, em? Esquizofrenia geralmente aparece depois dos dezenove.
― Eu não sei porque você está na defensiva.
― Eu não estou na defensiva, seu melhor ataque é me olhar torto. ― Eugene revirou os olhos. ― Quem gastaria energia para se defender de uma coisa dessas?
― Você está azedo hoje.
― E você está azedo todo dia. Eu pelo menos sou uma pessoa doce de vez em quando.
― Ah, claro. De vez em quando.
― Cala a boca, Dallon.
O que mais irritava Eugene naquela conversa era que nada parecia ter mudado. Como os dois conseguiam simplesmente conversar daquele jeito, como se nada tivesse acontecido? Os dois eram amigos. Eram, no pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Dallon havia dito que não queria mais ter nada a ver com o loiro, e Eugene não mantinha amizades com mentirosos.
― Você jogou bem hoje, embora estivesse meio puto. ― Dallon disse, num tom de voz diferente do de antes. Quase lembrava a época em que ele lhe trazia um copo de café todas as manhãs porque sabia que era impossível Eugene ter uma boa noite de sono e se manter acordado durante todo o horário escolar.
― Cala a boca, Dallon. ― Ele disse, dessa vez com mais calor do que antes. Não queria conversar, não queria olhar para ele. Como ele tinha a coragem, não, a falta de vergonha na cara, para simplesmente zoá-lo e elogiá-lo como se os dois ainda fossem as mesmas pessoas? Como alguém poderia, em sua sã consciência, pensar que Eugene seria o mesmo depois de descobrir que seu tio fora assassinado por alguém pertencente ao Conselho de Terra Pax? Como alguém poderia pensar que ele não seria minimamente afetado pelo fato de que ele tem magia dentro dele?
Ele estava vendo culturas diferentes, histórias diferentes, e responsabilidades diferentes. E quem pediu por essa merda toda? Isso mesmo, não foi o Eugene.
― Você está se descabelando agora, mas todo mundo pega o jeito mais cedo ou mais tarde. Quer dizer, todo mundo precisa fazer isso. Se não…
― Se não o quê? Vou acabar como o meu tio? ― Eugene virou para ele, seus punhos cerrados. ― Quem você pensa que é, Souto? Você acha que pode me jogar de um lado para o outro, me fazer de gato e sapato, e tudo vai ficar bem? Você me vê desse jeito? Você acha que eu sou trouxa a ponto de voltar com o rabo entre as pernas para quem traiu minha confiança? ― Eugene sentia suas mãos tremerem, e todas as palavras de Kazuo eram lembranças distantes que o vento havia soprado para longe. ― Quer saber, Souto? Vai se foder. Vai para o inferno, ou qualquer merda. Eu só quero que você me deixe em paz, porque eu não sou estúpido o suficiente para acreditar em você de novo, seu bosta.
O olhar de Dallon mudou levemente, mas ele nada disse por uns momentos. Eugene sentia a raiva aumentar mais e mais dentro de seu peito à medida que o tempo passava e o rosto de Dallon ficava menos e menos claro, mais e mais difícil de se ler. ― Você é um bosta. ― Ele disse, novamente.
― Eu ouvi da primeira vez.
Antes que Eugene soubesse o que estava fazendo, seus músculos já estavam se mexendo. Seu punho ia de encontro ao rosto do moreno à sua frente, que recuava com a força do golpe e com a surpresa. Sua mão doía, seus dedos latejavam um pouco, mas assim como no vestiário, era bom. Socar uma parede não era tão satisfatório quanto socar a cara de Dallon, também.
― Por que você fez isso? ― Dallon gritou, levando a mão para cobrir o local atingido.
Eugene segurou os ombros dele, levando seu joelho ao seu estômago. Para alguém que estava lutando desde os doze anos, ele não parecia muito bom em evasões.
― Eugene! ― Ele ouviu seu pai gritando atrás de si, e dois braços rapidamente envolveram sua cintura, puxando-o para trás com força.
― O que aconteceu, meu bem? ― Sua mãe veio correndo para lhe acudir.
― Ele teve uma alucinação, eu acho. ― Dallon disse, antes mesmo que Eugene pudesse abrir a boca para falar. ― Ele me disse algumas coisas estranhas e depois começou a me bater.
Puta que o pariu, como alguém pode ser tão irritante assim. Eugene pensou, com raiva por Dallon não estar com raiva.
― Eu odeio você! ― Ele gritou para Dallon, o que fez com que ele parecesse ainda mais louco para Rosa, Natalie e Gabriel. Por sorte, Lilah estava no carro, e não viu a maior parte da confusão.
― Você está assustado, meu bem? Está confuso? O que está acontecendo? ― Natalie perguntou, se aproximando um pouco mais do filho. Eugene odiava aquilo, detestava com todo o seu ser. Odiava aquela situação, odiava ser tratado como louco quando hey, ele não era!
Parou de se debater nos braços do pai, sentindo as lágrimas correrem para seus olhos. Não choraria ali, não se humilharia tanto assim em apenas um dia.
Foda-se Dallon. Foda-se todos os anos que eles passaram juntos. O que eles importavam se eram cheios de mentiras e fingimentos? Se Dallon era cheio de mentiras e fingimento? Ele não importava mais. Nunca mais.
― Eu quero ir embora. ― Eugene murmurou, seguindo para o carro sozinho, deixando os adultos lidarem com a situação, como eles faziam todas as vezes que ele deixava seus sentimentos para fora.
Ah, meu passatempo favorito. Eugene pensou, amargamente. Deixar os outros lidarem com as merdas que eu faço.
Kazuo sentia ter falhado em algo, mas ele não sabia muito bem no quê. De qualquer maneira, ele sentia que deveria estar sentindo vergonha de si mesmo. Pôs o sentimento de lado e voltou a procurar pelos livros que precisava.
― O que está fazendo, Kazuo? ― Ouviu uma voz familiar atrás de si. Genevieve o observava flutuar em busca de seus estudos.
― Procurando livros.
― Isso é meio óbvio. Que tipos de livros?
― Aqueles com palavras e sem imagens seriam ideais. ― Kazuo murmurou, e pôde sentir o olhar fulminante de Genevieve perfurá-lo. Ok, sem sarcasmo. ― História dos Dracae e dos Magos.
― Posso te ajudar com o segundo. ― Ela disse, e ele voltou para o chão. Por que era tão difícil encontrar livros de história sobre os Dracae? Teria que pedir aquilo para Lazuli? Godric? Quem sabia onde esses livros se escondiam?
― Por que não temos livros sobre os Dracae em nossas bibliotecas? ― Kazuo atestou suas dúvidas. ― Me parece suspeito. Somos o governo, não deveríamos ter informações sobre todos?
― Os Dracae surgiram antes de muitos de nós. Creio que seu livro mais antigo pode datar cerca de dez ou quinze mil anos atrás. ― Genevieve explicou, colocando três constituições inteiras na mesa dos livros de Kazuo. ― São considerados patrimônio histórico e cultural, e por isso são guardados por um guardião.
― E quem é esse guardião? Lazuli?
Genevieve deu de ombros. ― Eu não sei. Lazuli honestamente não parece do tipo que guardaria uma biblioteca. Bem, os livros mais antigos, os protegidos, são conhecidos como a Krofh Vrarihr u Asgo. Saga da lenda Dracae.
― Você sabe falar Krofh’e? Quando você aprendeu isso?
― Não sei falar, só conheço algumas palavras. É uma língua complicada e quase extinta. Não se encontra muitos professores hoje em dia. ― Genevieve deu de ombros, sentando-se à mesa. Sinalizou para que Kazuo fizesse o mesmo. ― Como eu dizia, essa coleção é muito antiga e não está aberta para muita gente, nem mesmo Dracae. Há cerca de sete livros nessa coleção, escritos pelo mesmo autor, na mesma época. Há alguns outros livros que foram integrados à saga com o tempo, e alguns deles podemos ler. Um deles é um diário antigo de um Dracae que vivia há muito antes de Terra Pax. Morreu na guerra, a coitada.
― Suponho que você já tenha lido. ― Kazuo mencionou, pegando os livros que Genevieve havia escolhido. Descartou um deles, que estava em runas Lonr.
― Já. Não tenho muito interesse na vida dos outros mas este era particularmente encantador. ― Disse ela. ― Fleyür parecia uma mulher interessante.
― Tire essa sua bunda gay de perto de mim. ― Kazuo chutou-a por debaixo da mesa, arrancando um pequeno riso da maga.
― Não é assim, você sabe.
Ele revirou os olhos. Os dois outros livros que Genevieve havia lhe oferecido pareciam bons, e ele colocou-os na pilha de “Folhear”, que estava muito menor do que a pilha de “Tira isso de perto de mim”.
Kazuo acreditava que historiadores tinham um sério problema. Eles nunca iam direto ao ponto. Começavam a falar sobre o mundo espiritual e como os Kitsunes filtram a energia do espírito para o mundo concreto e de repente estavam falando sobre como aquele pintor famoso de sei-lá-aonde gostava de rolinhos primavera.
― Qual a circunstância? Por que está garimpando por livros?
― Estudar.
― Mas você acabou de jogar aquele escrito em Lonr para o lado, e eu sei que você lê Lonr.
― Talvez eu esteja cansado de Lonr.
― E talvez você esteja com vergonha de admitir que é para o novato. ― Ela cruzou os braços. ― Você foi vê-lo hoje, não foi?
― Anda espionando as pessoas agora?
― Agora? Querido, desde sempre. ― Genevieve riu. ― Me lembro de termos conversado sobre como ele não serviria para a missão. Ele deve ser incrível, já que você mudou de ideia depois de uma conversa.
― Não mudei de ideia. Eu acho que ele não serve para o cargo, mas não quer dizer que ele não possa trabalhar duro para servir. ― Ele disse, levantando-se bruscamente, catando os livros que havia descartado para colocá-los de volta no lugar.
― Você tem o coração mole demais. ― Genevieve disse, suspirando. ― Não que seja algo ruim, mas…
― Você é quem acha que isso é algo ruim. Eu só aprendi a aceitar.
― Você é mais velho que eu, deve saber mais da vida. Quem sabe eu chegue nesse nível de pensamento um dia.
― Me lembro de quando eu era da sua idade. ― Kazuo disse. ― Eu era um pirralho cínico e metido a besta. Soa familiar?
― Assim você parte meu coração.
― Que coração? A pedra de gelo que você tem entre as costelas?
Genevieve riu, e Kazuo sorriu, saboreando sua vitória. O sentimento de ter falhado voltou a si por uns momentos, confundindo-o. Mas que raios era aquilo?, ele se perguntava. Não havia como saber. De qualquer maneira, ele precisava voltar para casa logo e folhear aqueles livros. Eugene certamente não iria sobreviver sem ajuda.
― Eu confio no seu julgamento. ― Genevieve disse. ― Se você está procurando livros sobre história Dracae, você deveria falar com o Godric, ele sabe tudo sobre a área de política, lei, história, essas coisas. Se você falar com Narcissa, tenho certeza que ela tem alguns livros sobre cura que o Eugene poderia gostar. Veremos se alguns livrinhos serão suficiente para ele se virar por aqui.
― Você é um monstro. ― Kazuo disse. ― Você não tem o direito de ser tão boazinha e tão cínica ao mesmo tempo.
Ela deu de ombros, um pequeno sorriso nos lábios. ― É a verdade. ― Disse. ― Mas você precisa continuar sua longa jornada para educar o garoto.
― Não sei quem decidiu que Laz seria alguém capaz de ensinar um adolescente.
― Bem, caráter é importante. ― Genevieve comentou, referenciando o bordão de Lazuli: Constrói caráter.
― Aquele garoto vai morrer sem a minha ajuda, eu não acredito nisso. ― Kazuo suspirou, deixando a biblioteca murmurando preocupações para si mesmo, enquanto Genevieve encarava a enorme janela ao seu lado.
A biblioteca do Conselho era a maior de toda a história, até mesmo que a de Alexandria, mas ela não é mais concorrência há um tempo. Haviam andares e andares de livros, salas cheias de estantes, lotadas até o último milímetro.
Haviam mesas espalhadas em algumas salas, áreas restritas, escadas confusas e portais que não funcionavam por todo o lado. A biblioteca era, na verdade, um grande labirinto com livros para você passar o tempo, e por isso havia sido fechada ao público. Agora, se um cidadão comum quisesse pegar um livro da biblioteca, teria que contatar o Conselho, marcar um horário e entregar o nome do livro e autor. Na opinião de Genevieve, era tudo bobagem. Deixem os civis se perderem na biblioteca… constrói caráter.
Riu para si mesma. Afinal, não seria uma boa coisa, já que lhe daria ainda mais trabalho se algum mago se perdesse por aí.
Suspirou, aconchegando-se na poltrona. Poderia tirar um pequeno cochilo até que a hora de treinar Leilani chegasse. A energia da adolescente honestamente sugava a força de vontade de Genevieve, então ela queria estar descansada quando ela chegasse.
Fechou os olhos, adormecendo quase que instantaneamente.
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