― Você quer dormir aqui hoje, querido? ― Rosa perguntou-lhe, os olhos brilhando em antecipação.
― Claro.
― Bem, então vamos indo. Já está bem tarde. ― Disse Natalie, dando um beijo na testa do filho. Ela e o marido colocaram os casacos rapidamente. Rosa os acompanhou até a porta, jogando conversa fora com os dois enquanto todo o resto da família de Dallon parecia ter os olhos grudados em Eugene.
― Tchau, filho! ― Disse Gabriel, acenando. Natalie deu um tchau e mandou um beijo para o garoto.
Assim que a porta se fechou, um silêncio caiu sobre a casa.
― Bem, os humanos saíram. ― Disse Monique, a avó de Dallon. ― Então, meu querido… ― Ela disse, virando-se para Eugene, colocando uma mão em seu ombro. ― Finalmente podemos conversar. Qualquer pergunta que tiver, podemos responder.
― Uh… O quê? ― Eugene perguntou, confuso.
― Sobre as Pontes, garoto. ― Disse Carlota.
― Vamos nos sentar, sim? ― Disse Rosa.
Todos se dirigiram para sala. Monique guiou Eugene até o local, colocando-o para se sentar em uma das poltronas. Dallon sentou-se no braço da mesma, decidido a fazer companhia ao garoto.
Os adultos sentaram-se nos sofás e nas poltronas restantes, enquanto as crianças sentaram-se no chão. A sala estava simplesmente lotada.
Haviam cerca de vinte e cinco pessoas o encarando, esperando para que ele falasse alguma coisa.
― Uh… ― Ele gaguejou, sentindo seu rosto esquentar e seu coração acelerar. ― E-eu….
Dallon colocou uma mão em seu ombro, e Eugene virou-se para ele. O moreno mandou-lhe um sorriso encorajador.
Eugene olhou para suas mãos. ― Quem foram as Pontes dos Ghouls antes do Dallon? ― Perguntou ele.
― Bem, houve eu, minha mãe e… ― Começou Rosa. Um tom lúgubre preencheu a atmosfera em sua pausa.
― Noah foi a Ponte antes de mim. ― Disse Dallon, suspirando.
Noah. O irmão mais velho de Dallon, que havia morrido misteriosamente há cinco anos. Eugene era um gênio mesmo, deveria ter imaginado...
― Desculpe. Não deveria ter tocado no assunto. ― Eugene sentiu-se extremamente culpado.
― Tudo bem. ― Disse Dallon. ― Já faz muito tempo.
“Cinco anos não é tanto tempo assim…” Eugene pensou, mas decidiu não dizer.
― Uh… O que, exatamente, uma Ponte faz? Eu sei que somos supostamente a ligação entre o mundo mágico e o mundo humano, mas porque isso é necessário? O que fazemos? ― Perguntou Eugene. ― Lazuli já me explicou, mas eu gostaria de ouvir isso de pessoas mais…
― Mais próximas da realidade de uma Ponte, certo? ― Disse Rosa.
― Sim. ― Eugene suspirou, entrelaçando seus dedos.
― Bem… Antigamente, as criaturas mágicas também habitavam a Terra. ― Começou Monique, arregaçando as mangas. ― Os seres mágicos não são muito cuidadosos. Sabe, muitos deles nasceram aqui, na Terra, há muito tempo. Principalmente aqueles que nasceram na época da Grande Guerra. Digamos que eles não têm muito senso sobre o que aconteceria com eles caso humanos descobrissem sua existência. Podem não ter poderes mágicos, mas são muito mais perigosos do que qualquer criatura viva em Terra Pax.
― Por que você fala como se não fosse humana? ― Perguntou Eugene.
― Oh, querido, você realmente não sabe de nada, não é mesmo? ― Rosa disse, e Eugene se sentiu particularmente atacado com aquela pergunta.
― Nós, Pontes, não somos cem por cento humanos… Há muito tempo atrás, nossos antepassados e os Paxi cruzaram caminhos, e daí os demi-humanos surgiram. ― Disse Monique.
― Demi-humanos são pessoas com mais de vinte e cinco por cento de sangue mágico. ― Disse Dallon. ― Eles têm as mesmas capacidades de um Paxi, mas a intensidade delas é muito menor.
Eugene assentiu, mostrando que tinha entendido. ― À medida que os anos se passaram, nosso sangue mágico foi sendo diluído. Hoje, não conseguimos utilizar de nossos poderes livremente; temos que passar pela iniciação. ― Monique continuou.
― Mas… só existem cinco pontes. Isso quer dizer que só existem cinco linhagens de demi-humanos? E que elas são necessariamente de lobisomens, kitsunes, dracae, ghouls e magos? ― Eugene perguntou.
― Não existem somente cinco linhagens, mas as nossas são as mais fortes. ― Disse Rosa. ― Claro que, se uma pessoa de uma linhagem élfica passasse pelo ritual de iniciação correspondente, ela teria acesso à magia, mas suas características e capacidades não se assemelhariam tanto às de um Paxi.
― Por que essas… nossas linhagens são mais fortes? Eu achei que os cinco povos principais foram escolhidos por fatores geopolíticos, não por potencial mágico. ― Eugene franziu o cenho.
― Bem, existe um motivo pelo qual essas são as mais influentes. Cada um dos povos tem sua particularidade. ― Disse Rosa.
― Os Dracae, há muito tempo atrás, e eu digo muito tempo mesmo, eram humanos. ― Disse Dallon.
― O quê? ― As crianças gritaram, assustando Eugene.
― Sim, também fiquei chocado quando descobri. ― Disse Dallon, arqueando as sobrancelhas, mostrando o quão chocado estava. ― Há milhares de anos atrás, o véu entre o nosso mundo e o mundo dos Paxi não era exatamente isso, apenas um véu. Os seres mágicos e os humanos andavam de um mundo para outro direto. Sem nenhuma chance de voltar, os humanos que chegavam em Terra Pax se estabeleciam lá, criando, eventualmente, suas aldeias, sua língua comum e etc.
Todos escutavam Dallon com atenção, como se nunca houvessem escutado aquela história antes. Eugene se perguntava como Dallon sabia de tudo aquilo.
― As aldeias, curiosamente, eram sempre perto de ninhos de Dragão. Não demorou muito para que os humanos descobrissem a existência desses seres e começassem a idolatrá-los e tratá-los como deuses. ― Contava Dallon. Os olhares da família atentos ao garoto faziam com que Eugene ficasse super consciente dos seus atos e seu corpo, principalmente do calor que emanava na mão de Dallon, que ainda estava sobre seu ombro. ― À medida que o tempo ia passando e os dragões iam confiando nos humanos, o relacionamento deles se fortalecia. O conhecimento dos dragões era passado gradativamente para as aldeias, e junto com ele vieram os próprios dragões. Era como se cada humano tivesse um dragão de estimação… ou o contrário, não sei dizer. Eles começaram a ser chamados de “Dracae”, que significa “aqueles que andam com dragões”.
― Como você sabe de tudo isso? ― Perguntou Belladonna, semicerrando os olhos. ― Você é a Ponte dos Ghouls, não dos Dracae, e parece que você estudou bastante esse assunto.
― Perguntas depois da apresentação. ― Dallon desconversou. ― Então, como eu dizia, à medida que os laços deles se estreitavam e os dragões confiavam mais nos humanos, eles passaram seus conhecimentos para eles. Não sei como, mas os poderes foram passados também. A particularidade dos Dracae é ter o maior potencial mágico de todos os outros.
― Isso significa que as Pontes Dracae tem um potencial mágico maior, também? ― Perguntou Eugene.
― Exatamente! ― Dallon sorriu. ― Mas claro, existem alguns casos excepcionais, como o seu. O cargo de Ponte é hereditário. Há algumas regras, que foram escritas há, não sei, dois mil anos atrás? O ponto é que a sua mãe não estava apta para desbloquear os poderes dela. Isso significa que toda a magia dela, ou pelo menos grande parte, passou para você. Você pode ter o maior potencial mágico de todas as Pontes Dracae que já existiram, de acordo com as minhas pesquisas.
― Pesquisas? ― Belladonna ergueu uma sobrancelha. ― Você não pega em livros de magia e história nem que sua vida dependa disso, mas você faz uma pesquisa inteira sobre potencial mágico pelo Eugene?
Dallon simplesmente deu de ombros. ― Ele é meu melhor amigo. ― Disse, olhando para Eugene, lançando-lhe um sorriso. Eugene deu um sorriso de volta, mas ele provavelmente parecia prestes a explodir, visto o quão rápido seu coração batia. Não gostava de toda aquela atenção sobre si, e queria acabar com aquilo logo.
― Você tem mais alguma pergunta, querido? ― Perguntou Rosa.
― Eu…. ― Eugene estava pronto para dizer que não, mas a memória de seu tio passou-lhe pela cabeça. ― Vocês sabem… o que aconteceu com o meu tio?
A sala mergulhou em um silêncio pesado. ― Não nos disseram muita coisa, querido. ― Disse Rosa. ― Não somos realmente parte do Conselho. Somos como…. membros observadores, e algumas informações não chegam à nós. Dallon deve saber mais sobre o que aconteceu, e acredito que nem ele saiba muito.
Eugene assentiu, sentindo um peso no peito. Ninguém conseguia explicar-lhe sobre o que acontecera com seu tio, e ele tinha um certo receio em perguntar a Lazuli.
― Entendo. Como ele era? Como Ponte, quero dizer. ― Ele mudou de assunto, esperando que aquilo aliviasse a tensão da sala.
― Ele era muito corajoso. ― Disse Dallon. ― Eu me lembro que ele nunca demonstrava medo quando estávamos em uma missão, mas suponho que isso seja por causa dos anos de experiência.
― Eu me lembro que quando ele ganhou o cargo, depois de sua avó falecer, ele estava muito nervoso, mas ele conseguia cobrir sua tensão com curiosidade. ― Disse Rosa. ― Entramos mais ou menos na mesma época, mas eu era mais treinada que ele. Para Henry, tudo foi muito repentino. Geralmente é, quando a ponte anterior morre, e não renuncia.
― Ah, eu queria perguntar, como funciona essa coisa de renunciar? ― Eugene franziu o cenho. ― Tem um ritual ou algo assim?
― Tem sim. ― Disse Monique. ― É parecido com o ritual de iniciação, mas é preciso a presença das duas pontes - a que vai renunciar, e a próxima.
― Se eu renunciasse, quem seria a próxima ponte? ― Perguntou Eugene.
― Seu filho ou filha; se você não tiver, seu irmão ou irmã. Caso não seja apto ou se você não tiver um irmão ou irmã, seu primo ou prima mais velha. ― Disse Belladonna. ― Se você não tiver primos, irmãos ou filhos, você não pode renunciar. Se você morrer nessa situação e existir outra família da linhagem demi-Dracae, então essa família passa a ser a nova linhagem de Pontes.
― No caso, não existe. ― Disse Dallon. ― A linhagem de Eugene é a única que preenche os requisitos para se tornar uma Ponte. Como você não tem irmãos nem filhos, o dever passaria para seus primos. Se eles não existissem, porém, os Dracae ficariam sem uma ponte até que o Representante tivesse uma criança com um humano. Como Laz é representante dos Dracae… Não sei se isso aconteceria.
― Em todos os meus anos de Ponte, eu nunca vi aquele Dracae com ninguém. ― Disse Monique, cruzando os braços. Então, abaixando a voz, ela continuou a falar com Eugene. ― Mas sabe, corre um boato pelo Conselho que Lazuli tinha alguém, há muito tempo atrás. Mas ninguém teve coragem de perguntar, é claro. Cá entre nós, eu acho que é mentira. Não consigo imaginar aquele Dracae gostando de alguém.
― Mamãe! ― Disse Rosa. ― Não seja rude.
― O que foi que eu disse? ― Monique perguntou. ― É a minha opinião. Aquele Dracae não reconhece amor nem se o cupido flechasse sua testa!
― Por que a senhora diz isso? ― Perguntou Eugene.
― Por que todos que já viram aquele Dracae junto de Dante sabem que ele é caidinho por Lazuli, mas aparentemente Lazuli é uma pessoa boa demais para o amor dele. ― Disse Monique, com uma certa raiva.
― O quê? Como assim? ― Eugene ficou ainda mais confuso.
― Você já viu como Lazuli o trata? ― Monique perguntou. ― A frieza é tanta que você sente a temperatura abaixar, Eugene.
― Não acho que Laz faça por mal... ― Disse o garoto. ― É assim com todo mundo, é só o seu jeito.
― Ah, querido, você já foi corrompido. ― Disse Monique. ― Lazuli já conseguiu te passar para o lado errado. Acredite, aquele Dracae não tem um pingo de bondade!
― Mamãe… ― Disse um dos tios de Dallon, tentando acalmar a mulher.
― E-eu acho que isso não é sobre o Dante mais… ― Disse Eugene, começando a ficar nervoso com a situação. Ele olhou para Dallon, mas o amigo olhava para a avó, o rosto frio e impassível.
― Aquele Dracae é o mal encarnado! ― Disse Monique, começando a levantar a voz. Rosa levantou-se, tentando ajudar o irmão a acalmar a mãe. ― Como Lazuli ousa? Como ousa fingir que nada aconteceu?
― Eugene, vamos subir. ― Dallon apertou o ombro do loiro, que assentiu rapidamente. Os dois saíram da sala de estar enquanto Monique gritava frases que Eugene não conseguia exatamente entender.
Quando chegaram no quarto, Dallon fechou a porta silenciosamente, encostando a testa na madeira fria e soltando um suspiro.
Eugene, parado de pé no meio do quarto, queria entender o que estava acontecendo. ― Dallon… ― Ele disse, mas não sabia se o amigo queria conversar sobre o assunto.
― Lá embaixo… ― O moreno começou. ― Minha avó não estava falando sobre o Dante. Estava falando sobre o Noah. ― Dallon se silenciou depois daquela frase, deixando Eugene ainda mais confuso.
― Seu irmão, Noah? ― Eugene perguntou. ― Mas o que Laz tem a ver com o seu irmão?
― Noah adorava Lazuli. Ele tinha um sentimento de idolatria muito forte. ― Disse Dallon. ― Mas Lazuli nunca o reconheceu. Nunca… Nunca deu muita bola para ele, sabe? Laz sempre o tratava de maneira fria, e meu irmão saía um pouco magoado todas as vezes que os dois conversavam. ― Ele continuou. ― Claro, não é só isso… É que… Quando Noah morreu, ele estava em uma missão com o seu tio, o Arkiel e Lazuli. Os quatro acabaram se dividindo e Lazuli ficou com o meu irmão. Os dois estavam investigando um caso estranho, não sei bem o que era…. Mas…
― Ele morreu quando estava junto de Lazuli. ― Eugene deduziu. ― E… vocês acham que Laz tem uma certa culpa nessa história.
Dallon virou para Eugene, algumas lágrimas escorrendo pelo rosto. O engraçado é que sua expressão era neutra, sem demonstrar tristeza, aflição ou qualquer outra emoção. ― O corpo dele foi detido pelo Conselho para a autópsia. ― Disse Dallon. ― E, acredite se quiser, eles perderam o corpo dele. Mas Lazuli disse que ele estava completamente destroçado. E, de acordo com os relatórios, ele morreu bem na frente de Laz.
― Mas… se foi isso que aconteceu, então porque Laz não fez nada? ― Eugene perguntou.
― Eu não sei, Eugene. ― Disse Dallon, suspirando. Então, sua voz embargou, seus olhos derrubaram mais lágrimas. ― Eu só sei que eu nunca vou perdoar aquele Dracae por ter deixado meu irmão morrer.
Eugene não sabia o que fazer. Milhares de perguntas inundavam sua mente, mas ele não conseguia soltar nenhuma delas. Ele se aproximou de Dallon, segurando seus punhos cerrados e puxando-o até a cama, fazendo-o se sentar. Sentou-se ao seu lado e abriu os braços, convidando-o.
Dallon logo o envolveu em um abraço, e Eugene pôde sentir o seu corpo tremendo. Seria raiva? Ou talvez o esforço para conter os soluços que teimavam em sair de sua boca?
Eugene sabia que cinco anos não fora tempo o suficiente para que Dallon superasse a morte do irmão, e ainda assim, ele se surpreendia com o quanto o garoto ainda sentia.
Suspirou, acariciando os cabelos escuros de Dallon, esperando que, talvez por um milagre, suas mãos pudessem afastar todas as preocupações que afligiam o amigo.
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