― Vê algo, Darldollum? ―, questionou Heisondr.
― Nada, senhor.
Ambos estavam outra vez no interior da misteriosa torre do Arquimago. Por mais que estivesse construída em algum local distante, quando o velho mago fazia determinado gesto com as mãos diante de uma porta do castelo de Weidmar, ela se abria ao interior da torre.
Era, simples e puramente, magia.
O garoto assentava-se sobre uma cadeira no centro do local, seus olhos fechados. Pareciam estar a repetir o primeiro experimento que já fizeram, na manhã seguinte do dia no qual Darl chegara no local. Seu objetivo fora permitir que Heisondr entrasse em contato diretamente com o deus, compartilhando as visões de Darl.
Diferente daquela vez, contudo, não havia um círculo desenhado no chão ao redor da cadeira.
― Era o que temia... ―, o Arquimago suspirou. ― Normalmente, fazemos do espírito nosso escravo. Mas parece que o seu tem a intenção de fazer de nós seus subordinados.
Por alguma razão, não parecia uma ideia muito distante.
Afinal, aquele espírito devia possuir alguma razão para se denominar um deus.
― Ele sabe que queremos falar com ele. ―, continuou. ― Se não responde à minha magia, é porque não deseja tal.
Darl ainda não abria os olhos, apesar de ter a impressão de que logo Heisondr iria sugerir outro modo de falar com o deus. Era um tendência durante seus experimentos, afinal. Se um método não dava resultados, tentava outro.
Ele precisava apenas fazer o que o mago dizia, e logo estaria livre outra vez, e passaria o resto do dia com Eirkia.
Assim costumava ser, ao menos.
Desde o dia anterior, quando o corpo de seu pai fora cremado, a princesa raramente deixava seu quarto. Comparecia ao salão principal apenas para as refeições e, antes de todos, deixava a mesa.
Quando passava por Darl, desviava o olhar e prosseguia seu caminho. Era como se o evitasse.
Talvez o garoto pudesse tentar falar com ela, mas não conseguia. Todas as vezes que tivera uma conversa com a amiga, era porque ela havia iniciado-a. Se lhe encontrasse pelos corredores, Darl não conseguiria chamar por seu nome.
Era deprimente.
Quando deixava o salão principal, poucos instantes atrás, pensou ver Eirkia tentar pará-lo e dizer algo, mas ela acabara por dizer nada. Ele nem mesmo tentara virar-se e ouvir.
Era deplorável.
Darl era incapaz de sequer iniciar uma conversa se isso significasse partir de sua própria iniciativa. Frequentemente, ele via-se como algum tipo de observador no mundo. Mas isso também era impossível.
Por mais que suas atitudes fossem passivas, resultados de escolhas alheias, sua existência já resultara em mudanças demais. Em mortes demais.
Tudo porque havia sido escolhido.
Estava completamente fora de sua compreensão como aquele deus poderia escolher alguém como ele. Talvez absolutamente qualquer outra pessoa no mundo pudesse ser uma opção melhor.
Ainda assim, ele fora escolhido. Mesmo que não soubesse a quê.
Até que a voz portadora das escolhas que regiam sua vida ecoou na escuridão de seus olhos fechados.
Era uma voz que ostentava soberania, ao mesmo tempo que mergulhava sua alma indócil em carícias. Era a voz daquele que detinha todo poder, toda indulgência, e toda misericórdia.
Era a voz do deus.
― Se desejas o favor de um deus, deves seik-vu... reverenciá-lo.
E o deus sem fronte deu-lhe as costas.
― Es... Espera...!
O garoto esticava a mão e chamava, mas a ternura que recebera não estava mais à vista.
― Darldollum? Darldollum, viu algo?!
Seus olhos abriram-se, e encontraram o rosto envelhecido do mago que sacudia seus ombros.
― Conseguiu vê-lo? ―, insistiu Heisondr.
― ... Sim...
― Ele disse algo?
Mesmo suas memórias recentes pareciam cobertas de névoa, mas as palavras que ouvira ainda ecoavam com clareza.
― Ele disse pra... reverenciar ele, se quiser o favor dele.
― "Reverenciar"...? ―, enquanto se afastava outra vez, os lábios de Heisondr pareciam curvar-se em um sorriso sarcástico. ― Ele quer que o adoremos se quisermos sua ajuda? O maldito está mesmo sério em brincar de deus... UWA!
Subitamente, as vestes do Arquimago, na altura das pernas, entraram em chamas.
Ele saltou para trás, até rapidamente fazer gestos com as mãos. Suas pernas foram cobertas por uma névoa pálida, que fluía em círculos, até que desapareceu. Junto a ela, as chamas.
Assim, foram revelados os trajes parcialmente queimados do mago, que tinha olhos perplexos como o garoto jamais vira.
O deus respondera ao escárnio de Heisondr com punição física. Ou um aviso.
― Parece que devo ter cuidado com minhas palavras a partir de agora. ―, observou. ― Ele reforça sua autoridade por bem ou por mal.
Como era hábito quando se tornava pensativo, o mago começou a caminhar em círculos enquanto alisava a barba. Parecia sussurrar algo para si, mas estava distante demais para que suas palavras fossem propriamente ouvidas.
Até que cessou seus passos e virou os olhos ao garoto, que ainda permanecia sentado.
― Darldollum, acho que sei o que devemos fazer para conseguir seu... "favor".
...
― Mas isso seria uma blasfêmia! ―, exclamou Szeidung.
― Prefiro antes blasfemar contra Yahlov do que ser forçado a me mudar. ―, com toda compostura, retrucou o Arquimago.
― Tem certeza do que diz, Heisondr? ―, questionou o jovem rei.
Como há uma hora atrás, todos estavam de volta ao salão principal, diante de Hallerik.
Todos com exceção da princesa Eirkia.
― É minha melhor proposta, vossa majestade. Se ele deseja ser reverenciado como um deus, um sacrifício em seu nome deve ser o bastante para adquirir seu favor.
― A que ponto chegamos... ―, o general levou uma mão à testa e suspirou.
No início dos tempos, os Filhos tiveram as asas retiradas pelo Pai, que lhes havia criado mas se decepcionara com sua prole. Então, Yahlov, o Padrasto, deu-lhes mãos e assumiu a tarefa de lhes guiar ao Caminho da Virtude, para que pudessem, mais uma vez, ser merecedores de suas asas.
Os humanos, contudo, por mais que trabalhassem e construíssem, geração pós geração, não se viam mais próximos dos céus que um dia pertenceu-lhes. Assim, muitos vieram a se revoltar.
O Padrasto havia-lhes ensinado a nada mais adorar além de si, do Pai e de tudo que havia criado. Porém, os Filhos rebeldes direcionaram sua reverência a espíritos, demônios e falsos deuses em troca de favores.
Eles afastavam-se do Caminho da Virtude, e apenas se aproximavam da condenação do eterno e escuro Abismo. Era um fim miserável.
Mas Heisondr agora sugeria que fizessem o mesmo.
― Um touro ou cavalo deve servir, creio eu. ―, ele continuava.
― Mesmo se fizermos isso ―, ressaltou Szeidung. ―, o que os servos e guardas pensarão? ―, vasculhou os arredores com os olhos, como à procura de testemunhas, e então baixou a voz. ― E se boatos espalharem-se?
― Podemos fazer o sacrifício nas montanhas, então. ―, sugeriu Aston. ― Ao menos não saberão a quem será a oferenda.
― Mas então não seria um ultraje apenas ao Pai e ao Padrasto, mas aos nossos ancestrais e às Weidmaren também!
― Não estaremos adorando um deus falso ―, argumentou Hallerik, persuadido. ―, apenas trocaremos favores.
― D-Deve haver outro modo! ―, o gerente-conselheiro insistiu.
― Não temos tempo para discutir mais o assunto. Szeidung, eu quero que tragam o maior touro que tivermos às montanhas esta noite. Diga que faremos um sacrifício a Yahlov, para que esteja em nosso lado na batalha.
― ... Sim, meu lorde.
Enquanto o conselheiro partia em direção à saída, hesitante, Heisondr virou o olhar ao garoto ao seu lado.
Se havia alguma expressão em seu rosto para ser lida, era a de triunfo.
...
Aquela noite foi escura como poucas outras.
Nenhuma estrela era visível no céu, encobertas pelas espessas nuvens que ocultariam o mais brilhante luar. Uma fina neve caía lentamente, cobrindo o solo rochoso.
No ponto mais alto da trilha que riscava as montanhas que se erguiam atrás do castelo, estava o mesmo grupo que mais cedo se reunira no salão principal. Era o mesmo local onde, no dia anterior, havia sido cremado o corpo do antigo rei, Vandur Hraekhan.
Por mais que Darl não acreditasse sua presença ser relevante em qualquer uma das ocasiões, lá ele estava presente novamente.
Deitado sobre uma cama de palha e madeira, estava um touro com as pernas amarradas e pescoço recém-cortado. Seu sangue escorria espesso e pintava a neve em um profundo carmesim.
― Dedicamos este animal a ti, espírito de chamas. ―, ainda com a grande faca que usara para abater o animal em mãos, pronunciou Aston. ― Que este sangue seja merecedor de seu favor.
Seus frios olhos estavam fixos no garoto enquanto falava.
Se Darl pensasse a respeito, a atitude era coerente. Se o deus podia ser encontrado em algum local físico, só podia ser no interior de si.
Agora que refletia sobre o assunto, jamais soubera o nome do deus que se abrigava em seu corpo. Fora necessária certa medida de improviso para assumir o nome "espírito de chamas".
O general estendeu a mão livre a Szeidung, que lhe entregou uma tocha.
― Que em chamas pereçam os inimigos de Hraekhan.
Ele, então, atirou-a sobre o corpo do animal abatido. A palha logo queimou, e as chamas espalharam-se.
Então, labaredas dançaram mais altas que eles mesmos, e mais brilhantes do que aquele inverno jamais permitiria.
Os ali presentes não demoraram a notar a anormalidade, e deram um passo para trás.
Em seguida, as chamas tomaram a alta e dourada forma com a qual o deus apresentava-se nos sonhos de Darl.
― Vossas preces foram ouvidas. ―, declarou.
Porém, sua voz não saía de sua silhueta flamejante, mas dos lábios do garoto.
― Dar-vos-ei meu poder pelo tempo de três respirações.
Logo o garoto era novamente o mestre de seu corpo, e notou os vários olhos que caíam sobre si.
Por mais que suas expressões fossem tão diversas quanto as emoções que seus corações deviam guardar no momento, todos podiam concordar em algo.
E foi o Arquimago que o transformou em palavras.
― Bem, funcionou.
Comments (5)
See all