― Eu sou mesmo um monte de estrume de cavalo amassado pela roda da carroça!
Darl nem mesmo sabia onde havia ouvido aquela ofensa, mas sentia que era perfeita para descrever a si mesmo. Ele sentava-se sobre sua cama, frustrado com o mundo e consigo mesmo. Já era noite, e ele nem sequer havia tentado falar com a amiga mais uma vez.
Durante o almoço, assim como o jantar, ela apenas terminara de comer antes de todos e partira para seu quarto em seguida. Seus olhos nem mesmo uma vez descansaram sobre o garoto.
Talvez Darl pudesse haver esperado na escada antes de descer para comer, e assim teria encontrado a princesa assim que deixasse sua refeição, mas não fizera. De toda forma, não havia qualquer segurança de que conseguiria falar com ela se fizesse tal.
Ele era mesmo uma existência deplorável.
Como o verme que era, Darl arrastou-se pela cama até o criado-mudo, sobre o qual brilhava um frasco transparente em um suave tom de azul. Sua luz vinha da pequena pedra em seu interior ― a qual era chamada de "Pedra da Lua".
O garoto tinha a impressão de que a pedra não vinha da esfera que iluminava o céu noturno, mas podia imaginar a razão de haver recebido esse nome.
Ele esticou o braço até o frasco, o qual tocou com os dedos. Em resposta, sua luz imediatamente apagou-se.
Também não compreendia o fenômeno, mas o frasco acendia-se ou apagava-se sempre que o tocava. Se quisesse que permanecesse aceso enquanto o carregava a outro local, podia segurá-lo pela base de metal, sem entrar em contato com a superfície transparente.
Agora, com seu quarto tomado em escuridão, Darl deixou um suspiro escapar e enrolou-se com seu cobertor. Era seu último dia em Weidmar, e acordaria cedo na manhã seguinte. Logo, seria melhor dormir cedo.
Acabara de jogar fora toda e qualquer esperança que guardava de falar com Eirkia antes que partisse à capital de Alken. Agora devia engolir e digerir a angústia de sua falha pelos próximos dias.
Era estranho pensar que sairia pela segunda vez em uma expedição de guerra. A primeira fora quando ainda vivia em Nouwer, reino distante ao sul, com Gundar, o soldado que o encontrara no último verão e decidira protegê-lo apesar dos riscos.
E esses riscos envolviam tornar-se inimigo do próprio reino.
Tudo por causa de Darl.
Pessoas como ele não eram desejadas naquele mundo.
Desde a época da Praga, quando incontáveis vidas encontraram seu fim graças à doença, as pessoas viram-se na necessidade de encontrar um culpado, de buscar uma solução. Assim, pessoas com o cabelo na cor das chamas, como Darl, entre muitas outras, foram caçadas.
Ainda assim, houve aqueles que puderam evitar seu assassinato, e escaparam de seus reinos. Eles criaram vilarejos ou casas solitárias distantes da civilização, onde tentaram uma nova vida. Esse foi, muito provavelmente, o destino dos pais de Darl, que viviam em uma cabana nos bosques próximos a Nouwer.
O garoto estivera tão perdido que mal podia compreender a sequência de eventos da qual fizera parte. Talvez ainda vivesse uma vida lenta e pacífica com sua família, se não fosse por aquela voz.
Aquela voz que tomara seu pequeno mundo, e dera-lhe o grande no qual reside agora. Mas a qual preço?
O preço fora sua família, Gundar, e muitas outras vidas. Naquele mundo, uma alma só poderia ser preservada em detrimento de outras. Era injusto, mas a única forma que podia ser.
As únicas almas que sobreviviam eram as almas egoístas.
Na expedição a Alkerfell, mais vidas também deviam ser tomadas. No início, era revoltoso, mas aos poucos parecia tornar-se natural.
Agora Darl perguntava-se como seria recebido não pelas tropas inimigas, mas pelas aliadas. Quando estava no acampamento de Nouwer, devido à cor de seu cabelo, fora sequestrado em seu sono e quase assassinado.
Mas havia uma clara diferença entre os povos ao sul e os de Hraelund.
Enquanto nos demais reinos aqueles de cabelo vermelho escondiam-se e fugiam, os Hraekhan, família real de Hraelund, todos tinham o cabelo da cor das chamas. Dizia-se ser uma herança do Dragão Vermelho Hraekovir, pai do primeiro Hraekhan.
Neste reino, aqueles como Darl não eram odiados, mas exaltados. Fora essa a razão que levara o garoto a ser enviado por Gundar a esta cidade.
Um estalo foi ouvido.
Em seguida, um ranger, como o de uma porta que se abria.
Imediatamente, Darl ergueu-se. Seu quarto estava escuro, mas os corredores eram sempre iluminados por candeeiros ao longo das paredes. Assim, formava-se uma negra silhueta na porta semiaberta.
― Dal? ―, timidamente, ela disse. Sua voz familiar, assim como o uso daquele apelido, evidenciava sua identidade.
― S-Sim?
O garoto, como pôde, arrastou-se outra vez até o criado-mudo e acendeu a Lua.
Seu brilho pálido revelou o rosto da pessoa à porta. Era Eirkia.
Ela entrou no quarto, virou-se de costas e, enfim, fechou a porta. Ainda vestia uma camisola, o que indicava que também estivera pronta para dormir antes de vir.
Por mais que o garoto já lhe houvesse visto naqueles roupas diversas vezes, apenas agora notava como o tecido parecia leve.
Quando ergueu a visão outra vez, viu que a princesa não lhe olhava nos olhos. Ela caminhava em passos curtos em direção à cama, na borda da qual, por fim, sentou-se.
Darl pôde sentir, por mais suave que fosse, quando o colchão cedeu na extremidade e levemente lhe ergueu no centro.
Então, nenhum dos dois disse qualquer palavra.
Um estranho silêncio tomou conta do quarto, um que dificilmente acompanhava Eirkia. Sempre que estiveram juntos, ela falava com uma frequência tão grande que sua voz quase se tornava natural como o assoviar do vento.
Mas não agora. Sua ausência era sufocante, como se mergulhasse a cabeça na água e todos os sons do mundo tornassem-se abafados.
Até que, com os olhos à janela fechada, seus lábios moveram-se.
― É amanhã que você vai, né...?
― ... É...
E, assim, mais uma vez permaneceram.
A princesa sempre soubera como prosseguir com uma conversa, mesmo que, certas vezes, fosse quase tão unilateral como um monólogo. Uma vez que palavras deixavam sua boca, dificilmente cessavam.
Mas, neste momento, haviam cessado com apenas uma frase. Até que deixou suas costas caírem sobre a cama.
Seu rosto descansava ao lado das pernas de Darl, ocultas sob o cobertor.
― Queria ter feito alguma coisa diferente. ―, Eirkia comentou. ― Mas olha só... Só passei os dias trancada no meu quarto.
― ... Mas você... pode ir pra onde quiser agora, não?
Seu pai, o antigo rei, havia proibido-lhe de deixar as muralhas que cercavam o castelo e jardins até que completasse seus treze verões. Assim, ela seria adulta, e teria os plenos poderes de uma Hraekhan.
― Acho que sim... Mas, dessa vez, decidi obedecer ele...
Era estranho ouvir aquilo de uma pessoa que tantas vezes questionara autoridade. Mas, talvez, sentisse a obrigação de honrar a vontade de seu pai ao menos uma última vez.
― Quando eu sair daqui, vou te levar na taverna do tio Owen. ―, disse Eirkia, seus olhos ao teto. ― Nunca me deixaram beber aqui, mas vou te apresentar o vinho de Tsandrid.
Aquele nome era familiar.
― ... Dizem ser o melhor, né?
― Sim! O esquisitão disse a mesma coisa ho... je...
Até que se interrompeu e, com as mãos, ergueu seu corpo novamente. Outra vez sentada, olhou fixamente para Darl.
― Você tava me espiando?!
O garoto desviou o olhar para o lado e coçou a bochecha.
― É... Acho que aprendi com você.
Incontáveis vezes, enquanto acompanhava a princesa, Darl espiara conversas alheias no castelo, frequentemente entre o antigo rei e o Arquimago.
Ainda assim, o cúmplice passar a fazer o mesmo com a principal criminosa soava, agora que pensava nisso, como traição.
― Descul... ―, mas Darl interrompeu-se.
A expressão séria de Eirkia quebrou-se em uma risada.
De repente, a tensão na qual estavam mergulhados pareceu escoar. Ela não estava ofendida, mas entretida.
― Você não fez isso outras vezes não, né?
― Não... Só dessa vez, porque tava... te procurando.
― Espero mesmo!
A forma súbita como a tensão foi substituída por descontração não dera ao garoto chance de se adaptar.
Diante de si, a pessoa que passara os últimos dias a lhe evitar agora, casualmente, ria e sorria. Era como se nada houvesse acontecido naquela noite na qual Eirkia descobrira a verdade sobre sua mãe, falecida quando ainda era muito pequena.
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