Agora que lhe observava com mais atenção, Darl notou que, no lado esquerdo de seu rosto pendia uma longa e fina trança, amarrada com uma fita azul na ponta. Por mais que a conhecesse desde o outono, jamais vira a princesa com o cabelo desse modo.
Ela parecia notar seu olhar, pois tocou a trança com a mão. Então engatinhou sobre a cama até o lado do amigo.
― Vamos fazer uma em você também! ―, disse, próxima.
― O-O quê? ―, assustado, Darl tentava afastar-se, mas a cabeceira da cama era o limite. ― Fazer o quê?
― Uma trança, paspalho! Igual a minha!
― Ah...
Ainda não tinha certeza se concordava com aquilo, mas pôde apenas ceder. Dificilmente ele transformava em palavras sua vontade quando era contrária à de outra pessoa, de toda forma.
Complacência sempre fora uma forma mais segura de viver. Mais livre de dor.
Enquanto a princesa ao seu lado separava mechas de seu cabelo, Darl não conseguia encará-la. Era, de várias formas, um tanto embaraçoso.
― Você não cortou o cabelo ―, ela observou. ― uma vez desde que chegou aqui, né?
― Uh... Uhum.
Era verdade. Fazia mais de meio ano desde a última vez que aparara o cabelo, quando ainda vivia com sua família original. Desde então, ele apenas crescera um tanto negligenciado. Atualmente, chegava o ponto que era difícil manter a franja fora dos olhos.
― Você devia cuidar melhor do seu cabelo... Ele é bem bonito.
Aquela era uma afirmação difícil de se concordar. Desde que descobrira sua cor ser a fonte do ódio que recebia, Darl também passara a odiar seu cabelo.
Ainda assim, naquele momento, estava diante de uma princesa cuja família se orgulhava, mais do que tudo, de sua herança visível naqueles ondulantes fios ruivos. Seu cabelo, especialmente, era tão longo que Darl suspeitava não estar longe de poder tocar o chão quando se sentava sobre uma cadeira.
Na verdade, desde que o inverno chegara, nas ocasiões que visitavam e sentavam-se sobre o telhado do castelo, as pontas de seu cabelo frequentemente ficavam cobertas com a neve que nelas se aderiam.
Quando seu trabalho parecia estar pronto, Eirkia retirou a fita que estava amarrada na extremidade se sua própria trança. Então, também a prendeu àquela agora no cabelo de Darl.
― Vejamos... ―, disse a si mesma, enquanto descia da cama.
Ela caminhou até o guarda-roupa, o qual abriu as portas e empurrou os cabides para os lados, revelando um espelho em seu fundo. Então, ela fez um gesto com a mão, convidando Darl.
Sem muitas opções, ele levantou-se e andou até o espelho.
Lá, avistou o rosto que lhe pertencia, mas raramente observava.
Era um rosto coberto de sardas, com uma longa cicatriz que se estendia de seu nariz à bochecha direita, adquirida em uma certa noite chuvosa de outono.
Mas, mais importante que esses detalhes, era a trança que pendia ao lado de seu rosto. Estava no lado direito, oposto à da princesa, como se ambos fossem duas metades de um todo.
― Acho que a fita azul combinou com seus olhos. ―, ela observou. ― Espero que tenha gostado. Se não, se prepara pra um murro, porque deu muito trabalho desembaraçar esse cabelo!
Era curioso o modo como Eirkia usava a agressão de um modo não violento. Ela separava dois elementos inerentemente unidos, e retirava deles sua natureza negativa.
Até mesmo os tons mais contrastantes de preto e branco pareciam, em sua companhia, tender a tons mais suaves de cinza.
Por mais que ambos fossem pessoas, às próprias fundações, opostas, Darl não se sentia deslocado em sua presença. Aquele mundo inverso que lhe seguia parecia, mais que qualquer outro, como seu lar.
Sua mera existência evidenciava todos os seus defeitos, ao mesmo tempo que lhe fazia esquecer deles.
Lentamente, o garoto tocou a trança agora em seu cabelo, e sentiu que tinha, ao menos, mais uma coisa em comum com aquela pessoa.
― Dal... posso dormir com você?
Novamente retirado de seus devaneios, o coração de Darl gelou.
Certamente aquela cama tinha espaço suficiente para duas pessoas, mas esse não era o problema.
Pelo reflexo do espelho, podia ver que Eirkia não mais olhava para ele, mas para o chão. Suas mãos, baixas às coxas, apertavam o tecido da camisola.
Darl não era o único com emoções confusas no momento. Mas, de toda forma, por que ela iria sugerir algo como aquilo?
O garoto certamente queria aproveitar ao máximo a companhia da amiga. Afinal, na manhã do dia seguinte, ele partiria. Talvez ambos compartilhassem do mesmo sentimento.
Era tarde, e logo deveriam dormir. O único modo de alongar seu tempo na companhia um do outro seria, então, dormir juntos. Era perfeitamente lógico. Darl entendia esse raciocínio, então ele devia dar sua resposta.
― ... S-Sim, claro...
Com um suspiro, talvez de alívio, atrás de si, Eirkia sentou-se sobre a cama.
Apenas então o garoto atreveu-se a não mais a observar pelo espelho apenas, e virou-se. Após ver a princesa arrastar-se por sua cama até embaixo do cobertor, respirou fundo e reuniu a coragem necessária para fazer o mesmo.
Assim, após uma sequência de eventos da qual o garoto não podia ter certeza de possuir controle, ambos estavam sob o mesmo cobertor, lado ao lado.
― Posso apagar a Lua? ―, perguntou Eirkia. Ela era a mais próxima do criado-mudo, então era natural que fosse a fazer essa pergunta.
― ... Sim, sim...
Darl, a este ponto, era capaz de pouco além de meramente concordar. Não era um cenário desconhecido a ele, de qualquer forma. Ele frequentemente se via apenas concordando com os demais, com o intuito de evitar mais conflitos.
Mas, desconhecido era, certamente, o modo como se encontrava nesse cenário.
Após a princesa esticar o braço, a única fonte de luz do quarto apagou-se. Mais uma vez, a escuridão reinava naquela noite.
O silêncio que tomou o local outra vez pareceu tão sufocante quanto o último.
Darl viu-se refletindo ainda mais sobre o assunto. Considerados os planos que o rei Vandur tinha para ele e sua filha, poderia significar que Eirkia tinha a intenção de honrar não apenas um dos desenhos de seu pai?
Certamente, o garoto não se julgava pronto para tal. Mas, se fosse esse o caso, ele recusaria?
O garoto podia ouvir claramente a própria respiração, assim como a da princesa ao lado. Deviam estar tão próximos que seus ombros quase se tocavam. Naquele escuro, era difícil julgar a distância entre ambos.
Talvez Darl pudesse, lentamente, mover o braço, até averiguar o detalhe.
― Eles vão te mandar pra batalha, né?
A pergunta fez-lhe recolher o braço novamente.
― S-Sim... Mas não vou fazer muita coisa, só abrir o caminho.
Após uma longa discussão entre o rei e sua corte, chegaram à conclusão de que o melhor modo de utilizar o poder do deus durante o "tempo de três respirações" seria abrir caminho no portão e atacar as primeiras camadas de defesa dos inimigos para que as tropas aliadas fizessem a investida.
― Eles só nos usam pro que bem entendem...
Darl não necessariamente discordava da princesa. Afinal, todos os eventos de sua vida até agora, ao que entendia, havia sido resultado da vontade e atitude alheias. Sempre que seu coração divergia-se, seus desejos apenas eram negados.
Ele nunca estivera no controle.
― Bem, se a gente tem uma casa e comida... acho que é só a nossa parte?
As palavras que deixaram a boca do garoto meramente refletiam o pensamento que tentava adotar para evitar mais dor.
― É nisso que acredita? ―, Eirkia parecia chateada. ― ... Uma vez Szeidung me disse que o burro é mais feliz quando acompanha a carroça que o puxa, em vez de tentar ir contra e só se machucar mais. Mas, se eu e você somos os burros, quem é que puxa a carroça? Os adultos da corte?
― ... Talvez eles também sejam os burros.
― Então, quem puxa a carroça?
Essa era uma pergunta à qual Darl não tinha a resposta.
Mas, se olhasse para dentro de si, talvez pudesse ver um deus a conduzir uma corda em seu pescoço. Aonde ele era levado, porém, permanecia um mistério.
― Dal, você sempre segue a carroça. Você é feliz?
Essa também era uma pergunta à qual não tinha uma resposta.
Desde que tivera seu lar destruído, sua vida tornara-se um caos. Seus sentimentos pouco eram diferentes. Até que, em meio à tempestade, chegara a Weidmar, e encontrara um céu calmo como jamais antes vira. Mas, apesar do contraste, não saberia dizer se realmente se sentia bem.
Era como se a tempestade jamais houvesse deixado-lhe.
Quanto menos pensava sobre o assunto, menos se incomodava. Talvez, se esquecesse completamente do conceito de felicidade e tristeza, apenas então pudesse tornar-se verdadeiramente feliz.
― Um dia, eu vou ser livre. Não vou deixar que ninguém me puxe como bem entender.
Aquilo era muito típico da princesa. Ela sempre prezava pela própria liberdade mais que qualquer coisa.
Porém, os dois eram fundamentalmente opostos.
― Se for você puxando a minha carroça, Kia, então eu sigo.
Em um instante, o modo como chamou a amiga pareceu perfeitamente natural. Até que suas próprias palavras ecoaram em seus ouvidos no novo silêncio.
― Erm... É que você também, bem... me chama por um apelido...
― Não... Bem, tudo bem... Dal.
Ela pareceu rir, mas era difícil ter certeza.
O que importava era que, a partir daquele momento, ele poderia também chamar a amiga por um apelido. Um que apenas ele usaria..
Talvez ambos houvessem conversado mais naquela noite, mas uma forma diferente de escuridão tomou o mundo.
E essa escuridão foi banida apenas pelo som de batidas em uma porta.
― Senhor Darldollum? ―, uma voz chamava.
O garoto ergueu-se com o pouco de força que tinha. Pelos raios de luz que entraram pelas frestas da janela, podia dizer que já era manhã.
Era hora de partir, e um servo viera acordá-lo.
A hora chegaria, cedo ou tarde. Isso ele sabia. Mas agora que havia chegado, sentia-se profundamente arrependido por algo.
Quando olhou para o lado, viu que não estava mais ocupado por uma certa princesa. Ela já havia partido em algum momento, quando ainda dormia.
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