Cedo na manhã, todos já marchavam ao sul.
Darl vestia uma cota de malha surpreendentemente leve, além de carregar uma espada, escudo, e um elmo sobre a cabeça. Sua tarefa no cerco não envolveria combates corpo a corpo, mas todos haviam concordado que um pouco de cuidado a mais não seria uma má ideia.
Não vestia um casaco, mas o acolchoamento sob a armadura era tão espesso que servia como um bom agasalho. Ainda assim, seu nariz estava tão frio que temia quebrar e cair como gelo caso tentasse tocá-lo.
Ele andava sobre um cavalo, atrás de Aston. Não sabia como cavalgar, mas provavelmente não queriam que aquela figura que caminhava junto à família real marchasse a pé. Logo, sobrava ao cavalo do general carregar duas pessoas.
Sobre a massa de soldados, balançavam ao vento estandartes azuis bordados com o brasão de Hraelund. Era um dragão vermelho com a boca perfurada por uma espada, cercado por duas montanhas brancas. A simbologia fazia menção à história da fundação do reino, quando Hraethor, o primeiro Hraekhan e filho do Dragão Vermelho Hraekovir, perfurara a boca de seu pai com uma espada.
Se olhasse para trás, podia ver soldados a soprar e esfregar as luvas. Algumas vezes pensara ouvir alguns queixarem-se do fato de marcharem no inverno.
Era apenas natural. Mais de uma vez foram forçados a andar mesmo quando a neve caía tão densa que não se podia ver um palmo adiante. Em determinados trechos, ela acumulava-se tão espessa que afundavam até os joelhos, além de frequentemente ventar tão forte que um dos estandartes havia desprendido-se da haste, voado e perdido-se no pálido horizonte.
Havia por volta de uma dúzia de carroças na formação. Enquanto parte delas carregava suprimentos, grande porção estava vazia, pois devia trazer os soldados feridos de volta.
O garoto refletia, então, sobre a razão de não fazer sua viagem em uma dessas carroças. Ou mesmo algumas dúzias de soldados, mesmo que alternadamente, para não precisar marchar cada um dos dias.
Mas acabou por não transformar as dúvidas em palavras, como de costume.
— Parece inquieto, meu rei. —, Aston comentou.
Ele falava com Hallerik, que cavalgava logo ao lado.
— Me preocupo com as defesas da cidade. Basicamente exaurimos as defesas de Weidmar para ter mais tropas. Não me surpreenderia se mais algum aliado de Vengarl aparecesse nas nossas fronteiras...
— Entendo sua preocupação, meu rei. Mas é a única solução dado nosso estado atual. Arriscamos tudo para ganhar tudo.
— Sim... —, deixou escapar um suspiro. — Acho que ando ficando paranoico demais.
— Compreensível. Mas devemos lembrar que pagou uma quantia considerável a Heisondr para que monitorasse a cidade... Seja lá o que essa "Barreira" que ele mencionou funcione.
— Ele é o melhor mago neste lado do mundo, mas o maldito pensa em nada além do próprio bolso. Se alguém desse uma oferta melhor, certamente nos trairia.
O general e o rei frequentemente trocavam palavras na vanguarda da expedição. Grande parte das vezes, Hallerik pedia conselhos e compartilhava inquietudes, apenas para ser reconfortado por Aston.
Era curioso ver um rei, com uma extravagante coroa na cabeça e uma longa capa nas costas, mostrar tamanha dependência a outro homem.
— Aston —, mais uma vez, chamou. —, acha que ele planeja nos trair?
— Ele nunca foi leal a outro homem além de si mesmo, isso é verdade. Mas acredito que agora temos mais uma razão para que permaneça em Weidmar.
Darl pensou ver o rei brevemente olhar para sua direção, mas não pôde ter certeza.
Se fosse sincero consigo, o que mais lhe incomodava no momento eram suas nádegas. Após uma semana na qual passara grande parte do dia sobre aquele cavalo, a parte do corpo sobre a qual sentava apenas se tornava crescentemente mais dolorida.
...
Durante uma noite, enquanto acampavam à beira da estrada e tinham sua última refeição do dia, Darl viu-se na necessidade de utilizar o banheiro da natureza.
Poucas pausas faziam durante o dia, então ele costumava fazer bom uso das pausas noturnas, quando podia sair e aliviar-se ao mesmo tempo que mantinha certa privacidade.
Conforme seguiam ao sul, a paisagem mudava. Árvores e arbustos tornavam-se mais frequentes, os horizontes mais curtos, as montanhas ao norte mais distantes. Poucas luas atrás, no fim do outono, o garoto andara por estas mesmas estradas, porém no sentido oposto.
Ele jamais esperara traçar aquele caminho novamente, mas lá estava.
Após vestir suas calças novamente, Darl deu meia-volta e caminhou de volta em direção ao acampamento.
Quando se deparou com uma silhueta.
— Olá, menino dragão! —, ela acenou.
Darl imediatamente pulou para trás.
— Uau! Calma aí! —, levantou os braços. Sua voz juvenil devia pertencer a um garoto com uma idade próxima à sua. — Só pensei em dar oi. Todo mundo anda com um tanto de medo de você. Sou Skeivarr. E você, menino dragão...?
Agora que analisava sua forma mais cuidadosamente, era pouco mais alto que si. Seu cabelo era negro e vestia uma cota de malha como sua própria, apesar de não estar armado.
Apesar de seu tom amigável, o garoto via-se forçado a se manter em guarda. Sua última experiência com estranhos em uma expedição militar não fora a mais agradável.
— Darl... Darldollum. —, acabou por responder. — Por que medo? E por que "dragão"?
— Disseram que um Hraekhan novo ia destroçar o muro inimigo com fogo pra gente invadir. —, deu de ombros. — Acho que isso responde as duas perguntas, hein?
— ... Hã?
Havia algo errado naquela explicação, não importava como pensasse.
— Não leva o pessoal a mal. —, Skeivarr deu de ombros.
— ... E você não... tem medo?
— Não. Mais curiosidade mesmo. Foi você que detonou o muro do castelo lá na cidade?
Ele só podia referir-se a um evento.
— Sim... Mais ou menos.
Pensou se talvez devesse negar. Mas, se repetiria o mesmo no muro inimigo, confirmar sua capacidade podia ser uma boa opção.
Além de uma forma de intimidação.
— E por que fez aquilo?! —, sua voz parecia ter mais entusiasmo que qualquer coisa.
— É... complicado.
— Eu não vi, mas falaram que apareceu um dragão de fogo saindo do castelo, e parou nas montanhas! Não sabia que os Hraekhan podiam fazer isso, se transformar em dragões!
Mais uma vez, ele havia dito algo errado.
Darl não era membro da família, mas um plebeu. Ele não era um Hraekhan.
Ainda assim, fora graças à cor de seu cabelo que recebera um quarto no castelo e fora mantido próximo à corte. Era uma confusão compreensível.
— Mas me diz: como vai a princesa?
— ... Hã?
Estava diante de um jovem plebeu, provavelmente recém-alistado. Ele devia lutar no cerco de Alkerfell ao lado dos demais soldados e dar sua vida pelo reino.
Por que ele perguntava tão casualmente sobre a princesa?
— A Eirkia?
— Conhece alguma outra princesa em Hraelund?
Havia muitas coisas erradas com aquele rapaz.
— Ela vai... bem. Eu diria.
— Hmm... Bom ouvir. Não tenho notícia dela faz um tempo.
Seu tom não mudava. Como aquele plebeu falava sobre um membro da família real como se fosse um amigo próximo?
E não apenas um membro qualquer da realeza, mas uma especificamente proibida de visitar a cidade além dos muros do castelo.
— Mas e você, Daru... Daradal...
— "Darldollum". —, já estava habituado a ver pessoas terem dificuldades para pronunciar seu nome.
— Sim, isso. Qual a sua idade?
— Onze invernos.
— Faz sentido. Dizem que quem nasce no inverno é lento assim mesmo. Já eu —, apontou para si com o polegar e peito estufado. — tenho treze verões.
O garoto não podia evitar sentir-se incomodado com o fato dele haver nascido na mesma estação que Eirkia.
— Só a partir dos quinze deviam mandar a gente pra batalha. —, continuou a explicar o jovem soldado. — Mas a situação anda tão complicada que decidiram mandar até quem falta dois anos pra terminar o treinamento. Bem, melhor pra mim. Vou poder lutar com o meu pai e dizer que participei do fim de Alken.
— Seu pai é soldado...?
Era natural, pensou. Filhos e pais frequentemente seguiam o mesmo ofício, pelo que ouvira.
Gundar, o homem que lhe acolhera no passado, também era um soldado e treinara Darl entre o verão e outono para seguir sua mesma carreira. Ainda assim, carregava a impressão de que o homem sempre soubera que o garoto não viveria em paz com os habitantes de Nouwer para tanto.
— Uhum. —, o jovem assentiu. — Ele tá no acampamento do cerco agora, em Alkerfell. Espero que o velho não tenha perdido um braço.
Apesar do sarcasmo, parecia haver preocupação em sua voz.
O modo chamava seu pai, também, era tão familiar que incomodava.
— Bem, tá um frio desgraçado aqui. Até mais! A gente tá contando contigo!
O precoce soldado, tão repentinamente quando aparecera, partiu em direção ao acampamento.
Darl, por sua vez, permaneceu no mesmo local, preso aos seus pensamentos. Tudo naquele jovem parecia intrigá-lo, mas talvez nem mesmo lhe visse outra vez.
Até que o vento invernal trouxe o garoto de volta ao mundo, e ele viu-se na necessidade de retornar ao fogo também.
...
Em uma manhã, ao horizonte, ergueram-se muros de madeira familiares.
Alguns de seus trechos pareciam danificados, assim como algumas de suas torres. Intactas ou não, sobre seus topos balançavam bandeiras verdes com o brasão do reino de Alken: uma espada cercada por um par de chifres de cervo sobre a qual brilhava um olho aberto.
— Esta é Lendal. —, à frente, disse o general ao garoto com o qual compartilhava a sela do cavalo. — Imagino que se lembra da cidade.
Não havia como esquecer. Afinal, fora em suas redondezas que, junto a Gundar, fora capturado, aprisionado em seus calabouços e, diante da multidão...
— Aquele é o enviado do barão, imagino? —, inquiriu Hallerik.
No horizonte, vinda da cidade, cavalgava uma figura.
— Provavelmente. —, respondeu Aston. — Prefere que eu receba-o, meu lorde?
— Não há necessidade.
A companhia de Hraelund permaneceu imóvel, até a chegada do suposto enviado de Lendal. Ele vestia uma armadura completa, com um manto bordado com o brasão de Alken sobre sua cota de malha.
Por fim, parou seu cavalo diante do rei, e retirou o elmo.
— Saudações, vossa majestade Vandur... —, interrompeu-se.
— Hallerik Hraekhan.
— Vossa majestade Hallerik Hraekhan. Vida longa ao novo rei!
Aparentemente, as notícias da morte do antigo rei ainda não haviam chegado à cidade.
— Barão Vizar Sabos —, prosseguiu o enviado. — garante-lhes passagem segura pela cidade.
— Diga ao barão que tem nossa gratidão.
— Sim, vossa majestade. Glória a Yahlov!
— Glória a Yahlov.
Após a breve troca de palavras, o enviado partiu de volta aos muros da cidade, e a companhia de Hraelund prosseguiu sua viagem.
Lendal era uma cidade de Alken, reino em guerra com Hraelund. Ainda assim, seu barão permitia que as tropas inimigas marchassem em segurança até a capital.
Pelas lembranças que tinha da cidade, Darl acreditava nem mesmo ainda estar habitada no momento.
— Após o incêndio no outono, o rei Vengarl recusou-se a enviar subsídios a Lendal. —, explicou Aston, como se estivesse ciente das dúvidas do garoto atrás. — Muitas famílias morreram, porém mais ainda restavam desabrigadas. Foi quando Vandur fez um acordo com o barão. Ele financiou a restauração da cidade e, em troca, recebemos sua neutralidade na guerra. Há tempos eles desejavam emancipação, de toda forma.
— Eles serão uma cidade independente. —, acrescentou o jovem rei. — Mas talvez sejam parte de Hraelund um dia.
— De outra forma, permaneceriam como uma ponte entre duas metades de nosso reino, quando dominarmos Alkerfell, afinal.
Darl não sabia a razão de ambos explicarem-lhe a situação política atual dos reinos tão repentinamente, mas estava grato pela consideração. Suas dúvidas haviam sido respondidas, ao mesmo tempo que não poderia afirmar compreender tudo que lhe havia sido dito.
Ainda assim, restava uma pergunta que restava não respondida.
Por que, afinal, guerras eram travadas?
...
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