As estradas tornaram-se estreitas, os horizontes tomados por densos bosques. Se desviassem o percurso fundo o bastante na vegetação, poderiam encontrar uma abundância de cervos, assim como criaturas inteligentes que caminhavam sobre dois pés e alimentavam-se de carne humana.
Aquela era a paisagem dos arredores de Alkerfell.
Em uma tarde, os brancos muros da cidade entraram à vista, assim como seus vastos campos agricultados e os recentemente instaurados acampamentos das forças de Hraelund.
As tropas recém-chegadas dispersaram-se ao longo das tendas já posicionadas, enquanto erguiam novas.
Darl ficou alojado junto ao rei e ao general, assim como a outros oficiais militares importantes, sob uma mesma tenda. Eles discutiram o ataque até tarde da noite, e não haviam parado quando o garoto caía de sono sobre peles em um dos cantos.
Pela manhã, o general repassou a ele a estratégia.
Quase todas as forças de Hraelund estavam posicionadas diante do portão principal. Assim, todas as defesas de Alkerfell também se concentrariam naquele ponto, em resposta. Sua proximidade seria sua condenação.
A hora havia chegado.
— Está pronto, Darldollum? —, ele perguntou.
— ... Sim, eu acho.
Era difícil ter certeza. O garoto descera do cavalo a poucas dúzias de passos do portão de Alkerfell; todas as tropas, prontas para o combate, atrás de si.
— Estão escondidos. —, disse Aston, olhos ao alto. — No muro ou torres, ou atrás do portão.
Apesar da proximidade, nenhum movimento era visto sobre as fortificações. Era como se as defesas houvessem abandonado a cidade. Ainda assim, de acordo com o general, estavam lá, em algum lugar.
Os soldados estacionados ao redor da cidade haviam tomado as fazendas e as áreas de caça para si, ao mesmo tempo que bloqueavam qualquer entrada ou saída de suprimentos ou informação de Alkerfell.
No momento atual, os habitantes assim como os defensores da cidade deviam passar fome, enquanto dividiam os últimos pedaços de pão entre si e os nobres, que viviam de seu trabalho e impostos. Por que eles não se rendiam?
Como quer que pensasse, Darl via aquilo como errado. Talvez fosse hipócrita de sua parte, considerando que atualmente vivia o mesmo estilo de vida da realeza, mas não mudava de ideia.
Ainda assim, lá ele estava, momentos antes de levar dúzias de vidas ao fim. Junto a elas, também acabaria a guerra.
As pessoas que restassem, sob a coroa de Hraelund, teriam uma vida menos miserável? A morte de alguns guardas e soldados justificaria a vida de suas famílias e amigos? Além disso, por que apenas homens pareciam lutar?
Quanto mais procurava uma forma de justificar suas ações e encontrar paz de espírito, mais confuso ficava.
Ele não queria estar naquele local. Não queria fazer parte daquela guerra. Não queria ter que acabar com vidas alheias para retornar à sua própria. Mas lá estava.
Ele era o burro que, mesmo que não desejasse tal, seguia friamente a carroça conforme puxado, sem ao menos saber quem a guiava. Mas ele realmente almejava a liberdade? Por vezes, ela parecia assustadora.
— Bem, vá quando estiver pronto. —, completou Aston. — Se algo der errado, pode voltar. Temos um plano para caso não consiga.
Um plano para caso o primeiro falhasse. Essa era uma atitude madura além das capacidades do garoto.
Mas, mesmo se houvessem pensado em como prosseguir no cenário de que a cooperação do deus não fosse possível, seu sucesso significaria uma batalha mais curta.
O general retornou às tropas, deixando Darl a sós com seus pensamentos. Foi quando o garoto reconheceu não ser a melhor companhia que podia ter.
De toda forma, agora não era o momento para pensar — ele devia agir.
Mas, como agir, se isso significava ter a atitude de assassinar? Todas as vezes que agira, havia sido pequenos movimentos dentro do que fora instruído.
Agora a carroça havia parado, e apenas voltaria a andar quando o burro desse mais um passo.
Por mais que tentasse atribuir a culpa a outrem, o passo seria dado por suas próprias pernas. Não havia como se isentar.
Ele apenas queria retornar ao castelo, à sua rotina. Certamente, todos aqueles atrás de si também desejavam voltar a suas famílias, mas não poderiam enquanto a batalha não estivesse acabada. E, mesmo então, nem todos retornariam.
Ainda assim, Darl pensava apenas em si mesmo, em suas próprias dores.
Sussurros podiam ser ouvidos, carregados pelo vento. Eles vinham das tropas que esperavam por seu movimento. Talvez duvidassem de si, talvez zombassem da criança que hesitava em cumprir seu dever mesmo quando nenhum risco corria.
Entre eles, havia muitos por volta da idade de Darl. Eles nem mesmo haviam finalizado seu treinamento, mas deviam arriscar a vida naquelas terras desconhecidas. Eles deviam dar seu sangue pelo reino.
Não havia desculpas. Darl devia agir.
Ele levou a mão ao cabelo e tocou a pequena trança com uma fita azul na extremidade, mantida desde a última noite que passara em Weidmar. No momento, lembrou-se que desejava ver a pessoa que a fizera mais que qualquer coisa.
Mas, para que isso ocorresse, antes devia cumprir a tarefa à qual fora designado.
Seria muito mais fácil de seu corpo fosse tomado e o ataque feito quando mal sentia sua consciência, como já ocorrera várias vezes. Mas não agora.
Darl pôs seu elmo na cabeça.
Ele devia andar com suas próprias pernas, ferir com suas próprias mãos, e voar...
— Por favor, deus.
O sacrifício já havia sido feito nas montanhas, o favor do deus adquirido, mas Darl ainda sentia a necessidade de pedir por seu poder.
Ele teria o tempo de três respirações.
Pensou que talvez pudesse alongar esse tempo se respirasse tão lentamente quanto pudesse, mas concluiu não ser uma boa ideia.
Então ele inspirou fundo.
E seu corpo ergueu-se.
De suas costas, asas flamejantes bateram. Ele foi lançado aos céus em um instante, e pôde ver a cidade sobre os muros e torres.
Atrás do portão, como esperado, havia dúzias de tropas posicionadas. Elas deviam esperar pelo momento que o portão fosse rompido. Sobre as muralhas, agachados atrás das ameias estavam arqueiros.
Os defensores de Alkerfell estavam prontos para dar seus últimos suspiros, até que avistaram a figura flamejante que se erguia pelos céus. E aquela fora a última coisa que viram antes de ter seus olhos queimados.
Expirou.
Cuspindo o ar que havia em seus pulmões, como um dragão, expeliu chamas. Elas cobriram o muro, torres, ruas e casas imediatamente adiante, engolindo as tropas ali posicionadas.
Inspirou.
Ainda nos ares, ergueu os braços. Mas não apenas seu curtos braços de carne e osso moviam-se, mas um par de alongadas flamas com afiadas garras.
Expirou.
Então elas desceram. Junto, não apenas seu corpo, mas o muro rochoso e o portão abaixo.
Espessas nuvens de poeira levantavam-se quando pisou novamente sobre o chão. A visibilidade da entrada da cidade estava obstruída.
Inspirou.
Seu trabalho estava pronto, mas seus frutos ainda jaziam ocultos.
Então ele expirou.
O último ar escapou de sua boca acompanhado por uma voz. Não era o deplorável grito de um garoto, mas o ensurdecedor rugido de uma fera.
E esse rugido ecoou pelos campos e pela cidade, dissipando a poeira e apagando as chamas. Assim, estava revelada a tela que havia pintado. Em silêncio, o artista contemplava a beleza de sua obra.
Construção abaixo, dezenas de corpos sem vida estendidos ao chão queimado.
Apenas o vento ousava ouvir naquela manhã.
Quando urros foram ouvidos.
— Por Hraelund! —, uma voz gritava, seguida por incontáveis outras.
Darl virou-se para trás, e viu que as tropas aliadas agora se moviam em direção à cidade. Seus passos faziam o chão tremer, suas vozes faziam os ouvidos do garoto doer.
Pensou que talvez pudesse ser pisoteado, mas a multidão dividiu-se em duas quando cruzava seu caminho.
Eles tinham sangue nos olhos, e logo também em suas lanças e espadas. Eles clamavam glória por seu reino, mas seus urros eram a canção daqueles que marchavam à carnificina justificada da guerra.
Era uma visão desagradável.
Logo, suas silhuetas estavam distantes, no interior da cidade. Eles entravam pela fenda aberta no portão derrubado pelo garoto que agora contemplava-lhes com olhos ardentes devido à poeira levantada por seus pés.
Darl esfregou-os.
Agora ele estava só naqueles campos. Todos os homens capazes de lutar invadiam a cidade. Os feridos em batalhas anteriores repousavam no acampamento.
Com seu trabalho feito, também era hora de retornar.
Mas algo o impelia.
O mar de corpos chamava por seu nome.
O garoto virou-se para a cidade e andou em direção ao portão que derrubara. Havia blocos de pedra manchados pelo fogo espalhados, sobre os quais precisou pular ou desviar.
Ele caminhou entre os soldados defensores de Alkerfell. Suas mãos ainda seguravam armas, mas seus rostos escurecidos não mais podiam esboçar feições. Se pudessem, eles amaldiçoariam-no.
E Darl não os julgaria. Afinal, qualquer maldição jogada sobre si apenas se somaria àquelas que ele mesmo produzia.
Assim como em Weidmar, a rua principal atrás do portão era larga, seu caminho pavimentado por rochas. As primeiras casas que a flanqueava, próximas à entrada, estavam parcialmente queimadas ou derrubadas. As que se erguiam mais adiante, contudo, ainda mostravam sua arquitetura.
Bases de pedra, estruturas de madeira, paredes brancas, janelas e portas trancadas. Seus telhados ainda estavam cobertos de neve, assim como, sobre eles, de muitas chaminés levantavam-se colunas de fumaça.
Apesar dos gritos distantes, onde a batalha ainda ardia, aquele trecho de Alkerfell parecia habitado apenas por fantasmas.
Então, pela brecha de uma janela semiaberta, Darl percebeu um rosto. Parecia pertencer a uma pessoa jovem, seus olhos mostravam medo à mesma medida que curiosidade. Ela observava-lhe.
Quando o garoto virou-se em sua direção, porém, ela recuou novamente ao interior da casa e bateu a janela.
O elmo sobre sua cabeça escondia seu cabelo, então concluiu não ser essa a razão de sua cautela. Até que olhou para o escudo que tinha no braço. Sobre ele estava pintado o brasão de Hraelund, assim como os dos outros soldados do mesmo reino. A pessoa que lhe observava, provavelmente, havia notado ser um de seus invasores.
Pensou em jogar ao chão o escudo, mas não havia razão. Por que ele desejava sentir-se aceito pelas pessoas daquela cidade, de qualquer forma?
Novamente, corpos ao chão foram, aos poucos, revelados. Estes não estavam carbonizados, mas perfurados e cortados por armas inimigas. Enquanto a maioria tinha escudos de Alken, também era possível identificar alguns de Hraelund. As fatalidades não eram unilaterais.
Conforme prosseguia pela larga rua, o garoto deparou-se com um grande espaço aberto, semelhante àquele pouco antes do castelo de Weidmar. Concluiu ser uma praça.
Era nela que estava a maior concentração de corpos. Talvez houvessem utilizado o terreno largo como campo de batalha, mas havia sido inútil. Por que aquelas pessoas lutavam mesmo quando o resultado era óbvio?
— Menino dragão?! —, uma voz ecoou.
Darl examinou seus arredores por sua fonte, mão no cabo da espada. Por mais que jamais houvesse usado uma em batalha real, fora treinado por algumas luas em como a usar.
— Aqui! —, insistia.
Até que o garoto encontrou duas figuras sentadas com as costas contra a parede de uma casa. Um deles não tinha um elmo sobre a cabeça, e seus curtos cabelos negros juntos à forma que falava evidenciaram sua identidade.
Era o soldado com o qual falara em uma noite enquanto acampavam próximos à estrada.
Após confirmar que não eram inimigos, Darl aproximou-se.
— Veio ver a festa? —, questionou o jovem soldado. Seu companheiro ao lado ainda em silêncio. — Infelizmente, ela acabou pra nós dois aqui.
Ele apontou para seu braço direito. Um pouco abaixo do ombro, a cota de malha havia sido rompida, e uma ferida aberta ainda sangrava.
— Espero que esse braço ainda tenha jeito, senão vou ter que me aposentar antes mesmo de virar soldado de verdade...
Darl não se lembrava mais seu nome, mas recordava partes da conversa que tiveram. O jovem estava para se tornar um soldado, como o pai, que lutava na mesma guerra. Aparentemente, ele estava no acampamento ao redor de Alkerfell, e seu filho esperava ver-lhe e batalhar ao seu lado quando chegasse.
Perguntava-se se eles haviam encontrado-se.
Ainda assim, aquele ferimento parecia sério. Às vezes, Darl esquecia-se do fato de que as demais pessoas não tinham feridas que se cicatrizavam em instantes pelos poderes de um deus, como ele. Se não fosse propriamente tratada, podia vir a piorar.
— Acho que eu... —, teve uma ideia. — posso dar um jeito nesse machucado.
— Hm? Como?
— Com fogo. Se eu cauterizar...
— Espera! Isso não vai me matar, né?
— Claro que não! —, refletiu um pouco mais. — Provavelmente.
— ... Certo, vai logo...
Assim, Darl ajoelhou-se e aproximou as mãos do ombro do soldado. Como nas demais vezes, imaginou que pequenas chamas envolvessem a ferida.
Mas nada aconteceu.
O deus não mais cooperaria tão facilmente, afinal. Se desejasse seu favor, deveria tratá-lo propriamente como uma divindade.
Ele não podia sacrificar um animal no momento, mas talvez pudesse fazer preces.
— Eu... tô esperando. —, impaciente, observou o jovem soldado.
Darl devia fazer algo, mas não podia fazer-se abrir a boca e pedir ao deus diante daquela pessoa.
— Acho que... já usei tudo que podia por hoje. —, acabou por inventar uma desculpa.
— Ah... Não importa. —, suspirou. — É melhor ir logo se quiser ver nossa vitória. A essa hora, já devem tar invadindo o castelo. —, então virou sua atenção ao outro soldado sentado ao seu lado. — Você tá calado, hein, Marcus! Diz alguma coisa!
Então deu cotoveladas em seu braço, mas nenhuma resposta foi recebida.
O soldado tinha as mãos na barriga, a qual parecia haver sido perfurada não muito atrás. Sangue escorria por seus dedos, até manchar o chão sobre o qual se sentava.
— Marcus?
Com o braço ileso, sacudiu o ombro do companheiro, até que seu corpo caiu ao lado, inexpressivo. Vendo seu estado, era seguro imaginar que havia sangrado até a morte.
— Seu filho duma meretriz! —, gritou, ainda chacoalhando seu corpo imóvel. — Até você...!
Então retirou o elmo do soldado, revelando um rosto tão juvenil quanto o seu. Talvez fossem amigos, conhecidos antes mesmo da batalha. De uma forma ou de outra, eles não se veriam mais.
Se talvez pudesse ter feito algo belo braço de um, certamente não poderia evitar a morte do outro.
Vidas humanas eram realmente coisas frágeis.
— O que tá esperando?! —, virou-se ao garoto o jovem soldado. Seus olhos vermelhos. — Vai logo!
Darl apenas obedeceu.
Ele ainda desejava fazer algo quanto à ferida aberta. Mas agora já era tarde demais para voltar atrás.
De qualquer forma, ele não veria aquele soldado outra vez após retornarem à cidade. Talvez nunca soubesse se seu braço havia recuperado-se ou não.
O prospecto da ignorância era o que lhe dava uma pequena porção de paz.
...
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