— Skeivarr, seu rato! É você?! —, exclamou Eirkia ao encontrar um jovem soldado de negros cabelos no portão da cidade. Em seguida, abraçou-lhe. — Você mudou na...da...
Sua expressão alegre transformou-se em uma de surpresa e terror.
— O que houve com o seu braço?!
— Ah! Isso...? —, respondeu o jovem de armadura, movendo o pouco de seu braço direito que restava acoplado ao ombro, onde balançavam sem firmeza anéis metálicos de sua cota de malha. — Uma ratoeira.
— Você perdeu um braço!
— Acontece. Mas, se eu tivesse perdido só o braço...
— Mas... você não vai conseguir se aposentar agora, né?
— Não mesmo.
Darl, alguns metros atrás, à mesma distância permaneceu. Com o consenso do general, havia acabado de descer do cavalo ao avistar Eirkia no portão. Contudo, estava tão perdido no momento quanto já estivera na vida.
Aquilo estava errado.
Muitas coisas agora faziam sentido, mas aquilo não podia estar certo.
A razão pela qual, na primeira vez que se encontraram, aquele soldado referia-se à princesa de uma forma tão casual era porque eles já eram conhecidos.
Se, antes da proibição de deixar o castelo, ela frequentava a cidade abaixo, certamente conhecia plebeus. Alguns deles podiam ser seus amigos.
Ainda assim, dissera que honraria a vontade de seu pai e permaneceria no castelo até sua maioridade. Contudo, lá ela estava, no fim do inverno, no portão da cidade, mais de um ano distante de seu décimo terceiro verão.
Ela calorosamente recebia um velho amigo, o qual perdera um membro pela negligência de Darl, que contava com a possibilidade de jamais precisar vê-o novamente.
A conversa não mais lhe interessava, mas percebia que o rosto de Eirkia recuperava o sorriso que dificilmente lhe vira fazer após a morte do antigo rei. Ela devia sentir uma alegria sem igual por, apesar das circunstâncias, reencontrar um velho amigo do qual fora distanciada.
Darl se sentiu desnecessário. Sem importância.
Retornou a andar, então, enquanto tentava posicionar-se na beirada mais distante dos dois, na massa de soldados. Ele não queria ser notado.
Não queria estragar o momento.
Andou pela rua principal em direção ao castelo, e lá pretendia permanecer até que Eirkia retornasse. No caminho, porém, percebeu uma circulação estranha de pessoas. Pareciam também andar no mesmo sentido que ele.
O castelo onde vivia a família real, a corte e seus empregados era cercado por um grande muro, como o que cerca a cidade em si, em diversas camadas que separavam diferentes distritos. A cidade de Weidmar em si, assim como seus campos agricultados, eram cercados por uma extensa cadeia de montanhas, como uma muralha natural. Sua única ligação ao mundo exterior era um estreito vale ao sul.
Havia um grande portão que liga o castelo à cidade, e a sua frente uma grande escadaria. Era comum, afinal, castelos localizarem-se em terrenos mais altos que seus arredores.
Diante dessa escada, tão amontoadas que praticamente a escondiam, estava uma multidão de pessoas. Elas não a subiam, apenas, aparentemente, aguardavam.
Mas o quê, exatamente?
Com um estalo e ruídos, o portão — que só podia ser visto por estar a pés de altura em relação à praça e posicionar-se acima da cabeça das pessoas, do ângulo de Darl — abriu-se.
— Como é de nossa tradição —, anunciou alguém ao topo das escadas. O garoto reconheceu ser Szeidung, o conselheiro e gerente do rei, tutor particular da princesa e, aparentemente, também proclamador. —, ao fim de uma guerra, nossa majestade fará um discurso. Então, sem quaisquer delongas, recebam seu rei, Hallerik Hraekhan, filho de Vandur, filho de Wagnar, filho de Wrongnar, filho de Olattel, filho de Hunn, filho de Forst, filho de Natorell, filho de Hraethor!
Assim, de trás de Szeidung, que se retirava, veio Hallerik. Ele tinha trajes ainda mais extravagantes que aqueles que usara até pouco, quando retornava da viagem.
— Grande povo de Weidmar, do grande reino de Hraelund, é com grande prazer e orgulho que, pela primeira vez, estou diante de vós como rei.
Poucas vezes Darl lhe vira levantar a voz daquela maneira. O príncipe Hallerik sempre falava baixo e com um certo tom de simpatia. Agora, porém, como um rei diante de seus súditos, sua voz ressoava imponente.
Essa era a versão do rei que dúzias e dúzias de pessoas deveriam conhecer, dali em diante, mais do que qualquer outra.
Quando o garoto se deu conta, já estava preso na multidão, cercado por todos os lados. Subir as escadas em direção ao castelo, assim como recuar, estavam fora de questão.
— Os últimos anos foram difíceis para nós. —, continuou Hallerik. — As últimas décadas! Enfrentamos a Praga, a perseguição e, por medo do sangue puro de nossa família real, metade de nossos aliados viraram-se contra nós. Meu pai, o grande rei Vandur, lutou a vosso lado contra tudo isso. Dedicou sua vida à batalha que, infelizmente, não pôde presenciar o fim. Mas estes anos estão acabados!
Então, o jovem rei ergueu os braços e, mais ainda, a voz.
— Nosso último e maior inimigo, Alken, com seu maldito rei, Vengarl, está derrotado! Seus campos verdes e densas florestas recheadas de caça proverão a todos nós daqui em diante. Jamais passaremos outro inverno com fome!
Com as refeições fartas que tivera desde que chegara a Weidmar, Darl nunca chegara a imaginar que pessoas na cidade passariam fome.
Ironicamente, fora por bloquear a entrada de alimentos que as forças de Hraelund enfraqueceram as de Alkerfell nas últimas estações. O garoto até se sentiu um pouco orgulhoso de sua memória ao se lembrar disso.
— Sei que ainda tem sede de vingança, povo de Weidmar. Mas quero que a resista até amanhã. Esta noite, todavia, há outra sede que todos poderão saciar, pois mesmo em tempos que nos faltou pão e carne, nunca nos faltou licor! Esta noite, todas as bebidas, para soldados e seus familiares, estarão de graça!
A multidão levantou os punhos enquanto urrava em comemoração.
O rei, após alguns instsntes, ergueu uma mão em pedido de silêncio, que logo foi atendido.
— Nós próximos dias, as decisões tomadas em relação a nosso reino, incluindo as novas terras conquistas, serão feitas públicas bem aqui, como de costume. Agora, povo de Weidmar, que vossas montanhas sejam sempre altas e fortes!
Enfim, Hallerik retornou ao castelo, e a alegre multidão lentamente se dispersou e deixou a base da escada. Ao garoto, então, restava subir em direção ao castelo.
— Dal! —, até que uma voz foi ouvida. A voz mais familiar que existia, pertencente à única pessoa que lhe chamava por aquele apelido. — Aí tá você!
Por um momento, seu peito tornou-se leve. Era como se seu coração perdido houvesse, enfim, encontrado seu lar.
Até que se virou.
Em sua direção vinha a princesa Eirkia. Ao lado, acompanhava seu velho amigo soldado em treinamento.
— Não te vi lá no portão. Fiquei preocupada!
— Ah... Descul...
A frase de Darl foi interrompida por um abraço. Um que ele não esperava receber tão repentinamente.
— Vê se não some de novo, hein! —, disse ela, após se afastar outra vez. — Ah, deixem eu apresentar os dois. Dal, este é...
— A gente já se conhece. —, interrompeu o amigo da princesa cujo nome Darl custava a recordar.
— Hã? Sério?
— ... É... —, Darl assentiu. — A gente se viu... umas vezes.
Eirkia pareceu confusa por um momento, e então novamente alegre em outro.
— Bem, isso facilita as coisas pra mim.
— Não vai demorar muito até anoitecer. —, comentou o jovem soldado. — Sabem o que isso quer dizer?
— Que... —, o garoto parou e, motivado a não se passar por ignorante, lembrou-se do discurso de Hallerik. — Os soldados vão beber sem pagar?
A princesa riu e, com um sorriso no mínimo macabro, esclareceu:
— Que hoje vamos beber até desmaiar!
— O quê? Mas... —, Darl tentou argumentar. Não tinha um bom pressentimento sobre aquilo. — Isso não era pros soldados e pra família deles?
— Skeivarr é soldado —, ela apontou para o amigo. —, eu sou a princesa dessa porcaria —, apontou para si mesma. —, e você —, agora para Darl. — é o amigo da princesa. Todos temos esse direito.
Por fim, ela cruzou os braços.
— Aposto que nunca bebeu —, disse Skeivarr. Não esqueceria mais de seu nome. —, não é, menino dragão?
— Erm...
— "Menino dragão"? —, questionou Eirkia.
— É assim que os soldados tão chamando ele.
— Hmm... —, ela riu e deu de ombros. — É melhor que Daraldo... Darldumlo... Darandolaldorum...
Era incrível que, mesmo que se conhecessem desde o outono, ela ainda não conseguisse pronunciar seu nome corretamente. Existia uma razão para lhe chamar por um apelido, afinal.
— Darldollum. —, por fim, corrigiu o dono do nome.
— Essa coisa complicada aí mesmo!
— Vai vir com a gente? —, Skeivarr perguntou.
Apenas então Darl notou que era a si que a pergunta era dirigida.
Ele olhou para a amiga em busca de uma resposta, mas ela apenas assentiu rápida e repetidamente. Pelo visto, ela queria que fosse.
— Acho que sim... —, enfim, respondeu.
— Claro que vai! —, exclamou Eirkia. — Nem sei como não te fiz beber antes.
— ... Eu só como e bebo o que deixam na mesa.
— Não que me deixem beber algo demais, também, de qualquer jeito. —, pôs as mãos na cintura.
— E me deixariam?
A princesa riu da mesma forma travessa de antes. Algo parecia haver despertado seu lado questionável.
— Roubando a despensa do castelo à noite, como sempre? —, perguntou Skeivarr, também com um sorriso no rosto e uma sobrancelha levantada.
— Ultimamente, não. Mas não é roubo se é da minha própria casa!
— Que coisa feia. —, ele balançou a cabeça em desaprovação.
— Olha quem fala! Aprendi contigo, Skeivarr, seu rato!
Ambos riram. Darl não pode evitar sentir-se excluído. Era como se estivesse diante de um mundo ao qual não pertencia.
— Mas agora que meu pai maluco não me deixa mais presa lá dentro, posso voltar aos velhos tempos!
— É isso aí! —, exclamou o jovem soldado, antes de, em seguida, assumir uma expressão mais melancólica. — Bem, melhor eu ir pra casa agora. A essa hora, minha mãe já deve tar sabendo de tudo. E tem o meu irmãozinho também. Não sei como vão lidar com tudo...
— É mesmo! —, diferentemente, Eirkia ainda não parecia haver abandonado seu bom humor. — Quantos anos ele tem agora?
— Sete. E já pensa em servir também.
— Igual você e o seu pai? Quero que me conte a história toda depois também, hein! Você e Dal.
— Pode deixar! —, acenou enquanto dava meia volta. — Vejo vocês ao pôr do sol na Taberna do Velho Owen, então?
— Já tenho saudades desse lugar. A gente não vai se atrasar!
Darl, naquele ponto, já mal dava atenção à conversa.
Ele apenas tinha esperanças de retornar à sua rotina no castelo, com a companhia diária da princesa. Era um mundo unidimensional, um mundo seguro.
Agora, porém, descobria que Eirkia tinha uma história muito mais longa com aquele soldado. E tal história estivera apenas pausada, agora eprestes a ser retomada.
Darl não sabia se podia fazer parte dela.
Quando finalmente pensava estar mais próximo da amiga, de repente, sentia-se mais distante dela do que nunca antes.
— Que cara é essa? —, a princesa retirou Darl de seus pensamentos. — Parece que foi à guerra e voltou.
— Ah... Na verdade eu fiz quase nada.
— Quase nada?
— Sim. Eu...
Darl foi calado pelo dedo indicador de Eirkia, sobre seus lábios.
— Me conta depois. —, ela disse, com um sorriso no rosto. Mais normal e menos macabro que os anteriores, com certeza. — Não vamos estragar a surpresa.
— ... Tá bom.
— Ei! Vamos ver o que tão dizendo lá dentro.
— Hã?
— O Hal, o velho Aston... O pessoal!
— Ah, sim.
A princesa, então, arrastou-lhe pela mão até dentro do castelo.
...
— O que pretende fazer para ganhar a confiança do povo de Alken? —, questionou Aston ao rei, que se sentava sobre seu trono com feições visivelmente cansadas.
Eirkia e Darl lhes vigiavam da entrada do salão principal, enquanto se aproximavam a passos lentos.
— Este inverno já beira o fim. Temos tempo o bastante para resolver o problema antes do próximo. —, respondeu Hallerik. Ele retirou a coroa da cabeça e deixou que descansasse entre as mãos sobre seu colo. — O povo de Hraelund experimentou pouca produtividade nas fazendas por décadas, principalmente depois que a Praga chegou. E o povo de Alken agora finalmente terá acesso aos campos de caça outra vez.
— Acha que pode se tornar o herói deles, meu lorde? —, questionou, agora, Szeidung. — Aquele povo foi doutrinado a nos odiar.
— Vamos fazer como meu pai. Começaremos com propaganda, e então...
— O mago?
— Sim, Aston. O mago.
Só havia um mago naquela corte cujo nome Darl poderia pensar.
— Se me permite tocar no assunto, meu lorde... —, disse outra vez o conselheiro. — E quanto à princesa?
— Ela sabe de seus deveres. Não vou pressioná-la. Aliás, onde está ela agora?
— Não a viu, meu rei? —, perguntou Aston. — Quando chegamos na cidade...
— E aí! —, intrometeu-se a recém chegada Eirkia, da forma mais natural e, ainda assim, inapropriada possível. — Como tá sendo brincar de rei, Hal?
Darl percebeu que apenas agora ela havia soltado sua mão.
— Como você diz, "uma bosta de cavalo"!
Os irmãos riram descontraidamente.
— Venha aqui, sua pirralha! Fiquei com saudades da sua boca suja. —, Hallerik levantou-se do trono e ambos se abraçaram.
— Você é o único aqui que disse um palavrão até agora.
— Verdade.
Voltaram a rir. Talvez Darl jamais houvesse visto ambos darem-se tão bem antes.
— Nos vemos mais tarde. —, Hallerik disse. — Tem coisas que quero fazer agora.
— Tá bem. Até mais!
— E vocês —, virou-se ao general e conselheiro. — estão dispensados.
Então, cada um dos três partiu do salão principal a seja lá onde tinham deveres. Darl não podia evitar pensar em como aquelas pessoas pareciam atarefadas.
O local iluminado e aquecido pela grande fogueira tornou-se silencioso como raramente ficava.
— Pronto para a noite mais louca da sua vida, Dal?
— Espera, vai ser tão grande coisa assim?
— Seria muito azar se não fosse! —, Eirkia começou a subir as escadas na lateral do salão, seguida pelo amigo. — Tenta ficar minimamente apresentável, tá bem?
— Como assim? —, ele levantou uma sobrancelha.
— Sei lá! Toma um banho, veste alguma coisa que não tenha cheiro de suor e sangue!
— ... Ah!
Considerando que sua armadura nem mesmo havia sido tocada por sangue, era difícil imaginar que cheirasse a tal. Mas isso não vinha ao caso.
...
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