Após o banho, Darl procurou em seu guarda-roupa qualquer coisa que parecesse encaixar-se na descrição "minimamente apresentável".
No corredor, ao ver ninguém. Optou por descer e aguardar no salão principal. A este ponto, ele já havia decidido assumir o papel de um mero observador, e tentar compreender o que viria a seguir.
Pela porta, via o céu avermelhado do entardecer. O inverno estaria logo no fim, e os dias já não eram tão curtos. Aos poucos, no exterior, a neve que cobria o solo e telhados tornava-se mais fina.
Após uma curta espera, apareceu Eirkia. Ela usava um vestido verde, provavelmente dentro da categoria de "minimamente apropriado". Ambos deixaram o castelo e seguiram seu caminho ao longo das ruas secundárias da cidade, até que foi avistada uma figura familiar.
— Finalmente! —, Skeivarr exclamou. — Achei que tinham se perdido nesse caminho que é uma linha reta!
— Se dependesse do Dal —, rindo, Eirkia respondeu. —, seria bem verdade.
— Mas a gente entrou em tantas ruas...! —, o garoto sentiu-se ofendido.
O jovem soldado vestia uma mistura de preto, branco e marrom. Provavelmente, também minimamente apresentável.
O que significava isso, de toda forma?
Darl olhou para a construção atrás de Skeivarr. Era um edifício de madeira consideravelmente largo, com dois andares. Parecia um pouco grande demais para ser uma casa, mas pouco podia dizer, já que basicamente vivia em um castelo agora.
Em sua fachada havia uma placa, acima da porta, com o desenho de alguma forma estranha preta sobre o que devia ser uma caneca.
Quando entraram na tal taverna, Darl avistou dezenas de pessoas sentadas ao redor de mesas circulares. Todas com expressões sérias tão fixas que poderiam haver sido esculpidas sobre seus rostos.
Adiante, no fundo, havia um único homem de pé atrás de um balcão. Acima, no andar superior, ligado ao de baixo por uma escada no canto do estabelecimento, parecia haver mais mesas e cadeiras.
Quando o garoto se deu conta, Eirkia e Skeivarr já falavam com o homem no balcão.
Darl se aproximou e ouviu a conversa, mas não deu muita atenção a ela. O que atraía seus sentidos estava no rosto daquele calvo e barrigudo homem de meia idade — seu bigode.
Ou, ao menos, concluiu tratar-se de pelo facial. Eram duas espessas mechas negras, que se assemelhavam mais a manchas, repartidas no meio e que se afinavam e curvavam-se nas pontas.
Darl jamais vira um bigode como este, mas lhe parecia estranhamente familiar.
— Não te incomoda —, perguntou Skeivarr ao homem do bigode chamativo. — ver todo mundo com essa cara, Velho Owen?
— Nem um pouco! —, ele respondeu. — Quando ficar escuro, todo mundo vai estar sorrindo.
— Já tá quase lá. —, queixou-se Eirkia. — Libera logo a bebida!
— Não mesmo! —, insistiu o bigodudo. — Só quando o sol se pôr. As palavras do rei foram claras.
— Ele não vai pagar tudo, de qualquer jeito?
— Mais ou menos. Ele vai pagar uma quantia fixa, na verdade.
— E você quer esperar o máximo que der pra poder dar o mínimo de bebida?
— Fale baixo! —, ele aproximou-se para sussurrar. — Não pode me julgar, pode? A guerra é ruim para os negócios de todo mundo, princesa!
Eirkia riu.
— Tudo bem. Vou te perdoar porque senti falta de você e da sua taberna, tio bigodudo.
Em resposta, o homem suspirou, aparentemente aliviado.
Não muito depois, a fraca luz solar que iluminava o interior junto às tochas desvaneceu-se. Subitamente, então, todos na taberna perfuraram o Velho Owen com seus frios olhares.
— Está bem! —, ele exclamou. — É noite! Divirtam-se!
Com incrível velocidade, ele pôs dezenas de canecas sobre o largo balcão e, em seguida, também várias garrafas que estavam em prateleiras ao fundo.
Todos urraram em comemoração, até a princesa e Skeivarr. Apenas Darl permanecia em sua silenciosa confusão.
— Sei que estão com pressa, então não esperem para fazer os pedidos um por um. —, com a mesma velocidade, retirou as tampas de cada garrafa. — Podem se servir!
De forma surpreendentemente organizada, considerada a multidão que se formava, várias pessoas se levantaram, uma ou duas de cada mesa, e levaram garrafas e canecas
— Ainda há mesas livres. —, disse Owen. — Não vão se servir, crianças? Se estão esperando a comida, hoje não temos nenhuma. Acabou, infelizmente. Realmente uma pena, porque beber é bem melhor quando também se petisca alguma coisa.
— Na verdade, meu tio bigodudo —, responde Eirkia, com aquele mesmo sorriso que fizera várias vezes neste dia. —, estava pensando se não teria um pouco de Vinho Malaridiano aí.
Aquele nome também era familiar.
— Oh! —, o homem arregalou os olhos e, em seguida, balançou a cabeça para os lados. — Sinto muito, princesa, mas também não temos mais desse.
— Será mesmo? Porque tenho a impressão que você só liberou bebidas baratas agora.
— Fala baixo, por favor! —, ele curvou-se de novo para reduzir a distância e sussurrar. — Vou fazer essa exceção pra você. Mas só agora, e só uma caneca, está bem?
— Três. Meus amigos também precisam beber. —, ela virou-se para trás. — Não é mesmo, Dal?
O garoto só conseguiu assentir, confuso. Por que estava perguntando justamente a ele?
— Ora... —, o homem suspirou profundamente, ao ponto que sua barriga pareceu reduzir de tamanho. — Só não conte pra ninguém, ouviu?
— Eu nunca faria isso, meu tio Owen.
Ele virou-se e entrou por uma porta nos fundos, ao lado das prateleiras.
— Não precisam agradecer. —, a princesa disse aos amigos.
— Essa é a Eirkia que conheço! —, exclamou Skeivarr.
— ... Ele é mesmo seu tio? —, Darl levantou a questão.
— Nããão! —, ela respondeu em gargalhadas. — Eu só gosto de chamar ele assim, mesmo.
Em instantes o Velho Owen retornou com três canecas preenchidas até a metade.
— Obrigada, tio! —, agradece Eirkia.
— Ora... Não há de quê.
A princesa e o soldado pegaram canecas da bancada. Darl, sem muitas opções, fez o mesmo.
— À defloração de Dal! —, comemorou Eirkia, levantando sua caneca.
— O-O quê?
A princesa e o soldado entreolharam-se e gargalharam. Por que pareciam divertir-se às suas custas?
Então, ambos beberam sua caneca de vinho. Apesar de hesitante, Darl fez o mesmo.
Ele achou o gosto realmente estranho. Era um pouco doce no início, mas ficava um tanto amargo e forte, e fazia sua garganta arder. Também lembrava um pouco uvas, mas também pareceria ter nada a ver com elas.
— Vamos pra uma mesa. —, Eirkia disse. Em seguida pegou uma das garrafas sobre e balcão.
— Quero que você me diga o que andou fazendo esse tempo todo. —, disse Skeivarr, enquanto ele e Darl seguiam. — Não pode ter sido só tédio esse tempo todo!
— Vamos ficar ali em cima! —, a princesa apontou com a mão que segurava a caneca para o andar acima. Então, seguiu para a escada no canto da taverna. — Na verdade, foram, sim. —, riu e começou a subir a estreita escada. — Um tanto menos depois que Dal chegou. Mas antes disso foram aulas atrás de lições atrás de aulas...
— Nem espiou os burocratas?
— lsso? Sempre!
Os três sentaram-se ao redor de uma das poucas mesas vazias.
— E então —, começou Eirkia. —, como foi a aventura de vocês, meu ratinho de armadura e meu menino dragão?
— A minha história —, respondeu Skeivarr. — é bem sem graça. Deixa nosso dragãozinho explicar o que foi aquilo tudo que ele fez.
Ambos encararam Darl em silêncio, expectativa em seus olhos.
— Ah... bem... Eu só fui lá e derrubei o muro.
Os dois o olharam em silêncio por alguns instantes, mas logo depois soltaram mais risadas.
— Só? —, perguntaram em uníssono.
Skeivarr despejou o conteúdo da garrafa nas canecas de cada um, mesmo que a de Darl ainda não estivesse completamente vazia.
— Sim... Eu só tinha o tempo de três respirações pra fazer qualquer coisa. Então derrubei o muro e... queimei tudo que deu.
— Não é à toa que ganhou esse apelido! —, exclamou Eirkia.
— Na verdade —, corrigiu o jovem soldado. —, Tão chamando ele assim desde que ele explodiu um OUTRO muro.
— “Outro”?
— Sim, aquele bem em volta da sua casa.
— Ah, verdade! Bem... que fama!
— Um brinde ao nosso menino dragão!
Os dois levantaram suas canecas e, como sempre, Darl apenas acompanhou. E assim também fez quando bebiam.
Aos poucos, sua visão pareceu ficar um pouco turva, e precisou piscar algumas vezes.
— Menino dragão? —, alguém na taverna chamou.
— Hã? —, Darl procurou pelo dono da voz.
— Você —, um homem adulto apareceu ao lado do garoto. — é quem o pessoal chama de menino dragão?
Confuso, Darl apenas assentiu.
— Sou um dos soldados que lutaram a última batalha. —, ele estendeu a mão, e o garoto apenas a apertou. — Recebemos as ordens de esperar que fizesse "sua parte" e depois invadiríamos a cidade. Mas ninguém nos explicou o que ia acontecer de verdade. Ficamos boquiabertos quando o muro despencou! Como fez isso? É muito melhor que o que todos os nossos magos juntos fariam!
— Erm...
— Ele é abençoado por Yahlov! —, exclamou Eirkia, erguendo sua caneca.
— Se é tudo isso, por que não apareceu antes? —, queixou-se outro homem, entre os sentados. — Se tivesse derrubado o muro ainda no final do outono, meu irmão não teria morrido!
O leve tom festivo da taberna foi sufocado por outro pesado e melancólico.
— E aquele sacrifício que fizeram na noite antes de partir? —, uma voz ecoou. — Ouvi que não foi ao Padrasto, mas a um deus falso, pra dar poder a eles!
— Fiquei sabendo que foi ele que matou o rei! —, um quarto homem se levantou. — Ele saiu voando do castelo no dia que Vandur morreu, não foi?
— O quê?! —, desta vez, foi Eirkia quem levantou-se. — Eu estava lá e posso dizer que ele não encostou um dedo no meu pai! Ele... Ele já tava doente! Era isso!
— A boneca tá defendendo o namoradinho? —, zombando, aproximou-se. — Quem é o próximo, rei Hallerik? Tentando virar a próxima rainha?
Com um grito, a princesa atirou sua caneca no peito do homem, cujas roupas foram manchadas pela bebida.
— Mas o que é que tu...?! —, ele andou a passos largos em sua direção, mas teve os braços segurados por outros dois homens.
— Já tá tão bêbado assim?! Se quiser mesmo tocar um dedo na princesa dessa porcaria, é melhor ficar pronto pra forca!
Apesar da fúria evidente em seu rosto, o homem deixou de lutar contra os que lhe seguravam e retornou à sua mesa. No caminho, cuspiu no chão.
— Me dá isso aqui. —, em vez de se sentar novamente, Eirkia tomou a caneca de Skeivarr, da qual deu um longo gole. — Vou buscar outra.
Assim ela desceu as escadas.
Darl e o jovem soldado entreolharam-se em silêncio por alguns instantes, apenas para este dar de ombros e encher sua caneca outra vez.
Quando a princesa retornou, bateu sua nova caneca na mesa. O som que ecoou foi abafado apenas pelo grito que deu em seguida.
— Qual é a da melancolia? Vencemos a guerra! Glória a Hraelund!
As mesas em volta ergueram suas canecas e repetiram suas palavras.
— Glória a Hraelund!
Então o tom descontraído pareceu retornar à taberna, junto às inúmeras conversas que expurgavam qualquer forma de silêncio.
— Agora é sua vez de contar a sua história, Skeivarr. —, disse Eirkia, novamente sentada. — Não seja um rato!
— Nada demais. —, ele respondeu e deu um gole em sua caneca. — Eu só invadi a cidade com todos os outros e lutei lá dentro. E tinha quase ninguém vivo defendendo ela. Mas um filho duma muito respeitável égua me furou o braço.
— Foi por isso que...? —, a princesa apontou para o próprio ombro.
— Uhum. A coisa ficou feia demais e tive que amputar. Mas matei o desgraçado que fez isso. Furei o olho dele com a lança!
Quando a melancolia parecia ter, enfim, retornado aos dois, Eirkia levantou sua caneca.
— Ao nosso rato sem braço! —, ela exclamou.
Então ambos beberam.
Darl fez o mesmo. Foi quando notou que sua caneca tinha o conteúdo misturado de duas bebidas, o que apenas deixava o sabor ainda mais confuso ao seu paladar.
— Mas aquele sujeito pode tar certo... —, com o olhar desviado, disse Skeivarr. — Se o menino dragão tivesse aparecido antes, meu pai ainda...
— Espera! —, Eirkia inclinou-se para frente. — Seu pai morreu...?
O jovem soldado apenas derramou o resto do conteúdo da caneta para dentro da boca. Então, com um longo suspiro, deixou-a sobre a mesa e levantou-se.
— Vou buscar outra garrafa.
Ele caminhou até a escada e, em vez de descer os degraus, sentou-se sobre o guarda-corpo. Na verdade, talvez houvesse caído lá.
Em silêncio, a princesa também terminou o conteúdo de sua caneca.
Vendo ser o único que ainda não havia terminado sua bebida, Darl também engoliu o que havia na sua. O sabor não era exatamente agradável, mas a vida era pouco diferente.
— Cuidado —, Eirkia virou-se para Skeivarr e falou alto. — pra não cair e quebrar o pescoço!
O jovem soldado ignorou suas palavras completamente e deslizou escada abaixo. Darl não conseguiu ver se alcançou o chão em segurança, mas acreditava que sim.
Não muito depois, ele apareceu novamente. Subia as escadas com uma garrafa aberta em mãos — ou apenas "em mão".
No último degrau, porém, tropeçou e seu corpo caiu para frente. Apesar da situação, heroicamente salvou a garrafa, erguendo-a durante a queda. Nem uma gota fora derramada.
Ou talvez uma ou outra tenha, sim.
Rindo alto como dificilmente correspondia à melancolia anterior, Eirkia levantou-se e andou até o amigo. Então estendeu a mão a ele e apanhou a garrafa apenas.
—Ei! —, Skeivarr queixou-se.
— Prioridades. —, ela riu.
...
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