De volta à mesa, os dois conversam mais, e beberam mais.
Darl concentrava-se nas tochas e na luz da lua. Pareciam tão tristes que pensava em lhes consolar, mas apenas se queimaria. Pelo menos com as tochas. Mas e a luz da lua?
Ele deveria consolar a própria lua ou apenas a luz que entrava pela janela? Por que a lua brilhava, de toda forma? Talvez ela apenas quisesse a atenção das pessoas, aproveitando a oportunidade que aparecia quando o sol finalmente se retirava.
Ele tinha muito em comum com a lua. Mas também admirava sua coragem.
— Vamos lá pra fora. —, disse Eirkia. — Aqui dentro tá ficando chato.
— Você é quem manda! —, respondeu Skeivarr.
E assim fizeram. Primeiro a princesa e depois o soldado. Darl foi em seguida.
Mas escada parecia um pouco mais longa. Os degraus mais altos.
Ele deu o primeiro passo, apenas para descobrir que os degraus não estavam tão altos assim. Mas a escada ainda era longa, e parecia ficar mais longa ainda.
Deu o segundo passo, e o degrau parecia ter ficado mais alto novamente. Ele estava prestes a cair e se machucar.
Agarrou-se ao guarda-corpo em meio à queda, e descobriu que não houve queda alguma. Mas ainda não queria que houvesse uma.
Tentou continuar, mas seus pés não encontravam apoio. Era um pouco difícil andar para frente quando seus braços agarravam um pedaço de madeira. Talvez a frente, na verdade, fosse o lado.
De uma forma ou de outra, para um lado ou para o outro, Darl encontrou o chão. Em momento algum havia largado o guarda-corpo, contudo. Nem acreditava quando chegou lá.
Seus amigos riam.
Mas eles eram mesmo seus amigos?
— Quê? —, ele apenas foi capaz de dizer.
Eirkia e Skeivarr pareciam cochichar algo entre si por um momento, mas pararam quando o garoto chegou o suficiente para poder discernir suas palavras.
Por fim, andaram para fora da taverna. Estava escuro. A triste lua brilhava no céu. Não viria alguém consolá-la? E quanto às tochas? Elas estiveram ao alcance de Darl, mas nem pensara nas pobrezinhas.
Também havia tochas pela rua, mas estas olhavam para ele com cara feia. O garoto, acostumado com esse tipo de atitude das pessoas, apenas as ignorava.
Darl olhou para a mesma placa presa à frente da taberna, acima da porta. Agora, completamente concentrado, reconheceu a imagem sobre o desenho da caneca, para a qual apontou com o dedo.
— Olha! —, ele disse. — É o bigode do tio!
— Isso aí! —, a princesa concordava enquanto ria alto.
— O tio bigodudo do bigode agudo! —, exclamou Skeivarr.
— Hã? —, questionou Darl.
— Quê? —, inquiriu o soldado.
— Cogumelos. —, afirmou Eirkia.
— Hã? —, questionava Skeivarr.
— Quê? —, inquiria Darl.
— Cogumelos. —, insistia a princesa.
— O que tem eles? —, perguntava o soldado rato sem braço.
— A garrafa. —, Eirkia mostrou a garrafa aos dois. — Tem cogumelo desenhado nela.
— Verdade. —, concordou Skeivarr.
— Hã? —, indagou Darl.
— Quê? —, questionou a princesa.
Ela e o soldado riram. Darl apenas se sentia equivocadamente julgado pelas tochas que lhe rodeavam.
— Você sequer olhou —, Eirkia perguntou a Skeivarr. — qual garrafa tava pegando?
— E você olhou quando foi sua vez? —, retrucou este.
— Hã? —, afirmou o menino dragão.
— Quê? —, concordou o soldado.
— E se a gente andou bebendo cogumelos esse tempo todo? —, pergunta a princesa.
— Jurava que tinha gosto de hidromel. —, comentaria Skeivarr.
— Cogumelos não são venenosos? —, refletirá Darl, que encara as ameaçadoras tochas, já se esquecendo da lua, a pobrezinha.
— Vamos morrer. —, disse Eirkia.
— Provavelmente. —, confirmou Skeivarr.
— Banheiro. —, refletiu Darl.
— Concordo. —, concordou o soldado.
— Não tem nenhum aqui. —, observou a princesa.
— Pra isso existem becos escuros e suspeitos. —, afirmou Skeivarr. — Vamos, menino dragão. Se aparecer um rato, cospe fogo nele.
— Mas você é um rato. —, astutamente, observou Eirkia.
— Verdade. —, humildemente concordou o rato sem braço.
— Hã? —, surpreendeu-se Darl.
— Quê? —, questionou uma tocha.
Skeivarr arrastou o garoto até o beco mais próximo, que fizeram de banheiro.
Normalmente, Darl estaria muito envergonhado. Mas agora estava diante de um rato apenas, e nenhuma razão havia para pudor.
— Já dormiu com ela, menino dragão? —, perguntou Skeivarr. — Se disser que não, não vou acreditar. E se me convencer que não, vou te achar um otário.
Com grande esforço, Darl recordou-se do momento que dormira com Eirkia. Fora na última noite antes de partir à expedição.
— Uma vez —, respondeu. — ou outra.
— Sabia! Não sabe como invejo você, menino dragão.
Darl não entendia como alguém podia invejá-lo. Olhou para a lua e perguntou a si mesmo se alguém sentia inveja dela.
Skeivarr continuava a falar, mas o garoto não conseguia prestar atenção em suas palavras. Mas tinha certeza de ouvir coisas relacionadas a flores, chuva e a laranjas grandes para sua idade.
A lua lembrava-lhe de uma laranja. Mas uma grande laranja branca e distante. E também brilhante. Mas era uma laranja solitária, a pobrezinha!
Eles retornaram à rua, mas não encontraram a amiga.
— Ela foi embora? —, perguntou Darl, ainda incomodado com as tochas.
— Deve ter ido ao banheiro. —, responde Skeivarr.
— Mas sozinha? E se encontrar tochas?
— É verdade! A gente tem que procurar ela.
— Sim!
— Você vai por ali. —, apontou para uma direção. — Eu procuro pelo outro lado.
— Certo!
O garoto caminhou com toda velocidade que podia, mas era difícil correr quando se tinha tantos olhares sobre si. Ele nunca iria encontrar a amiga assim, e as tochas sabiam disso. Tiravam sarro dele.
Mas Darl não desistiria. Seguiu em frente, e desistiu.
Ele sabia que nunca iria encontrar alguém. Tudo que sabia fazer era atirar... atear fogo nas pessoas. As tochas sabiam disso, e não lhe deixam em paz.
O garoto correu como pôde para longe, para qualquer lugar sem tochas. Depois algum tempo, percebeu que, a partir de um ponto após uma curta ponte de pedra, não havia luzes acesas.
Olhava para trás e via os rostos flamejantes ameaçando-lhe. Percebeu que entre eles não era o seu lugar.
Enquanto atravessava a ponte, ouviu o som de água. Andou até a beirada e olhou para baixo. Identificou água corrente, e o reflexo da lua.
Olha para o céu e viu a grande e triste laranja branca. Mas ela não estava só — havia dúzias de dúzias de estrelas a seu redor. Como ela podia sentir-se triste com uma companhia dessas?
Mais uma vez, Darl identificou-se com a lua. Mesmo cercado de pessoas, era como se estivesse só, o pobrezinho!
Como ele podia sentir pena de si mesmo? Que vida miserável!
Mas isto era lamentar-se de si mesmo mais ainda.
A água estava gelada. Darl não sabia como ou quando, mas caíra no rio. É mesmo uma pena ser tão raso, e o fundo tão duro, como pedra. Pelo menos não sentia dor.
Tentou levantar-se, mas suas nádegas doeram. Para que levantar, de toda forma? Ninguém sentiria sua falta.
Em um piscar de olhos, estava claro. O céu estava em um claro azul. Pássaros cantavam e algo fedia muito.
Darl levantou-se e sentiu sua cabeça doer. Procurou apoio em uma parede de tijolos de pedra. Olhou à sua volta e percebeu estar em algum tipo de vala por onde corria uma água um pouco escura e malcheirosa.
Tentou lembrar-se de como chegara lá, e concluiu que era melhor, primeiro, pensar em como sair. Mas, com essa dor de cabeça, era impossível.
Havia uma ponte sobre ele. Ela ligava duas paredes não muito altas. Se erguesse os braços, suas mãos quase tocavam o topo, mas, mesmo se pulasse, não conseguiria puxar-se.
O que não lhe impedia de tentar. E ele tentou. Mas falhou miseravelmente.
Só lhe restava andar para um lado ou o outro, ou chamar por ajuda. Decidiu andar.
Caminhou para a direção de onde a água vinha. Percebeu que havia vários pequenos furos nas paredes aos lados, com marcas escuras que parecem indicar que água saía deles às vezes.
Suas suspeitas foram confirmadas quando um líquido escuro fétido vazou por um deles.
Por fim, apenas encontrou outra parede à frente. Abaixo dela havia uma abertura por onde vinha a água. Era alta o bastante para se passar engatinhando, se não fosse pelas grades de ferro.
Decidiu fazer o caminho de volta.
Quando retornou ao local da ponte, um homem que caminhava sobre esta notou-lhe.
— Senhor Darldollum? —, chamou. — É você?
Darl olhou para cima. O homem usava armadura e carregava uma lança. Devia ser um guarda da cidade
— Ah! —, surpreendeu-se. — Sim, sou eu, senhor guarda.
— Como foi parar aí embaixo? Quer ajuda?
— Aceito, sim!
O guarda caminhou para fora da ponte, à beira da parede, onde era mais baixo. Abaixou e estendeu a mão para o garoto, que a segurou e foi puxado para cima.
Ao chegar ao topo, sentiu uma breve tontura, mas se recuperou logo.
— Obrigado, senhor.
— Não há de quê. Está tudo bem? A princesa Eirkia e seu amigo estavam te procurando.
— Ah! —, Darl recordou-se de alguns acontecimentos da noite anterior. — Eu... caí aqui.
— Entendo. —, o guarda riu. — Foi uma noite e tanto, hein! Mas tome cuidado com esse lugar. —, ele aponta para o outro lado da ponte. — Lá fica o Gueto. Não vai querer andar lá.
— Tá bem. —, decidiu não questionar a razão. — Agora... É melhor eu procurar por eles agora.
— Boa sorte. Não devem estar longe daqui. Qualquer coisa, pergunte aos outros guardas.
— Tá certo... Obrigado!
Então, Darl partiu.
Tentava lembrar-se da série de eventos que lhe trouxeram até aquele lugar, mas suas memórias pareciam fragmentadas como um jarro partido. Sua cabeça doía, era difícil manter-se concentrado no caminho.
Não era como conhecesse as ruas secundárias da cidade, de toda forma. Ainda assim, se pudesse chegar à rua principal, também encontraria o castelo.
Quando começou a se perguntar como conseguiria falar com tantos guardas até encontrar seus amigos, ouviu duas vozes.
—Menino dragão!
— Dal!
O garoto procurou a sua origem, até ver Eirkia e Skeivarr em um estado surpreendentemente não muito diferente de seu próprio.
— Pelo Padrasto! —, exclamou a princesa. — Aonde você se meteu? E que fedor é esse?! Caiu no esgoto?
— Agora que você disse... —, Darl respondeu, pensativo. — Acho que foi exatamente isso.
Ela suspirou, e depois riu.
— E vocês? —, questionou o garoto fedorento. — Não parecem muito melhor.
Os dois entreolharam-se. Então se viraram para Darl.
— Cogumelos. —, disse Skeivarr.
Como se houvesse dito uma piada sem igual, Ele e Eirkia não conseguiram evitar senão rir. E Darl não conseguia evitar senão se sentir confuso, cansado e mais ansioso para um banho pela manhã do que jamais antes..
Quanto mais ele se lembrava da noite anterior, mais concluía que seria melhor não lembrar.
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