Darl mergulhou seu corpo na água.
Estava fria, mas era o esperado. Ninguém se banhava tão cedo na manhã, então não havia razão para estar aquecida. Se houvesse optado por esperar mais, talvez visse servos trocar aquela água por outra morna.
Ou talvez aquecessem aquela mesma água. Ele não compreendia o funcionamento aquela casa de banhos. De uma forma ou de outra, também não pretendia aguardar nem mais um instante antes de se lavar.
Havia acordado nos esgotos, e não podia mais suportar o próprio cheiro, nem as expressões que as pessoas faziam quando passava por elas. Então, ali estava. Tremia, mas suas narinas agradeciam pela água perfumada. Ele queria ter certeza de que, quando saísse, aquele perfume fosse absoluramente o único odor que seu corpo exalasse.
Ouvira de Eirkia que a casa de banhos do castelo de Weidmar havia sido construída no estilo daquelas ao sul, onde várias pessoas diariamente se banhavam juntas. De toda forma, aquela era a única que conhecia, então tal trívia de pouco importava.
Aparentemente, era um anexo ao fundo do castelo, visto que tanto o chão quanto as paredes eram feitas de rocha, diferentemente da construção principal, feita em madeira. Suas colunas circulares eram iluminadas pela luz do sol que penetrava pequenas aberturas ao longo do topo das paredes. Havia quatro banheiras no total. Todas eram, basicamente, grandes nichos cavados no piso rochoso.
Até onde sabia, pouco antes do jantar, o rei — tanto o atual quanto o anterior —, assim como Szeidung e Aston, costumavam banhar-se no mesmo horário. Os servos vinham depois, também em pequenos grupos, um dos quais Eirkia frequentemente acompanhava. Jamais soubera seus nomes, mas havia notado que a princesa, em diversas ocasiões, conversava com duas servas no castelo. Já Heisondr, aparentemente, nunca usava o local.
Darl sabia com um nível de detalhes perturbador, agora que pensava sobre, a rotina de banho de todos os moradores do castelo. Sua razão, contudo, era simples.
Ele queria ter certeza de sempre estar só.
Não apenas o banho, mas ele evitava fazer qualquer coisa na companhia de outras pessoas. Frequentemente, esperava que todos já tivessem suas refeições antes de se sentar à mesa.
Desde quando, exatamente, era daquela forma? Parecia tão natural, mas sabia ser diferente dos demais.
Talvez fosse resultado de seu estilo de vida anterior. Havia passado os primeiro onze invernos de sua vida na companhia de seus pais apenas, escondidos em sua cabana nos bosques. Depois disso, vivera mais de uma estação na casa de Gundar, que já não possuía família.
Quase todas as demais vezes que entrara em contato com estranhos, especialmente em grandes números, alguém ferira-se. Poderia seu comportamento ser resultado dessas experiências?
Darl levou a mão até a trança que pendia do lado de seu cabelo. Apesar de amarrada com uma fita, estava consideravelmente desfeita. Era apenas natural. Afinal, havia sido feita ainda antes de sua partida de Weidmar ao cerco de Alkerfell.
O pensamento de que era visto como um herói de guerra, contudo, era o que se recusava a se naturalizar.
Sua versão de que poderia haver ido mais cedo e evitado mais mortes era a única que parecia aceitar, ironicamente. Ainda assim, nenhuma escolha havia sido sua. Ele apenas seguira o que outros diziam-lhe.
Ele não era dono de seu destino. Jamais fora. Jamais seria. Não via razão para lutar contra o curso do rio que conduzia sua vida.
Mas havia uma pessoa que via.
Darl puxou o laço de seu cabelo e desfez a trança que mal já podia manter-se. Então se pôs de pé e deixou a banheira, e sua visão escureceu-se. Com as mãos no chão, foi capaz de evitar a queda, mas sua cabeça ainda latejava forte.
Quando sua visão ao menos parecia haver retornado ao normal, ergueu-se outra vez. Então cambaleou até a saída e vestiu as roupas que havia pedido a um servo que ali deixasse. Pensava estar começando a experimentar diferentes vantagens de seu novo estilo de vida. Mas a verdade era que não queria impregnar metade do castelo, incluindo seu quarto, com o odor que carregava.
Deixou a casa de banhos e seguiu pelo salão principal. No caminho, fez questão de passar próximo à grande fogueira, para que seu calor aliviasse um pouco o frio que sentia. Quando já se sentia mais confortável, andou em direção ao exterior.
Caminhava sem um rumo exato. Nem mesmo sabia que hora do dia era no momento, apenas que era tão cedo que o suficiente para o desjejum nem mesmo haver sido servido. Mas talvez pudesse encontrar Eirkia. Afinal, eles moravam no mesmo castelo.
Assim que pisou no jardim, ouviu uma voz.
— Nunca vi alguém demorar tanto num banho! —, ela dizia, e também era a mais familiar daquele mundo. — Se bem que, depois dessa, dá pra entender.
Por mais que soubesse a quem a voz pertencia, sua visão estava novamente turva. Havia outra figura ao seu lado, mas precisou piscar repetidas vezes até que sua vista focasse novamente e reconhecesse sua identidade.
— Que cara é essa, menino dragão? —, Skeivarr ria ao lado da princesa.
— Hã? —, o garoto ainda tentava recolher seus pensamentos. — Não...
— Se eu fosse você —, sugeriu Eirkia. —, caía na cama por enquanto.
Enquanto olhava para Darl, levou a mão à trança que havia no próprio cabelo. Então a soltou, talvez ao notar aonde se direcionava atenção do garoto, e aproximou-se.
— Ei, quer passar na casa do Skeivarr mais tarde? —, convidou. — A gente vai pra lá depois.
— Erm... —, se fosse sincero, ele não desejava ir. Mas se sentia compelido a seguir a princesa aonde quer que fosse. — Por mim, tudo bem...
— Antes ou depois da execução? —, questionou o jovem soldado.
— Algum de vocês vai mesmo assistir? —, inquiriu a princesa.
— A cidade toda vai. E você também.
— Como é?!
Eirkia deu um passo para trás e encarou Skeivarr com uma expressão revoltosa. O soldado, por sua vez, apenas deu de ombros.
— Seu irmão iria querer que fosse. Você sabe o que isso significa pro reino. Você é a filha de Vandur Hraekhan, não?
— Nem todo mundo olha para o pai como...
Suas palavras transformaram-se em resmungos, e então em silêncio. Era estranho ouvir aqueles dois, que não tinham mais um pai, falar sobre o do outro.
Na verdade, entre os três, todos haviam perdido ambos os pais, com exceção de Skeivarr, que ainda devia ter a mãe. Darl estava tão habituado àquela realidade que mal havia notado a situação na qual estavam.
Talvez a tragédia já fosse natural a sua vida.
— Tá bem. —, Eirkia concordou com um suspiro. — Vejo vocês depois da execução.
Sem cerimônia, ela deu as costas a ambos e partiu para dentro do castelo. Os outros dois garotos foram deixados a sós na trilha do jardim.
— Bem, é melhor eu ir indo também. —, o jovem soldado virou-se ao portão. — Eu nem devia tar aqui, de qualquer jeito. Até mais tarde, menino dragão!
Ele acenou de costas enquanto se afastava.
— Ah... Até...
Agora que pensava nisso, como um plebeu como Skeivarr havia entrado nos jardins do castelo? Os guardas deviam tê-lo deixado passar somente porque estava na companhia da princesa.
De uma forma ou de outra, a cabeça de Darl latejava demais para pensar em detalhes como aquele. Talvez fosse melhor se deitar por enquanto. Em qualquer outro dia, estaria dormindo por aquela hora.
Então ele subiu os poucos degraus rochosos que levavam ao interior do castelo, sob os grandiosos estandartes de Hraelund. Enquanto atravessava o salão principal, cruzou os olhos com a serva que lhe julgara tão intensamente em silêncio naquela manhã antes da partida.
Subiu as escadas em direção ao seu quarto, mas parou antes de seguir o corredor. Por alguma razão que não saberia explicar, subiu mais um andar. Seu dormitório estava abaixo; porém, ele seguia em direção ao de Eirkia.
Com passos lentos, caminhou pelos corredores iluminados por sequências de candelabros, até uma porta que havia cruzado repetidas vezes anteriormente. Foi quando ouviu um som.
Talvez ele não pretendesse bater na porta e entrar, de toda forma. Na realidade, não sabia que força havia-lhe incitado a ir até aquele lugar. Mas agora que lá estava, não sabia como prosseguir.
Pois ouvia soluços.
Eles vinham do interior do quarto, sem dúvidas. Cruzavam a porta abafados, mas claros. A pessoa no outro lado chorava, e não havia dúvidas sobre quem era. Ainda assim, a razão que lhe levava a tal também era desconhecida.
Talvez estivesse relacionada ao pai. Talvez ao irmão. Talvez ao reino. Talvez ao amigo que fora capaz de rever após deixar o castelo pela primeira vez em tanto tempo. Darl não tinha como saber.
Ele pensou em chamar "Kia", em bater na porta, girar a maçaneta, perguntar qual era o problema, abraçar a amiga. Mas nada disso fez.
Ele podia apenas pressionar o rosto contra a porta, e abandonar as forças que lhe mantinham de pé. Lentamente, seu corpo deslizou diante da porta, até que descansou de joelhos.
Pensou que lágrimas talvez escorressem de seus olhos também, mas até mesmo disso já era incapaz.
Eirkia estava a poucos passos de si, atrás daquela porta de madeira. Ainda assim, Darl sentia-se distante da pessoa mais importante de sua vida.
Então lá ele permaneceu, a compartilhar das dores daquela pessoa, mesmo que ela não tivesse ciência de sua presença. Talvez a única diferença que pudesse fazer em vidas alheias fosse, realmente, a negativa.
Em algum momento, os soluços cessaram, e o silêncio tomou conta daquele pequeno trecho do corredor novamente.
Com o mesmo ímpeto fantasma que lhe guiara até aquela porta, Darl pôs-se de pé e andou de volta às escadas. Então prosseguiu até seu próprio quarto, retirou as botas e entregou seu corpo à cama.
Deixou que a escuridão tomasse seu mundo.
...
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