Quando abriu os olhos à luz novamente, sua mente também estava clara. Tão clara quanto o sol. Tão clara quanto a neve. Tão clara que era vazia.
Não havia conflito, mas também não havia paz. Havia nada senão o tempo. E ele não sabia quanto tempo havia passado.
Darl levou-se a descer as escadas ao salão principal. A mesa não estava arrumada, e o trono ainda vazio. Talvez houvesse perdido o desjejum, pensou.
Sua cabeça, ao menos, não doía mais.
Ele andou até os jardins novamente. Cada dia que passava, a neve estava mais baixa. Não muito no futuro, as cores retornariam ao mundo. Mas até elas pareciam ter pouco significado.
— Bom dia, Darldollum! —, disse uma voz madura e familiar.
O garoto se virou em sua direção, para ver o general sentado sob a sombra da varanda.
— ... Bom dia, senhor Aston.
Não muito conscientemente, andou em sua direção.
— Parece um pouco perdido. Está livre?
— Sim... Eu acho.
— Ótimo. —, recolheu um par de espadas que descansavam apoiadas à cadeira. Então se levantou. — Desde garoto, a lâmina sempre me ajudou a me encontrar. Pegue!
Ele atirou uma das armas ao garoto, que desajeitadamente a capturou no ar com ambas as mãos.
— Fiquei um pouco curioso depois que o vi praticar com Eirkia. Mas que tal tentar comigo?
Havia sido no fim do outono, quando mal havia chegado a Weidmar. Sem oportunidade para recusar, Darl havia praticado com a princesa no jardim, apenas para se esquecer que não tinha um escudo consigo e ferir o antebraço com a ponta de uma espada cega.
Não era uma lembrança muito agradável.
O general não esperou por uma resposta, e andou até a pequena área cercada no jardim, onde frequentemente praticava com Eirkia. Darl, outra vez, via-se com poucas opções senão seguir.
— Você aprendeu a usar uma espada com um soldado, não foi?
— Sim, senhor. Com Gundar.
— Então deve ter aprendido a matar. Ou sobreviver. As duas coisas costumam andar juntas.
Ironicamente, apesar de quantas vidas já tirara, Darl jamais havia matado com uma arma.
Aston prendeu a bainha de sua espada no cinto, e apenas então a puxou e esticou a lâmina para frente.
— Um duelo é diferente de um campo de batalha de várias formas. A principal é a que, normalmente, em um caso, sua vida corre perigo, enquanto no outro o máximo que você pode perder é honra e orgulho... Ou alguns dedos.
Ele ergueu a mão que segurava a espada de forma a mostrar seu dedo mínimo, esticado. Darl ouvira que havia quebrado-o em um duelo amistoso com o antigo rei, e desde então perdera seu movimento.
— Mas não pense que ainda não consigo manejar uma espada. —, com um sorriso, observou.
O garoto, que não encontrava palavras para dizer, também prendeu a bainha ao cinto e sacou sua espada. Há muito tempo não praticava o uso de uma arma como aquela, e mal sabia que postura assumir.
— Pernas separadas, espada adiante, mão nas costas. —, instruiu Aston, enquanto tomava a pose que descrevia. — É assim que os nobres duelam. Isso até cair em murros e chutes. —, deu de ombros.
Darl pouco compreendia da razão daquilo, mas se posicionou da mesma forma que o general.
— Venha quando estiver pronto.
Ele esperava que o garoto fizesse o primeiro movimento. Garoto esse que não queria estar ali, e nem sabia como poderia perfurar sua defesa sem se envergonhar.
Mas lá ele estava, em uma pose desconfortável, a segurar uma espada que não parecia fixar-se bem em sua mão. Ainda assim, se atacar significava estar livre mais cedo, assim faria.
Então ele desferiu uma estocada.
E a lâmina do general apenas girou tão rápida e elegantemente que os olhos do garoto mal puderam acompanhar quando seu golpe fora refletido.
Mal houvera impacto. O braço de seu adversário nem mesmo parecia haver movido-se. Ainda assim, o ataque sobre o qual depositara seu peso havia sido enterrado na neve. Por pouco não havia largado a espada.
Darl reconhecia não ser um espadachim habilidoso, mas aquilo era mais humilhante do que poderia haver imaginado.
Devia haver algo errado em seu golpe. Talvez houvesse sido muito óbvio, muito direto. Então se recompôs e se pôs a tentar algo diferente, menos previsível.
Ele avançou com um corte alto, apenas para interromper o movimento e desviá-lo às pernas do adversário. Se um ataque verdadeiro não tinha efeito, podia precedê-lo por outro falso.
Ainda assim, o general rapidamente se adaptou ao novo cenário, e desviou seu corte com um longo movimento do braço. Talvez isso houvesse, por um momento, aberto uma brecha em sua defesa, mas a lâmina de Darl também viajava para fora de sua postura, enquanto seu usuário dava passos cambaleantes para o lado.
Quando recobrou seu equilíbrio, viu que havia um sorriso no rosto de Aston. Ele parecia divertir-se com sua miséria. O que poderia esperar de uma pessoa cujo trabalho era planejar métodos de matar o maior número de inimigos enquanto sofria as menores fatalidades?
Era frustrante.
Mas Darl não desistiu. Se parasse e considerasse suas ações, veria o quão imaturas e improdutivas eram. Ainda assim, jamais havia realmente batalhado por alguma coisa na vida.
Sempre fora empurrado e puxado por aqueles que tinham planos para ele. Era esse o destino que devia aceitar?
O garoto avançou outra vez, mas não com a sua espada. Ele chutou a neve sob seus pés em direção ao general, e apenas então atacou com a arma. Seu adversário deveria tapar os olhos, e estaria vulnerável por um instante.
Darl fora treinado por um soldado, ensinado a procurar todo método possível para garantir sua própria sobrevivência. Sua vida não estava em perigo, mas ainda lutava com toda sua alma. Não havia o que devesse defender, mas ainda atacava.
A neve que voou de seus pés, contudo, meramente atingiu as roupas do general da cintura para baixo. A espada que avançava, por sua vez, foi desviada pouco diferentemente de antes.
Quando o garoto recuperou seu equilíbrio novamente, viu uma expressão incrédula no rosto de Aston. Uma que logo foi quebrada por gargalhadas. Até mesmo o golpe sujo de Darl resultara em completo fracasso.
Por que ele lutava se nem mesmo havia chance de acertar um único golpe?
Ele tinha vergonha até de sua mera existência.
— Você tem sorte, Darldollum. —, disse Aston, enquanto recuperava o fôlego e limpava a neve das roupas. — Poucos acabam com quem gostam.
— Hã...?
O garoto não encontrava relação entre sua frustrante performance, que talvez pudesse assemelhar-se a um duelo, e o assunto.
— Mas você realmente jogou a honra fora bem rápido. —, chutou a neve para o lado, comicamente imitando o movimento de seu adversário.
Se fosse sincero consigo mesmo, Darl não sabia o que era honra.
— Sabe —, continuou o general. —, casamentos são uma troca, como tudo na vida. Você ganha algo, mas também pode perder. Principalmente entre nobres. —, olhou para o céu. — Tenho um tanto de inveja dos plebeus.
Ele parecia falar sobre um assunto sobre o qual tinha longas memórias.
— ... O senhor é casado?
— Bem, fui. —, riu amargamente. — Não nos vemos mais, de toda forma. E agora metade dos meus filhos me odeia, e a outra nunca vem me procurar. Mas todos estão bem, e isso seria pedir muito para a maioria das pessoas.
Pela sua idade, com seus cabelos e barbas grisalhos, seus filhos deviam ter vivido a época da Praga. Dadas as experiências que Darl ouvira sobre aqueles que tiveram que a enfrentar, podia entender o que Aston dizia.
— Mas por que não falamos sobre o seu casamento? —, o general virou-se ao garoto.
— ... Hã? Meu?
— Sim. Não acho que seja novidade para você. Eram os planos que Vandur tinha desde o início.
— Sim...
Só havia uma razão pela qual podia viver no luxo daquele castelo, afinal.
Ele não era descendente do Grande Dragão Vermelho, não carregava o sangue Hraekhan. Porém, seu cabelo era da mesmo cor que o deles, e isso era tudo que importava.
Ainda assim, não conseguia olhar para a princesa com os olhos de quem planejava restaurar, mesmo que falsamente, sua antiga linhagem. Aproximava-se dela porque sua companhia era a mais agradável dentre todas as pessoas que viviam no castelo.
Contudo, recentemente, via até mesmo ela afastar-se. Eirkia agora podia visitar a cidade abaixo, assim como seus amigos antigos.
Talvez fosse egoísmo seu, mas se sentira particularmente feliz quando ouvira da princesa que permaneceria no castelo até sua maioridade. Isso significaria que, quando retornasse da batalha ao sul, teria sua companhia apenas para si.
Não queria dividi-la com outros.
Mas nem mesmo Eirkia poderia fugir de seus deveres como Hraekhan. Ela deveria retornar eventualmente, e consagrar seu destino junto a Darl.
— Hallerik vive à beira de fazer como seu pai. —, continuou Aston. — Se algo acontecesse à princesa, poderia ser o fim da linhagem. Nem todos amam a Família Hraekhan hoje, e suas amizades na cidade abaixo fazem dela um alvo fácil...
Havia razão nas palavras do general. A família real, assim como todos os ruivos, havia sido assassinada pelo povo que buscava, desesperadamente, um fim à Praga. Seu rancor, como Darl experimentara mais de uma vez pessoalmente, não havia de todo morrido.
Talvez fosse pelo próprio bem que Eirkia fosse restrita de deixar o castelo.
Lá havia comida, segurança, pleno espaço, conforto e companhia. Tudo o que precisaria estava lá. Ela mesma já passara parte de sua vida assim. Darl, por sua vez, também podia ver-se com um futuro pleno sem sequer deixar os limites dos jardins.
— Mas ela nunca permitiria isso. Eu conheço a princesa desde que ela nasceu e posso dizer que, se tem alguma coisa da qual ela jamais abriria mão, é da sua liberdade. Ela iria preferir a morte a uma vida determinada por outros... Acho que puxou de alguém.
Após proferir essas palavras, o general assumiu outra vez sua postura do duelo. Darl, por impulso, fez o mesmo, meramente a tempo de, por pouco, bloquear um ataque que vinha em sua direção.
A partir de agora, não era ele o ofensor, mas o ofendido.
— Hal também não vai melhor. Além de ser rei tão jovem, precisa encontrar uma esposa e deixar seu legado adiante. Mas já deve saber que poucos restam nesta parte do mundo que podem se passar por um Hraekhan.
Seus movimentos eram ágeis e perturbadoramente precisos. Mal parecia mover os pés conforme se movia para frente e desferia mais ataques.
Darl via-se sem opção senão andar para trás. Ele devia criar mais espaço entre si e o adversário, ou então seria incapaz de se manter ileso.
— Os nobres da cidade só esperam pelo momento para dar o bote. A Praga se foi há quase doze anos, mas o poder dos Hraekhan continua quase tão frágil quanto. Antes dela, costumam ser mais de duas dúzias, afinal.
Seu ritmo de ataque parecia apenas acelerar a cada instante. Seus golpes sem piedade.
Ele parecia querer testar o limite de seu oponente.
— Todos têm muitas coisas para se preocupar. Então, eu queria lhe fazer um pedido, Darldollum.
Enquanto bloqueava as investidas do adversário ao máximo de suas capacidades, Darl foi desarmado. Suas costas colidiram-se contra o baixo cercado de madeira que delimitava a área de treino. Estava encurralado.
Então o golpe de piedade foi desferido à sua garganta.
— Respeite a liberdade de Eirkia.
Aston baixou sua espada de treino, que pairava a poucas polegadas de seu alvo. Então estendeu a mão ao atônito garoto.
Darl, ainda hesitante, segurou-a. Então foi corpo foi puxado e, novamente, estava sobre os próprios pés.
— Você é um Hraekhan agora, mas espero que ouça este velho homem. —, o general embainhou sua espada novamente.
Darl, que recolhia sua arma do chão, ergueu uma sobrancelha. Havia ouvido algo curioso.
— Não sabia? Você já é bem famoso, "menino dragão". Não podemos te esconder mais, então inventamos uma pequena história sobre você. —, sorriu. — Veja, você é era um Hraekhan sobrevivente, de um galho distante da família, encontrado em um vilarejo isolado ao sudoeste. Vivia como camponês, mas ainda guarda o sangue puro do Dragão. Gosta de sua nova identidade?
— ... As pessoas acreditam nisso?
— Bem, já fizemos elas engolirem histórias piores.
Enquanto o general dava de ombros, viu que, do castelo, saía Hallerik com sua dourada coroa sobre a cabeça. Ele era seguido por uma companhia de guardas.
— Parece que vai começar. —, disse Aston. — É melhor nós irmos à praça agora.
...
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