Sobre a antes espaçosa praça, estavam dúzias de dúzias de pessoas reunidas, ao ponto que o claro chão pavimentado não era mais visível. Elas aglomeravam-se até onde os olhos alcançavam, ao longo das ruas que dali se desdobravam, e desapareciam nas distantes esquinas.
Talvez toda a cidade estivesse reunida naquele mesmo local. Elas disputavam por um vislumbre do que se elevava no centro da praça.
— Queima! Queima! —, elas vaiavam.
O centro de suas atenções e alvo de sua cólera estava sobre um monte de madeira e palha, no meio de qual se erguia um grande poste. Em sua extremidade estava uma suja e rasgada bandeira do reino de Alken, à sua base, o derrotado rei.
— Hoje Vengarl vai queimar. —, disse o guarda ao lado de Darl. — Meu pai morreu na guerra anos atrás, e agora o meu filho. Bem merecido, se me pergunta.
— ... É verdade. —, com pouca sinceridade, concordou o garoto.
Ambos estavam de pé no portão que dava ao jardim do castelo, no topo da escadaria ligada à praça abaixo. Dali, podiam ter uma vista relativamente privilegiada da execução.
Em meio à multidão, duas fileiras de guardas abriam caminho, ao longo do qual andava o rei Hallerik. Sua magnífica capa era tão longa que arrastava a borda sobre a neve e o chão pavimentado. Em sua mão, havia uma tocha.
Quantas vezes Darl vira vidas encerrarem-se em chamas?
Os vivos despediam-se dos mortos por sepultar seus corpos sob a terra. Lápides seriam erigidas sobre seu local de descanso, visitadas por aqueles deixados para trás. Suas almas descansariam sob o solo ao qual a humanidade fora condenada ao perder suas asas, até que seus descendentes alcançassem a Virtude e fossem reconhecidas pelo Pai.
Esse, ao menos, era o destino da maioria das pessoas.
Os Hraekhan, herdeiros do sangue do Grande Dragão Vermelho Hraekovir, retornavam às chamas das quais foram gerados. Suas cinzas voariam aos céus, onde suas almas reuniriam-se ao Pai. Suas marcas não estariam no solo em lápides, mas em seu legado e memória daqueles deixados para trás.
Ainda assim, contudo, havia outra razão para cremar os mortos — ou vivos.
Aqueles que levaram vidas amaldiçoadas ou desvirtuosas eram queimados, para que suas almas fossem purificadas e pecados perdoados. Se queimadas vivas, sua dor em carne reduziria sua punição após a morte e talvez as livrasse do Abismo. Era o destino de adoradores de falsos deuses, pecadores incorrigíveis e aqueles que disseminavam dor sobre o solo.
Queimar os vivos era, portanto, uma forma de piedade.
Contudo, nos olhares sádicos daquela multidão parecia haver muitos sentimentos, entre os quais misericórdia não fazia parte.
— Vengarl Elrank —, proferiu o jovem rei. —, ainda esta lua sentava-se sobre o trono de Alken, onde idealizava mais formas de humilhar-nos!
A massa respondeu com vaias e insultos ainda mais altos.
— Até ontem, devíamos a ele a morte de nossas famílias. Mas, hoje, com morte retribuímos!
O braço de Hallerik fez um longo arco no ar, então atirou a tocha aos pés do rei derrotado. Aos poucos, chamas ergueram-se. Com elas, a voz do povo que regozijava na dor daquele que lhes fizera sofrer.
— Eu lhes amaldiçoo! —, gritava Vengarl. — Hraelund ruirá em chamas!
Logo, sua voz foi abafada pelos próprios gritos de dor, assim como os de êxtase da multidão.
— Nos erguemos sobre cinzas e sangue! Glória a Hraelund! —, Hallerik ergueu os braços.
— Glória a Hraelund! — todos repetiram em uníssono.
O fim daquela manhã de inverno foi marcada pela cacofônica canção do povo que saciava sua sede de vingança.
Enquanto observava a vida esvair-se daquele corpo em meio à sádica performance, contudo, Darl refletia sobre como soava seu novo nome.
"Darldollum Hraekhan."
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