I
Não havia relógio no quarto, mas alguém com um certo conhecimento de geografia poderia dizer que eram aproximadamente 16h quando ele acordou. Ao seu redor, vários fios que o conectavam a diversas máquinas, como um cordão umbilical conecta o filho à mãe que lhe garante a existência. Uma jovem enfermeira sentava no canto do quarto em uma poltrona destinada aos acompanhantes, e que era frequentada pelas suas várias cuidadoras e, em raros casos, pela sua super atarefada mãe. Ela lia um grosso livro, que ele não conseguia decifrar o título - estava em outro idioma ou as letras que se confundiam tanto naquele estilo de escrita -, e do qual ela sequer tirou os olhos depois que o garoto acordou. Não era uma das enfermeiras que normalmente o atendiam, e parecia bastante inexperiente.
Ele olhou para ela, esperando aquele olhar quase-de-pena de todos que passavam por seu quarto, mas ela simplesmente o ignorava. “Que horas são?”, “Tarde demais para ser hora do almoço, cedo demais para ser hora do jantar”. Isso não respondia muito, exceto que ele passaria fome por mais um tempo, mas já estava acostumado. Tentou se soltar dos fios para ir ao banheiro, mas apenas se embolou ainda mais neles. E a enfermeira continuava com os olhos no livro, sem fazer qualquer menção de ajudá-lo. “Ei, você! Teria como fazer alguma coisa, eu preciso levantar para ir ao banheiro!”. Ela passava as páginas do livro, ignorando-o completamente. “Não se finja de surda, eu acabei de te ouvir falar!”, “Nem todo surdo é mudo sabia?”, ela olhou levemente para ele, quase que desafiando-o a sair da cama e fazer algo. Ele tentou levantar o tronco, mas sentiu a tontura bater e deitou novamente. “Melhor ficar quieto, antes que se machuque”, “Então faça seu trabalho”, ela voltou a ignorá-lo, concentrando-se no livro à sua frente. A raiva do jovem estava a ponto de fazê-lo mudar de cor, “Eu vou reclamar para sua superiora!”, ameaçou, obtendo como resposta um breve olhar de escárnio e um riso contido, “Eu não trabalho aqui”.
O rosto dele verdadeiramente mudou de cor, de um pálido-hospitalar para um pálido-eu-acho-que-essa-mulher-vai-me-matar. O garoto começou a freneticamente apertar o botão ao lado da cama, tentando a todo custo chamar as enfermeiras. “Não vai funcionar, não irão te ouvir”. Se lembrou que aquele fora um dos raros dias que a mãe prometera visitá-lo, “Minha mãe...”, “Foi resolver um problema, não voltará tão cedo”. Sentia seu coração bater mais e mais forte no seu peito, ao ponto que todo o seu corpo parecia pulsar no mesmo batimento, e seu pulmão afundava cada vez mais, esvaziando-se como um balão, sem conseguir receber de volta o ar para funcionar. Ela riu levemente com a estranheza da situação, “Respire, não precisa ter um ataque de pânico”.
O garoto tentou tomar de volta um pouco de controle sobre seu corpo, e o balão vazio que eram seus pulmões voltaram a encher. “O que você quer?”, “Eu? Nada”, “Você é uma tarada, serial killer ou algo que o valha?”, “Não”, “Não acredito em você”, “Acredite no que quiser”. O seu coração desacelerava, enquanto ele tentava controlar sua respiração. “Você quer dinheiro então? É isso?”, “De onde venho, seu dinheiro não tem valor algum”. Sentiu sua pulsação acelerar de novo, calculava as formas de fugir, e tentava conter um pouco a respiração para gritar. “Não fique apreensivo, não sou do tipo que lhe fará qualquer mal. Digamos, apenas, que tenho uma ótima proposta para você, se estiver disposto a ouvi-la, é claro”. “Eu não quero nada de alguém como você”, “Alguém como eu? Mas você nem sabe que tipo de alguém eu sou”, “Um não muito bom, tenho certeza”, “Tudo bem, como disse, a escolha é sua”.
Ele tenta novamente se desenroscar. “Poderia me ajudar, pelo menos”, “Você já recusou minha proposta, sem sequer ouvi-la, então acho que não, obrigada”. Ele xinga enquanto os fios parecem se embaraçar mais e mais. Ele finalmente consegue se desenroscar e se encaminha ao banheiro. A tontura não passou e é difícil ficar em pé. Até para urinar necessita sentar. Ele lava as mãos na pia e olha no espelho seu rosto que não parece de um adolescente passando pela puberdade, mas de uma pessoa doente que há dias não sai daquele quarto de hospital - exatamente o que é.
Volta para o quarto e deita de novo na cama, onde tenta colocar todos os fios de volta onde estavam. Ele olha para a enfermeira, ainda no canto do quarto lendo o livro. “Qual a proposta?”, “Pensei que não estivesse interessado”, “Meus interesses podem mudar”. Ela ri e fecha o livro delicadamente, repousando-o sobre seu colo. “Mas quem é você, em primeiro lugar?”, “Digamos, apenas, que sou uma contadora de histórias”, “Que merda seria isso?”, “Exatamente o que disse”. Ele respira fundo, cada vez mais duvidoso desse acordo, enquanto uma parte do seu cérebro questiona - mas o que tens a perder?
“O que propõe?”, “Te contarei algumas histórias, e, no final, posso realizar um desejo seu”, “Você é uma paciente da ala psiquiátrica por acaso?”. Ela ignora o comentário e continua. “Um desejo bastante específico, por assim dizer, aquele no qual você tem pensado todos os dias desde que chegou aqui. O que lhe aterroriza, mas ao mesmo tempo é a esperança na qual se agarra. Que lhe perturba do momento que acorda e vê as máquinas em que está preso, até o momento que vai dormir, quando não se esgueira pelos seus sonhos. Que você vê refletido nos olhos e nas lágrimas da sua mãe, em um misto de medo e alívio. O fim e começo de tudo”.
Um grito ficou preso em sua garganta, enquanto refletia sobre tudo aquilo. Ela era mais louca do que podia imaginar. “Você tem me vigiado”, “De certa forma”, “Mas como… Eu nunca contei isso…”, “Não é preciso”. O desespero lhe atingiu, as lágrimas brotaram nos olhos e suas pupilas dilataram de medo. “Não tem como você saber, simplesmente não tem…”, “As pessoas não precisam me contar as coisas, porque eu sinto elas. Eu sei porque sou aquela capaz de realizar esse sonho. Quem te espera no final de tudo”.
Ele tenta novamente apertar o botão, que não funciona, mas ele não desiste. “Esse medo é desnecessário. Eu não faço mal, como tantos, por algum motivo, acreditam. Não sou eu quem traço as linhas do destino, sou apenas uma mensageira, daqui para o outro lado. Sou simplesmente como Caronte navegando o barco, sem sequer saber o que há depois disso. Deixarei você pensar um pouco, afinal, não é todo dia que lhe fazem uma proposta assim. Pense bem no que quer fazer. Até mais ver”. Ela sai pela única porta do quarto, com exceção do banheiro, enquanto ele continua apertando o botão desesperadamente. Assim que a porta se fecha, o botão volta a funcionar, e outra enfermeira entra no quarto assustada. “O que houve?”, “Tinha uma mulher aqui...”, “Eu estava na porta, ninguém entrou desde que sua mãe saiu”, “Mas…”, “Os remédios devem ter deixado você mal, alguns remédios que você toma podem ter feito isso… Daqui a pouco o jantar vai ser servido, e a sua mãe vai voltar pra te ver, OK? Não se preocupe. E se quiser podemos pegar alguma coisa se você estiver sentindo dor”.
***
Já fazia alguns dias que a enfermeira, que não era enfermeira, tinha visitado-o, e agora, novamente, estava ela lá, sentada no mesmo lugar, com outro livro no colo, também esse com um título irreconhecível. O garoto tivera tempo para pensar, a única coisa que ele realmente podia fazer enquanto estava enfurnado naquele quarto de hospital, e mesmo o seu sono era rodeado de pensamentos sobre isso.
Ele dormia, nada pacífico, enquanto ela o esperava despertar. “Percebi que tomou uma decisão”, disse assim que o garoto retomou a consciência, “Eu não disse nada”, esfregava os olhos e piscava-os repetidas vezes, tentando ter certeza que a cena era real, “Não é preciso dizer. Está pronto para começarmos?”, “Agora?”, “Por que não? Há algo que o impeça?”, ela o olhou discretamente, “De qualquer forma, posso esperar o tempo que quiser, afinal, o tempo é mera ficção humana, que não se aplica a mim. Mas você, como qualquer outro humano, não tem essas liberdades e, imagino, não gostaria de desperdiçar todo esse tempo à revelia”, “Claro, claro. Podemos começar então”, “Ótimo”.
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