II - O Primeiro Conto
Era mais de meia-noite em uma farmácia 24h. Com exceção das pessoas que ali trabalhavam, havia uma garota - no final dos seus 20 anos, nem alta, nem baixa, cabelos castanhos, roupas que pareciam pijamas, mas não eram realmente pijamas - e um cara - cerca de 35 anos, alto, usando um longo casaco, carregando uma cesta de compras e encarando a prateleira de absorventes. Ele usava uma aliança, e com a outra mão mexia nela, nervosamente. Era uma farmácia pequena e a garota de cabelos castanhos, após pegar os remédios que precisava, passou rapidamente por ele, “Os azuis são os meus preferidos, se me perguntar, provavelmente o terceiro da direita para esquerda”, pegou um chiclete e um chocolate no caixa, pagou tudo, e foi embora. O homem pegou os absorventes que a jovem indicara, pagou, e saiu pela porta.
***
Dez e meia da noite. Mesma farmácia. Poucos dias depois. A garota está sentada do lado de fora fumando um cigarro. O homem sai, passa por ela, “Fumar faz mal à saúde”, ela ri. “Sua esposa gostou dos absorventes?”, “Ela disse que preferia os rosa”, “Desculpa, erro meu”, “Pelo menos aprendi algo”. Ela joga o cigarro fora, ele liga o carro. Ela pega uma garrafa d’água. Ele sai do estacionamento. Ela pega o remédio em sua bolsa. Sua mão, trêmula, coloca o remédio dentro da boca. Ela toma a água, e respira fundo.
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Algumas semanas depois, duas da manhã. Ele está sentado em um banco ao lado da porta. Sua jaqueta está dobrada ao lado. Ele acende um cigarro, cobrindo-o com suas mãos para evitar o vento. Ela sai com uma sacola plástica e o cabelo verde. Ela senta. “Fumar faz mal à saúde”, “Seu cabelo vai cair, se continuar pintando com cores estranhas”, “Cores te fazem feliz, elas têm muito significado”, “O que verde significa?”, “Grama, eu acho”. Ele suspira, e dá um longo trago. “Significa esperança”, “Então nada a ver com grama?”, “Não”, “Erro meu, de novo”. Ela toma o remédio, sua mão tremendo de novo. “Quer um?”. Ele oferece um cigarro. “Tentado parar”, “Bom para você. Tentando voltar”. “Não é problema meu”. Ela levanta e vai embora. Ele continua mais um pouco. Termina o cigarro. Joga-o fora. Levanta e vai embora.
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Onze e meia. Ele está pagando. Ela pegando os remédios. Ele está ligando o carro. Ela está saindo. O carro não quer ligar. Ela parece que vai vomitar. Ela ameaça vomitar, mas não consegue. Ela senta. Ele sai do carro. Ela toma algumas pílulas de remédio, com a ajuda de uma boa dose de álcool. Ele senta do seu lado. “Você tá bem?”, “Super”, “Você está bêbada”, “Ainda não”, “Você precisa ir pra casa”, “Estou indo, é aqui perto”, “Você está bem para ir sozinha para casa?”, “Claro, não estou bêbada o suficiente para não conseguir chegar em casa”, “Pensei que tinha dito que não estava bêbada”, “Talvez um pouco”, “Precisa de carona?”, “Não, preciso de um pouco de ar fresco. Vá embora”. Ele se levanta, liga o carro, ele funciona. Ele vai embora. Ela levanta e vai para casa.
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Exatamente meia-noite. Ela está pagando. Ele espera do lado de fora. “Porque você precisa de tantos remédios?”, “Eu estou morrendo. Qual a sua desculpa?”, “Fugindo”, “Da sua esposa?”, “Da minha vida”. Ela senta. Ele está fumando de novo. Ela pede por um. “Pensei que você estava parando”, “Eu já estou morrendo, o que mais você quer?”, “Pensei que era uma piada”, “Todo mundo está morrendo, eu não posso também estar?”. Ele entrega para ela o cigarro. Silêncio. Ela tosse. Mais silêncio. “Metade desses são remédios para alegria. Eles me fazem parecer dopada e alegre, quando não estou. Tudo isso é triste na verdade”, “Queria ter remédios de alegria, de verdade, não esses falsos que dão pra gente”, “Minha psiquiatra iria à falência com essas coisas”. Ela ri de novo. Ele sorri, e para. Puxa mais um longo trago, e deixa a fumaça sair devagar, e fuma mais um. “Minha esposa está grávida de novo”, “Parabéns”, “Ela vai perdê-lo logo. Ela sempre os mata”, “Talvez o seu esperma que seja fraco”. Aquilo soou sincero. Ele não esperava. “Eu me sinto matando coisas o tempo todo. As coisas não parecem viver muito comigo. Eu matei um cactus uma vez. Nunca matei um bebê. Nunca tive um para matar”, “Você é melhor que minha esposa então”, “Tentei matar uma mulher uma vez, querendo mesmo, sabe, intencionalmente”, “Sério?”, “Uhum”, “Que aconteceu?”, “Ela foi parar no hospital, os caras de branco queriam mandar ela para um lugar seguro, mas ela não queria ir, então eles mandaram ela para viver com a mãe dela e tomar muitos remédios, todos os dias, ou eles teriam que mandar ela para casa branca, com as paredes brancas e as camas brancas, e muitas pessoas de branco”. Mais silêncio. Mais fumaça. Ela acendeu outro cigarro. Ele jogou o dele fora. Ele colocou sua cabeça para baixo e começou a mexer em seu anel nervosamente, de novo. “Como você fez?”, “Os clássicos. Cortei meu pulso. Sabe, verticalmente, da forma certa. Você pensa em tentar?”, “O que?”. Ele ficou nervoso. “Melhor não, você tem um filho, filha ou qualquer coisa assim, a caminho”, “Que merda você está falando?”, “Você tem cortes no pulso também, mas eles estão do jeito errado. Não dá certo. Eles sangram, os seus, mas não o suficiente. Tá fazendo errado. Sua esposa provavelmente sangra bem mais”, “Vá à merda”, “Melhor eu ir embora, já é quase uma”. Ela toma o remédio, bebe a água, joga fora o cigarro, bebe mais água. “Vá fuder sua esposa, é melhor do que ficar em uma farmácia com uma mina suicida sobre quem você não sabe porcaria nenhuma. É ainda pior quando você nem está comprando nada”, “Cale a porra da sua boca”, “Como disse, melhor eu ir, antes que seja de manhã de novo, e preciso ir pra porra do meu trabalho”. Ela foi embora. Ele ficou lá um tempo, a cabeça entre suas pernas. Ele foi para casa.
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Sua esposa, grávida, dormia na cama. A TV estava ligada. Ela não ligava se ele estava fora tarde da noite. Nada importava entre eles. Ela já estava grávida quando ele tinha ido comprar absorventes para ela. Era o mais longo que ela já tinha chegado em uma gravidez. Ela sangrou das outras vezes, quando os bebês morreram. Ela chorou. Ela tentou se matar. Ela sangrou mais. Ela chorou sozinha no escuro. Ele sabia disso. Ele chorou sozinho no escuro. Ela sabia disso. Ele quis se matar. Não importava. Ele era muito covarde. Ela sangrou mais que ele. Mas ele não dava a mínima. Ele foi comprar absorventes porque sabia que o bebê ia morrer. Não importava se isso era verdade ou não, ele sentia a raiva de si mesmo, por ser covarde; dela por perder os bebês, mesmo sabendo que a culpa não era dela. Ele foi para aquela mesma farmácia, sabendo que havia outras mais perto, para conversar com uma estranha, que não sabia nada de sua vida, apenas para fugir de sua estupidez, de seu medo. Não importava se era apenas uma ou duas linhas, eram duas linhas que fugiam da merda do seu dia-a-dia.
Ele deitou, sua cabeça contra o travesseiro, suas mãos segurando o cobertor, apertadas. Ele escutou sua esposa rolando em sua direção. Eles estavam face a face. Esse era o mais perto que eles tinham estado em meses. Ele não podia apenas ouvir, mas sentir e cheirar sua respiração. Na verdade era um cheiro agradável. Ela falou. “Não importa o que aconteça certo?”, “Sim”, “Se essa gravidez continuar ou não, se a criança irá nascer”, “Se nós ainda queremos ser pais”, “Se ainda amamos um ao outro, de alguma forma”, “Isso também, e se ainda temos alguma atração um pelo outro”, “Sim, mesmo que um pouco”, “Mesmo que um pouco”, “Nós vamos nos separar”, “Antes que machuquemos um ao outro ainda mais”, “Eu não quero chorar sozinho, nem você”, “Sim”, “E juntos, estamos chorando sozinhos”, “Vamos ser amigos?”, “Não sei, acho que vamos tentar”, “Vamos ser pais juntos certo?”, “Espero que sim”. Silêncio. Com suas respirações, seus corpos, seus lábios tão perto, eles se beijaram, por um curto-longo período, viraram para o outro lado, fecharam os olhos e dormiram.
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Era mais de meia-noite em uma farmácia 24 horas. Uma mulher procurava por absorventes. Um cara comprava remédios para resfriado. Ele passou por ela e disse “Minha ex-mulher gostava dos rosa”, “Desculpa, mas eu prefiro os azuis”, “Desculpa, erro meu”, “Remédios para tosse?”, “Sim, e os seus?”, “Indo pro hospital branco, que eu descobri que não é realmente branco, ou pelo menos não tão branco. Sabe, dando umas férias da civilização por um tempo”, “Você está mal?”, “Não, apenas me cansei da minha mãe”, ele sorriu. “Então… Sem mais aliança?”, “Sem mais esposa”, “E o bebê?”, “Vai fazer dois meses em menos de uma semana”, “Ainda amigos?”, “Mais ou menos”, “Não precisa de pílulas de alegria?”, “Terapia, mas nenhuma pílula por enquanto”, “Bom. Fumando?”, “Na verdade não gosto muito do gosto”. Ela ri. Ele paga e senta do lado de fora, tomando um pouco de água e tomando seus remédios para tosse. Ela vai pagar pelos absorventes. Ele espera ela sair pra dizer adeus. A porta abre, mas ninguém sai. Ele sente um frio na espinha, esquece o que estava esperando, entra no carro, e vai embora.
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