III
É final de tarde, as últimas palavras da primeira história desfilam, saindo pela boca da enfermeira. O garoto está sentado na cama, ainda tentando decifrar o porquê daquela história. “Acho bom pararmos por aqui hoje”, “Como assim? Primeiro me incentiva a apressar as coisas, depois me conta uma história dessas, e agora quer me deixar assim?”, “Melhor que não se desgaste demais, não? Afinal, você pode mudar de ideia no final, e não quero que tudo isso tenha sido apenas mais uma experiência desgastante”. Ela sai, sem deixar no quarto qualquer evidência de que sequer esteve lá.
IV - Segundo Conto: Um bar qualquer
Era noite em um bar qualquer, com clientes quaisqueres, em uma cidade qualquer. Mesmos copos supostamente limpos, mesmas mesas com pessoas falando mais alto que o normal e mais embaralhado que o normal, e várias bebidas sendo servidas - em sua maioria, as mesmas bebidas baratas de sempre. O bartender limpava os copos e servia as pessoas no balcão. Um homem, perto dos quarentas anos, se aproximou e pediu um drink. No lado oposto do balcão, outro homem, mais ou menos da mesma idade, pediu uma cerveja. Ambos se distraíam com as mesmas coisas mundanas, comendo amendoins em um pote deixado em cima do balcão (o que não é muito recomendável tendo em vista as pessoas que conversaram perto dos ditos amendoins, e que possivelmente se serviram com as mãos não exatamente limpas), tentando arrumar a altura das cadeiras (também essa uma tarefa não muito recomendável, tendo em vista os chicletes que alguém, que não se importa muito com o bem estar alheio, colou embaixo da cadeira e a possibilidade de ir parar no chão em razão de um objeto que, pelo uso inadequado, não se encontra exatamente firme). E essa distração foi o que fez com que nenhum dos dois percebesse que o bartender lhes servira as bebidas erradas até que este já estivesse ocupado com outras atividades.
Entretanto, apesar de haver muitas atividades não recomendáveis que podem ser realizadas em um bar, uma um tanto mais recomendável são algumas grandes doses de gentileza (algo que, porém, em uma sociedade de não recomendações, nem sempre é vista com bons olhos, pois muitos mal intencionados, fazem parecer gentileza suas más intenções, o que porém, não é o caso). E foi essa gentileza que levou o homem do drink, que a partir daqui chamaremos de Alan (ainda que não seja seu nome verdadeiro) a levantar-se e ir até o outro lado do bar para destrocar as bebidas. “Obrigado”, o homem da cerveja, que a partir daqui chamaremos de Henrique (também chamado de Henri, ambos nomes não-verdadeiros), agradeceu ao entregar ao outro a bebida correta.
Uma das grandes coisas sobre a gentileza, e que nos faz ter um pouco de fé na humanidade, é que ela se multiplica e, em geral, é recíproca. E esse sentimento de reciprocidade que fez Henrique aproximar-se novamente de Alan e oferecer-se para lhe pagar a próxima bebida, não por qualquer necessidade de colocar um valor monetário em um ato de gentileza, mas apenas para poder acompanhá-lo em mais uma bebida.
***
Era novamente noite, e, novamente, o bartender trocara as bebidas de Henri e Alan. Mas, dessa vez, foi Henri quem se levantou para destrocar as bebidas. Como dissemos, gentileza é um tanto contagioso. E da mesma forma, Alan se ofereceu para pagar Henri uma bebida, mas não a cerveja de sempre, afinal, é sempre bom experimentar algo novo.
“Trabalhei como bartender na época da faculdade. Morando sozinho, família em outro estado, tinha que dar um jeito”, disse após pedir dois drinks diferentes para eles, “Entendo… Também peguei uns trabalhos meio aleatórios na época da faculdade, e sem muita coisa a ver com meu curso”, “É… eu trabalhava em um bar que fechou depois que os donos voltaram para cidade deles, mas era muito bom, meio caro, mas bom. Aprendi muito sobre bebidas, e hoje sei escolher bem o que tomar. Mas isso foi há muito tempo”.
Era bom ter uma conversa normal, sobre assuntos quaisquer, e ambos pareciam se soltar um pouco mais naquela noite, em parte em razão do álcool, em parte da própria necessidade humana por contato. “Hoje você trabalha com o quê?”, “Contabilidade”, o tom de voz de Alan demonstrava a falta de interesse pela profissão atual, “Não parece muito contente, em comparação”. Alan dá de ombros e toma um gole de seu drink, e olha para baixo, mexendo tristemente em sua aliança.“Sinceramente, não acho que o trabalho em si seja ruim, mexer com números e tal… É tranquilo, dá certa paz e segurança que não tinha quando era novo, trabalhando até de madrugada, tendo que expulsar alguém que ultrapassava os limites… Mas acho que quando estamos crescendo criamos muita expectativa, tentando abraçar o mundo, e depois acabamos nos ferrando quando percebemos que o mundo é grande demais e nós pequenos”.
Ele faz uma breve pausa e toma mais um gole, seus olhos vermelhos como se contendo sentimento demais que queria por para fora. “Mesmo assim, ainda tenho minhas felicidades eventuais. Hoje fico feliz quando evito que a Dona Edith, que tem uma pequena lojinha, vá à falência porque não entende o mínimo de contas. Ou quando auxilio o Seu Chico com o imposto de renda. Ou quando o Sr. Hashida me manda maçãs pela neta dele para agradecer por mais um ano. Ou quando o Seu Manuel e a Dona Estela conseguiram manter a fazenda, depois de uma safra difícil. Pequenas coisinhas sabe? Que os outros parecem não ligar”. Henri solta um riso contido, meio triste, mais para dentro. “Acho que qualquer trabalho é assim, ou vemos as belezas nas pequenas coisas, ou nos corroemos por dentro com a monotonia do cotidiano, tornando um calvário o dia-a-dia, quando nada satisfaz”. “Com o que você trabalha?”. Os olhos de Henri ficam marejados, enquanto ele fala pausado, quase gaguejando, “Sinceramente, nem eu sei. Acordo, coloco uma gravata, e fico o dia inteiro em frente a uma tela de computador. Escrevo relatórios de lucros e vendas. Mas, nem sei direito que produto que a empresa fabrica, ou se fabrica algum produto. Não importa, para mim, é só um dado na planilha, ao lado de um bando de números”. Alan estendeu a mão, mas rapidamente a puxou de volta, envergonhado. “Não sei o que fazer para animá-lo, desculpa”, “Não preciso de palavras encorajadoras, já estou conformado”. Henri sorri, um sorriso meia-boca e claramente falso. “E isso não te faz sentir-se ainda pior?”, “É só esse ponto da vida, entre a infância e a aposentadoria. Sobrevivemos da forma que dá, sem esperar muito. Se conseguir trabalhar o suficiente e envelhecer antes que tornem impossível se aposentar, já me dou por satisfeito”.
Não falaram muito mais sobre isso naquela noite, cheia de sorrisos tristes.
***
Naquela noite em frente ao bar, se Alan tivesse uma cor, seria vermelho ira, como o isqueiro que tentava usar para acender o cigarro. Mas o isqueiro não funcionava, e ele arremessou-o com força ao chão, levantando poeira da terra vermelha. “Merda de isqueiro imprestável”. Nesse momento, parecia mais uma criança birrenta, para quem tudo era motivo de raiva, do que um homem adulto.
Henri pegou o isqueiro do chão e apertou o botão para que ligasse, mantendo a chama estável. Aproximou lentamente a chama de Alan, oferecendo-se para acender o cigarro. Alan se tornou um pouco menos vermelho-ira, e mais um laranja-insatisfação sob a luz da chama. “Obrigado”, a voz bem mais baixa que antes, “De nada”. Alan pega um pacote de cigarros no bolso do paletó e oferece a Henri que os recusa, “Não fumo”. Ele guarda os cigarros. “Não está com frio? Está gelado essa noite.”, “Não posso fumar lá dentro”. Alan solta a fumaça do cigarro e Henri tosse um pouco com a proximidade da fumaça. Henri entra no bar, deixando Alan sozinho, encostado na parede, enquanto observa as estrelas no céu e a fumaça subindo para encontrá-las.
***
Alan terminara o primeiro cigarro e tenta acender outro, o isqueiro novamente sem querer cooperar. Estava prestes a jogar o isqueiro novamente no chão quando Henri lhe estende a mão oferecendo um copo de whisky. “Pode não ser um dos drinks chiques que gosta, mas vai te ajudar a se aquecer. Você está tremendo mais que uma vara de bambu”. Alan pega o copo, “Não preci…”, “sava. Eu sei. Mas preferiria não ter que te ver congelando nesse frio. Gostaria que acendesse o cigarro para você?”, “Deixa pra lá, acho melhor entrar. Como disse, está muito frio aqui fora”. Henri sorriu, de verdade. “Te acompanho”.
***
Não eram mais de 23h, mas Henrique parecia ter virado a noite bebendo. A roupa amassada e garrafas acumuladas em cima da mesa denunciavam de longe a embriaguez. O bartender se aproximou com um pano e começou a limpar a mesa e retirar as garrafas vazias. “Traz mais uma por favor”, o bartender ouviu ele dizer, entre vários soluços, “Senhor, acho que seria melhor…”, “Mais uma!”, “Acho melhor parar por aqui…”. Henri podia até ouvi-lo, mas certamente não o escutava, afinal, sua mente estava no mundo para o qual vão os bêbados quando precisam esquecer que existe um mundo. Alan se aproximou e encostou no ombro do bartender, “Pode deixar que eu cuido disso. Poderia trazer uma garrafa d’água, por favor?”. “Claro, claro. Um segundo”.
O bartender se afastou e Alan sentou na cadeira em frente. Assim que o notou, Henrique abaixou a cabeça com vergonha e tristeza. Não queria que ele o visse desse jeito. “Olá, como vai?”. Henri não respondeu, não queria responder. “Tudo bem se quiser ficar calado, posso esperar”. Henri sentia a vergonha aumentar a cada segundo. Não só não queria estar ali, como não queria, especialmente, que Alan visse aquela parte sua. “Imagino que não esteja se sentindo muito bem, mas eu estarei aqui se e quando estiver pronto para conversar”. Alan não sabia o que falar se Henri realmente precisasse conversar, mas não havia outra coisa que pudesse fazer. O bartender trouxe a água e dividiu-a em dois copos. Henri ficou um longo tempo encarando-a, até que decidiu beber.
Aos poucos, a vergonha foi substituída pela vontade de botar para fora a dor que o tinha levado até ali. Alan esperou por vários minutos, em silêncio, enquanto as garrafas de bebida desapareciam, e a garrafa de água se esvaziava.
“Hoje não foi um dia bom”, ele falou, finalmente, sem tirar os olhos da mesa, “Sabe quando você fode tudo no trabalho, e não faz a menor ideia de como concertar?”, “Com certeza”, “Perdi as contas de quantas vezes fiz isso. Mas parece que não aprendo. É um trabalho simples, mecânico, então por quê nem isso eu consigo fazer? E fico apenas pensando: que merda estou fazendo lá dentro. Se até no meu trabalho sou um imprestável, o que esperar?”. Seus olhos se enchem de lágrimas, mas ele os esfrega para impedir que caiam, e bebe mais água para evitar o soluço que se aproxima. “Sabe aquele plano de ir trabalhando para sobreviver até chegar a hora de me aposentar? Acho que ele não vai dar certo, porque o trabalho vai me consumir antes disso”. Em um misto de dor e raiva, ele bate com a mão esquerda sobre a mesa, enquanto tenta tapar o rosto e as lágrimas que insistiam em cair com a direita. Alan aproxima sua mão da dele e, mesmo pensando por um segundo em recuar, ele aproxima ainda mais, pousando sua mão sobre a dele. Henrique finalmente se permite sentir as emoções e segura a mão de Alan com força, como se tentasse agarrar aquele momento, e agarrar-se a si mesmo no turbilhão de sentimentos. Ele se permite chorar. “Precisa de uma carona para casa?”, Alan pergunta, sem precisar de resposta.
***
Eles saíram do bar quando estava quase fechando, após muitas lágrimas e silêncios, e agora, enquanto o carro percorria as ruas da cidade, o sol ameaçava despontar no horizonte. Henrique apoiava a cabeça no encosto, tentando se manter acordado, enquanto os olhos vermelhos de sono pediam para serem fechados. “E agora?”, desperto do transe, percebeu que ainda tinha que guiar Alan até sua casa, “A próxima à direita”, sua voz distante denunciava-o. Ele esfregou novamente os olhos. Se arrependia de ter chorado, apesar de uma voz lá dentro, suprimida por todo o “homem” que era, dizer que ele precisava chorar. Não queria olhar para Alan diretamente, pois temia que se fizesse isso começaria tudo de novo. Ele voltaria a sentir a tristeza que lhe fez ir até o bar, e a vontade de colocar tudo para fora. Mas quando se pegava olhando Alan com o canto do olho, sentia a segurança de passar por aquilo tudo de novo, e se deixava ser pego pelas emoções que há tanto tentavam lhe alcançar.
Alan virou a direita. “Qual o prédio?”, “O segundo bloco”. Ele parou o carro bem em frente. Henrique olhou a construção de cima à baixo, e encarou a porta do carro. Ainda estava meio zonzo da bebedeira. “Muito obrigado”, as únicas palavras que conseguiu murmurar, “Não tem de quê, não podia deixá-lo sair de lá assim”. Sentia que não podia acabar a noite daquele jeito. Por quê? Por que ele o ajudara mais cedo em uma situação difícil? Por que tinha finalmente alguém em quem confiar? Ele se virou para Alan e, nos breves segundos de despedida, a porta que tinha sido aberta para os sentimentos deixou ainda mais deles entrar. Ele aproximou seu rosto daquele de seu bom samaritano, encostando seus lábios gentilmente sobre os dele, e em um fechar e abrir de olhos, quatro, para ser específica, aquele momento começou e terminou e Henrique estava em seu apartamento tentando discernir o que havia feito e Alan, sozinho em seu carro, tentava lembrar se tinha bebido alguma coisa ou se aquilo realmente tinha acontecido.
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