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Henrique estava sentado no bar, esperando sua bebida, quando Alan entrou. Henrique acena para ele, mas ele simplesmente o ignora e senta no ponto oposto do bar e pede algo para o bartender. Henrique se distrai com o amendoins, enquanto tenta fingir que nada aconteceu, e que nunca conheceu Alan. Entretanto, como já se tornara habitual, o bartender entrega, novamente, sua bebida errada. Ele se levanta, e se aproxima de Alan, provavelmente a única pessoa que pediria uma bebida como aquela naquele lugar. “Acho que esse drink é seu”, “Pode ficar”, “Mas é seu”, “Eu peço outro não tem problema”. Alan sequer o olha, e tenta conter seu lado apreensivo mexendo em sua aliança. Henrique senta no banco ao seu lado. “Desculpa, naquela noite, eu… Não sei o que dizer… Acho que…”, “Não precisa dizer nada, está tudo bem. Eu já esqueci. Puf!”, ele balança as mãos como se tivesse uma varinha mágica, “Nada aconteceu”, “Está claro que você não esqueceu”. Alan se segura no balcão, sem saber se chora ou se grita. Sua voz treme, mas ele tenta falar. “Eu tenho uma esposa e filhos… Não posso passar por esse tipo de coisa. Não é justo com eles. Então entenda, por favor, eu já esqueci”, “Tudo bem, se é assim que vai ser, você esqueceu, e eu também. Nada disso jamais aconteceu. E pode ficar com seu drink, eu prefiro uma boa e velha cerveja”. Seus corações pulsam com raiva e dor.
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Alan tenta acender um cigarro, sem sucesso. É mais uma noite fria, e a música dentro do bar pode ser escutada do outro lado da rua. Ele joga o isqueiro longe. Henri pega o isqueiro do chão, “Sabia que se tentar com mais calma”, ele aperta o isqueiro, “Ele acende?”. Alan responde defensivamente, como se montasse uma armadura ao seu redor, “O que você quer?”, “Nada, eu só vim beber, como qualquer um”, “Há outros bares nessa cidade”, “Posso dizer o mesmo”. Henrique aproxima a chama e Alan acende o cigarro. “Por quê?”, “Por que o quê?”, “Por que você me beijou naquele dia? Por que ser gentil comigo?”, “Por que você me ajudou naquele dia? Por que você continuou conversando comigo e me levou até em casa? Uma pessoa que você mal sabe o nome!”. Alan visivelmente se abala, o corpo tremendo, como se não soubesse mais como parar em pé. “Porque é o que gostaria que alguém fizesse comigo”. “Você foi gentil comigo, eu apenas retribui. E você me ajudou, mesmo sabendo tão pouco de mim. Foi bom perceber que, nesse inferno que são as 24h do meu dia, pelo menos uma pessoa é capaz de me tratar com um mínimo de dignidade. Eu gostei de me sentir útil, de sentir que podia fazer algo por alguém. Não foi você quem, desde o início, falou sobre notar as pequenas coisas que nos fazem continuar?”, “Eu... falei sim”, “Sim, e me convenceu. Eu acordava de manhã sem vontade de sair da cama. Me levantar era um desgaste, ir ao trabalho uma tortura. E quando eu te vi, eu reconheci os mesmos olhos que tentavam afogar a vida eu um copo qualquer”.
Alan sabia, no fundo, que ele vira a mesma coisa. Uma oportunidade de não precisar ser forte, de não precisar se segurar, de não mentir e vestir uma carapaça. Ambos tentavam se afogar em um copo de álcool muito pequeno para a quantidade de coisas que tinham dentro, e que de nenhuma forma conseguia resolver qualquer coisa, apenas trazia mais problemas. Mas, eles deram um ao outro a oportunidade de deixarem toda a fortaleza que construíram de lado e simplesmente serem humanos, pelo tempo necessário para que o peito se descarregasse um pouco de seus pesos. E aquilo tinha um valor. Aquele beijo era o valor de poder simplesmente ser.
“Espera”. Alan entra correndo no bar. Henrique tira a chave do carro do bolso e se prepara para ir embora. Queria que aquilo tivesse dado certo, mas, Henri pensa, o momento passou.
Alan sai do bar com um copo de whisky e oferece para Henrique. “Está congelando aqui fora, isso irá mantê-lo quente”, “Mas…”, “Se para você o trabalho era uma tortura, para mim era viver com alguém que não amava, sabendo que ela estava igualmente triste ao meu lado. Nossa casa se tornou fonte de insegurança e tristeza para todos. Eu não conseguia dormir, então vinha para cá. Perdi a conta do quanto gastei em bebida. O trabalho era única coisa que tinha, então sempre tentava fazer horas extras, para ficar o maior tempo possível longe de casa. Eu amo meus filhos, e tentava esconder deles que estava infeliz, enquanto tentava eu mesmo me convencer das minhas mentiras. Foi bom achar alguém que pudesse me entender pelos meus silêncios, para simplesmente ficar um tempo, sem precisar me justificar por nada. Para quem não precisasse mentir. Mas isso me deu mais medo ainda, porque fez com que eu percebesse o quanto eu vinha mentindo”, Alan limpa uma lágrima, “Desculpa”, “Não precisa”, “Sim, eu preciso. Porque não peço desculpa só para você, mas para mim. Fui eu quem mais me machuquei nesses anos todos, e não aceitei ajuda. Menti e menti, sem perceber que as mentiras estavam me sufocando”, Alan coloca as mãos no rosto para esconder as lágrimas, “Eu só queria…”. Henrique afasta as mãos de Alan do rosto e as segura no meio das suas, e sorri em silêncio. “Eu só queria um espaço seguro. Quando tudo na sua vida é uma mentira atrás da outra, a verdade se torna muito mais difícil. Eu passei a viver assim. E os sentimentos dos outros… Os meus sentimentos, deixaram de ter importância. Eu vivi tempo demais em uma máscara, e tive medo que se eu deixasse ela de lado, eu não conseguiria sobreviver”, Henri aperta as mãos de Alan forte entre as suas, entrelaçando os dedos. Alan beija Henrique que retribui o beijo, eles se afastam e riem, levemente. Henrique olha para o rosto de Alan, as lágrimas livremente escorrendo, mas nenhuma tristeza em seus olhos. “Parecemos dois adolescentes”, Henri diz, “Acho que parecemos felizes, só isso”, Alan responde.
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Era mais uma noite, em um bar qualquer, em uma cidade qualquer. Dois homens, cerca de quarenta anos, entram de mãos dadas. “Acho que poderíamos diminuir os custos, do jeito que falei, e assim a escola poderia pagar os professores, até que a situação se resolva”, “Pode dar certo”, parecem conversar sobre trabalho, apesar de que muitos perguntariam como alguém poderia estar daquele jeito feliz conversando sobre trabalho. Eles se sentam em uma mesa e o bartender vai atendê-los. “Boa noite, o que gostariam de tomar hoje?”, “O que você recomenda?”, Henri pergunta a Alan, “Algo sem álcool, com certeza”, “E alguns petiscos”.
Eles pedem as bebidas. O bartender anota os pedidos e deixa-os conversando. “E se tentássemos fazê-los mudar o fornecedor, lembro de um colega que trabalhava com…”, Alan ficava feliz de ver Henri falando assim sobre o trabalho, de perceber que ele estava bem, mas agora era até difícil fazer ele parar de falar sobre trabalho, “Que tal deixarmos essas coisas de trabalho para depois?”, “Tá, tá… É só que…”, “Que estamos em um bar, para descansar depois de uma semana corrida. Não achei que criar uma empresa contigo fosse ser tão cansativo”, Henri ri. O bartender chega com as bebidas e, novamente, entrega-as trocadas e, antes que possam dizer qualquer coisa, ele já havia partido. “Acho que ele serviu errado de novo”, Alan comenta enquanto destroca as bebidas, “Nem sei se algum dia ele serviu as nossas bebidas certas”. Henri e Alan riem enquanto desfrutam as bebidas.
Na parte de trás do bar, o bartender que nunca serviu as bebidas corretamente sai pela saída de funcionários, joga sua roupa de trabalho na lixeira e desaparece no meio da multidão.
V
A não-enfermeira observa o pôr-do-sol pela janela. O garoto está deitado na cama, sua aparência pior, como se tivesse envelhecido muito, e muito rapidamente. A não-enfermeira tem o olhar distante, enquanto o garoto tenta ainda compreender toda a história que lhe contaram. “Adoro ver o céu mudando de cor no final da tarde, e o sol se escondendo no horizonte, enquanto reaparece em outra parte do mundo. O continuum eterno, até que termine. Dá uma dimensão de quão pequena e irrelevante é a vida, ao mesmo tempo que mostra como há tantas coisas simplesmente lindas nela”, a não-enfermeira parece um pouco mais humana em sua admiração pelo pôr-do-sol, “Vinícius dizia, ‘Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito, enquanto dure’¹”. O garoto não queria saber de poesias, e não sabia nem se ainda queria saber dos contos que a não-enfermeira contava. Se sentia cansado, e preso a tudo aquilo. E por isso a oferta de chegar ao final de todas aquelas histórias parecia ao mesmo tempo tão atraente.
“Essas histórias são para que eu me sinta melhor? Para que eu aprenda algum valor moral? Com personagens aleatórios que terminam felizes?”, “Não são personagens aleatórios, mas pessoas bem reais. E não tiveram todos finais felizes, apenas conseguiram um pouco de melhora em uma situação difícil. Não há nenhuma moral escondida ou algo assim. Nenhuma lebre apostando corrida com a tartaruga, ou cigarra cantando enquanto a formiga trabalha”, “Então são histórias para contar enquanto definho nessa cama?”. Havia uma inocência no garoto deitado naquela cama, e ao mesmo tempo um rancor em relação a todo o mundo. Aquilo lhe tocava bem fundo, no motivo para ela estar fazendo tudo aquilo. Mas ainda não era hora de respostas. “Acho que é hora de ir. Está na hora do seu jantar. Até mais”, “Você continuará fazendo isso? Volte aqui”.
Os gritos do garoto apressam a enfermeira que lhe trazia comida, que entra e logo se emburra quando percebe que, novamente, não passava de um faniquito do garoto. Ela sabia que devia ser angustiante ficar o tempo todo naquela cama, mas ele podia ter um pouco de respeito, aquilo era um hospital no final das contas. “Você não pode ficar gritando desse jeito, vai assustar os outros pacientes”, “Eles estão sedados demais para me ouvir”, “Mesmo assim, todos merecem o seu respeito”, “Talvez as pessoas devessem ter um pouco de respeito por mim, e deixar tudo isso terminar de uma vez”. O olhar do garoto cintilava de ódio e dor. A enfermeira se compadecia disso, a situação era muito difícil. “Sua mãe não gostaria muito disso, não acha?”, “Não se trata dela gostar ou não, mas de mim. Eu definho, e as pessoas continuam suas vidas lá fora. Me sinto cada dia menos vivo”, “Acho melhor você comer, amanhã sentirá melhor”. Nesses momentos a enfermeira pensava como, ao mesmo tempo, aquele era um trabalho belíssimo, de poder ajudar tantos, mas ingrato, porque eram muitos os sofrimentos que testemunhava. “Eu não me sentirei melhor, e sabe disso”, “Tenha um pouco de esperança”, “Esperança não mudará nada, não me fará menos doente”, “Muitos experimentos dizem o contrário”, “Você até parece ela agora”, “Quem?”, “Ninguém”.
A cada dia ela se preocupava mais com a saúde mental do garoto. O ambiente hospitalar certamente não o estava fazendo bem, e nessa parte ela tinha muita dificuldade de ajudar.
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