Uma jovem, Zoé, está parada na plataforma do metrô em frente a onde a porta para, com fones de ouvidos e o pensamento distante. Ela olha longamente para os trilhos e depois fecha os olhos, como se quisesse esquecer que o mundo existe. Outra jovem, Léa, parada atrás dela, cutuca gentilmente seu ombro para avisá-la quando as portas se abrem, mas ela não se mexe. Ela cutuca novamente, e Zoé abre seus olhos, olhando para trás. Léa, aponta para a porta aberta e Zoé entra.
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São seis horas da manhã, e Zoé está sentada nos bancos da plataforma lendo Kafka à Beira Mar¹. Léa senta ao seu lado com headphones. O cabo, sem querer, escapa do celular, e o som começa a vazar. Zoé cutuca seu braço e aponta para o local onde o fone se desafixou do celular. Léa movimenta os lábios, sem emitir som, “Obrigada”, e Zoé responde da mesma forma, “Nada”. O trem chega, e ambas entram no primeiro carro, reservado às mulheres.
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Zoé está esperando sentada em um dos bancos na plataforma, com várias sacolas por perto. Léa desce correndo as escadas, chegando no mesmo momento que o metrô chega à plataforma. Zoé se levanta e vai pegando as sacolas. Léa nota que Zoé tem sacolas demais e se aproxima. “Com licença, precisa de ajuda”, “Muito obrigada!”, Zoé sorri enquanto elas entram no metrô e sentam próximas, as sacolas no chão perto delas. Léa tira os fones da mochila e os coloca no ouvido. Zoé pega o livro e começa a lê-lo. Léa observa a capa e tira um dos fones para poder conversar. “Esse livro é muito bom”, “Já o leu?”, “Já, mas faz um tempinho. Foi logo quando lançou”, “Eu estou relendo. Foi um livro muito interessante quando li, então achei que poderia usar no meu TCC”, “O que você estuda?”, “Linguística”, “Formei faz uns três anos. Fiz o trabalho sobre a imigração japonesa e sua influência no imaginário brasileiro”, “É algo mais ou menos nessa linha o que pretendo abordar”, “Legal! É um tema bastante interessante”, “Concordo”. Léa voltou para sua música, e Zoé para seu livro.
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Era 12h, e o metrô estava lotado, e Zoé esperava no lugar de sempre, em frente ao primeiro carro, exclusivamente feminino. Ela olha para os trilhos e fecha os olhos durante alguns segundos, enquanto o carro se aproxima. Ela entra e segura na barra de metal, enquanto no fone de ouvido toca um podcast de notícias. Um homem entra e pára perto a ela. Durante um tempo que pareceu extremamente longo, ela esperou rezando para que não acontecesse nada. Mas ele se aproximou, e tentou puxar assunto. Ela fingiu não escutá-lo. Ele continuou se aproximando. Sua coxa roçava a sua, e ela sentia seu corpo paralisar. Ela queria encontrar uma forma de fazer com que o tempo parasse e ela não sentisse mais nada. Seu corpo parecia tentar responder a esse pedido, prendendo a respiração, e fazendo com que seu coração batesse irregular. Até que alguém, uma voz conhecida, gritou de alguma parte que não conseguia ter certeza, “Aquele homem está assediando ela!”. Mas o corpo dela não reagiu, e sim sentiu como se tivessem descoberto como ela era fraca, que fossem de alguma forma jogar a culpa nela. Tremia de tal forma que não sabia por quanto tempo conseguiria ficar segurando a barra de metal. As mulheres, os idosos e os deficientes sentiram algo em comum, o medo. O local seguro se tornara ameaçador por causa de uma única pessoa. Mas o que eles tinham a fazer? O trem parou na plataforma e uma passageira, e então outras, e então o coro todo do vagão começaram a gritar expulsando o homem do veículo, enquanto tentavam proteger Zoé. Ela sentiu que alguém segurava sua mão naquela confusão, não de uma forma ruim, mas de uma forma gentil. Léa a olhava nos olhos e tentava acalmá-la e tirá-la do meio da bagunça. Zoé tremia e seu corpo não tinha capacidade de ficar em pé. Léa a puxou e sentou-a no banco. Zoé começou a murmurar algo sobre um medicamento em sua bolsa e apontou para um bolso de fora. Léa o abriu cuidadosamente, pegou o remédio e entregou a Zoé, que o engoliu mesmo sem água.
Conseguiram expulsar o homem do trem, mas Zoé continuou tremendo durante a viagem até sua estação. Ela saiu com a ajuda de várias mulheres e uma colega a encontrou na saída e à acompanhou até em casa.
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Zoé está sentada na plataforma, isolada. Veste um vestido comprido e um sapato baixo, sem fones de ouvido, nem livros, apenas o olhar vidrado nos trilhos do metrô. Quando o trem chegou, apenas ficou parada no mesmo lugar. Léa se aproximou, sentou do seu lado, segurou sua mão. O trem partiu e elas ficaram lá. Uma lágrima escorreu solitária no rosto de Léa, mas o de Zoé parecia uma velha boneca de porcelana: inexpressivo. Dois ou três trens passaram, antes que Zoé voltasse a ser humana. Ela afastou a mão de Léa e se aproximou dos trilhos, olhando compulsivamente para baixo. Léa segurou sua cintura, como a corda segurando o barco ao convés. Sua mente lhe dizia que se soltasse naquele momento, ela cairia, o seu corpo magro se estilhaçaria nos trilhos baixos, como quando deixamos uma taça cair no chão.
Elas se sentam novamente, mas Zoé continua imersa em si mesma. Léa não sabe sequer se a outra percebe que ela está ali. Ela vê alguns socorristas se aproximando para levar Zoé embora. As lágrimas escorrem no seu rosto, mas ela sabe que aquilo foi necessário.
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Léa olha para os trens passando enquanto escuta as músicas tocando aleatoriamente em seus fones. Ela cantarola. Alguém senta ao seu lado, mas ela ignora. A pessoa abre um livro e, com o canto do olho, ela lê o título. Kafka à beira mar. Zoé olha para ela sorrindo e ela responde com outro sorriso. “Olá, tudo bem?”, “Tudo, e você?”, “Melhor”, “Que bom”. O que mais falar em um momento daqueles? “Obrigada por aquele dia. Não sei o que teria acontecido se…”, sua voz parece turva. “Não precisa falar sobre isso, se não quiser”, “Não tem problema, as coisas passam e a gente segue em frente… E os remédios ajudam um pouco, para eu não ter esse tipo de pensamento”. Léa segura sua mão, enquanto a fala parada de Zoé parece antever as lágrimas, mas elas não vem. “Me sinto um pouco mais segura em continuar a vida, menos medo. Entende?”, “Claro, aquele dia foi horrível”, “Mas não foi o único dia ruim. Eu tenho medo do que vai acontecer o tempo todo, e quando acontece algo eu entro em pânico. Às vezes mesmo que não aconteça nada eu entro em pânico. O corpo congela, o ar me escapa, o coração parece ser o corpo inteiro, e eu quero simplesmente desabar no chão, me enfiar em um buraco na parede. Ou então gritar tão alto, que todos os sons do mundo se calem. E então tudo mais pare. Só que isso nunca vai acontecer”. Ela queria abraçá-la, mas não tinha essa intimidade. Zoé parecia estar se desmanchando na poltrona, e que no próximo segundo desapareceria por completo em suas emoções.
Elas conversaram durante alguns minutos, enquanto esperavam o trem, e mais alguns entre as estações. Léa entendia o sentimento de Zoé. Havia tantas coisas que traziam medo, e tão poucas que traziam segurança. Não sabia se poderia ser alguém que trouxesse segurança a outrem, e tinha medo do que poderia acontecer com Zoé.
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Era quinta-feira, e o metrô estava mais lotado que o habitual. Os passageiros entravam com cartazes e placas. Zoé e Léa estavam uma do lado da outra, segurando na barra do metrô com uma mão, e com a outra um cartaz enrolado. Zoé tinha um broche com a bandeira lésbica no peito, e Léa um da bandeira trans. Uma mulher sentada em um banco próximo conversava com uma amiga, em tom conscientemente alto para que os outros ouvissem, “Esse povinho hoje querendo que a gente faça tudo do jeito deles, que ensinem até para nossas crianças que isso é normal. Forçando tudo isso goela abaixo”, “E querem criminalizar a bíblia! Não podemos mais nem exercer nossa religião por causa deles”, elas abaixam um pouco a voz, “É nojento tudo isso, sinceramente”. Zoé murcha um pouco o ânimo, mas Léa coloca a mão em seu ombro e ela sorri.
O trem pára na penúltima estação antes do destino delas, e vários homens entram no carro. Elas se encostam em um canto, quase como se quisessem se esconder. Várias passageiras olham apreensivas, mas o medo lhes impede de fazer qualquer coisa. Uma jovem, um pouco mais irritada, e com menos medo, se aproxima de um deles, “Com licença, mas esse vagão é exclusivamente feminino”, “Acho que não”, ele responde quase a empurrando para longe, “Olha, não sou eu que estou falando, é a lei”, “Se vocês deixam esses homens de saia entrarem aqui, por que eu não posso hein?”. Os outros homens se aproximam, querendo iniciar uma briga. A jovem se afasta, mas outras se aproximam, “Vocês poderiam apenas descer e pegar outro vagão? Ou podemos chamar os funcionários para pedir que se retirem”, “Você não entende com quem está falando”. Zoé e Léa apenas observam a conversa de longe, mas os ânimos vão se atiçando a cada minuto, até que um dos homens puxa um pedaço de cano da mochila e taca contra a cabeça de uma das mulheres. Outro tira um pedaço de pau, e assim vão pegando coisas e começam a espalhar a violência dentro do vagão, enquanto as mulheres tentam se esquivar no local lotado e apertado. Zoé é atingida nas costas pouco antes das portas abrirem, e tenta sair correndo, quando percebem que mais caras esperam na estação. Mulheres, LGBTs e outros protestantes saem correndo, muitos feridos e sangrando, enquanto o horror se desenrola.
***
“Trinta pessoas foram hospitalizadas com ferimentos graves e quatro morreram em ato de violência na Estação de Metrô. O alvo eram manifestantes com destino à Parada LGBT. A polícia investiga a situação e os acusados podem enfrentar de um a oito anos pelo crime de lesão corporal grave e de doze a trinta anos pelo crime de homicídio qualificado”.
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Era muito cedo, e apenas Zoé e o faxineiro estavam na estação. Ela tirou o calçado e olhou atentamente para o quadro com os horários dos trens. Suas costas ainda doíam, mas logo mais ela não sentiria mais nada. O trem estava se aproximando. Ela parou no mesmo lugar de sempre, esperou alguns segundos, no ar uma mão parecia se esticar para segurá-la, mas ela desapareceu quando Zoé caiu nos trilhos e foi atropelada pelo veículo que tantas vezes a levara para tantos lugares. O faxineiro correu, os bombeiros foram alertados, e logo toda a estação parou. Todos olhavam para os trilhos, para o corpo. Ninguém percebia, no canto da estação, a figura que observava do escuro, e tentava engolir o choro. Mesmo que olhassem, veriam apenas o ar, e nada mais.
VII
O garoto segurava o cobertor e tentava se decidir se tentava apertar de novo o botão, mesmo sabendo que não iria funcionar. Por que lhe contar aquela história? O que ela queria? Mas o seu medo e apreensão se tornaram pena quando viu as lágrimas rolarem pelo rosto da não-enfermeira. Ela tentou rapidamente escondê-las, mas ele sabia que estavam lá. “La douceur qui fascine et le plaisir qui tue. Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?”², ela sussurrou, como se tivesse esquecido por um segundo que ele estava lá. “O que você disse?”, “Nada”, ela sorriu tristemente.
Sua curiosidade parecia tolice frente a dor nos olhos daquela estranha criatura que lhe contava histórias, mas não conseguiu deixar de perguntar. “Por que me contar uma história dessas? Para que eu sinta ainda mais que minha situação não tem saída?”, de novo o sorriso triste em seu rosto, gentil e mais humano do que ela jamais tinha sido, “Não. Pense como uma lembrança de que não importa quão onipotente pensamos que somos, na verdade temos muito pouco poder sobre o que acontece. Uma lembrança de que mesmo que tentemos, não conseguiremos ajudar todos, e temos que aceitar nossas falhas, e nossas perdas”.
Ela pegou o livro que deixara em cima da poltrona e apertou-o contra o peito. “Melhor eu ir, para não te exaurir demais”. Ela saiu mais rápido do que o normal, as mãos tremendo enquanto segurava o livro contra o peito.
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