Um dia as crianças estavam brincando no campo, disputando quem chegava mais perto do Casarão, quando viram algo saltar da janela do segundo andar da casa.
- Parecia um gato – An disse depois ao narrar a história ao pai, mas no momento que viram, juravam que era assombração ou algo do tipo. Saíram correndo o mais rápido que puderam e se enfiaram embaixo das saias da Sra. Gabs.
- O que ocês dois estão fazendo aí? – disse sem tirar o olho do trabalho.
- Uma assombração pulou pra fora do Casarão – Goy olhava com os olhos mais arregalados do que sequer sabia que poderia fazer.
- E como era a assombração? – perguntou sem modificar o tom de voz.
- Era assombração pequena, meio cinza, parecia ter um rabo, mais ou menos do tamanho de um gato. – An respondeu, simbolizando o tamanho com os braços.
- Então divia de ser um gato, não?
As crianças se entreolhavam sem saber se respondiam que sim ou que não. Uma parte delas sabia que era bem mais provável que fosse um gato do que assombração, mas outra parte não queria admitir que pudesse ser algo tão simples quanto um gato. An ficou o restante da tarde matutando na sua cabeça e repetindo: - Era um gato, menina tola, era apenas um gato. Porque seria mais que um gato? Com certeza era só um gato. – o irmão a olhava sem entender direito o que a irmã estava fazendo. Ele tinha certeza que era assombração, só não sabia como provar que era mesmo.
Quando o pai chegou à noite, Goy falou:
- Pai, pai, nós vimos uma assombração escapando do Casarão hoje! Ela pulou da janela e saiu correndo pelo mato! Ela era enorme, com presas, uma cara muito feia...
- Uou! Deve ter sido emocionante! Eu nunca vi uma assombração!
- Parecia um gato – An completou.
- Não, eu juro juradinho que era uma assombração – disse Goy, olhando feio para irmã – não parecia nem de longe um gato!
- Desculpe Goy, mas sua irmã tem razão, tem bem mais chances de ser um gato do que de ser uma assombração.
- Mas eu tenho certeza que era uma assombração! Uma assombração horrível! – Disse fazendo careta pra irmã.
- A senhora Gabs concordou comigo – disse dando língua para o irmão.
O pai começou a rir enquanto observava os irmãos dando língua um para o outro. Sua risada chamou a atenção dos dois que pararam no meio da conversa.
- Não ria da gente pai! – An falou em um tom suplicante.
- Tudo bem, tudo bem. O que acham de irmos atrás dessa assombração amanhã de manhã? Amanhã é domingo, então An não tem escola, e eu não tenho que ir trabalhar.
- Mas assombrações não aparecem de dia!
- Mas se for bem cedinho elas aparecem. – retrucou o pai.
No dia seguinte, Goy, que raramente acordava antes das 10h, acordou o mais cedo de todos, e antes mesmo que começasse a clarear já estava de pé, vestido com shorts, uma camiseta, um casaco, galochas e uma rede de borboletas.
- Nem sabia que tínhamos uma rede de borboletas – o pai riu, quando a figura de casaco e capuz surgiu na beirada da sua cama.
- Vocês demoram muito para acordar! Desse jeito não vamos pegar assombração nenhuma – disse emburrado.
- Fale isso para as milhões de vezes que o papai tentou te acordar e você reclamou dizendo que nem por um milhão de jujubas você levantaria da cama. – Disse An, mais emburrada ainda, olhando da porta. Goy lhe respondeu com a língua o mais esticada que conseguiu. Ela não respondeu, apenas esfregou o olho e se dirigiu ao banheiro.
Eles se arrumaram e saíram para procurar o gato-assombração. Quando passaram perto do Casarão, escutaram um gemido baixinho. Pela primeira vez, as crianças viram o pai simplesmente ignorar o barulho e seguir andando. Pensaram consigo mesmas: - Deve ser algo muito importante para que o papai passe reto. An conclui: talvez seja realmente uma assombração. Goy pensou assustado: deve ser com toda certeza uma assombração, e uma das piores. Nesse momento se arrependeu por ter acordado tão cedo para ir atrás da dita assombração, e gemeu baixinho. Quando ouviu o gemido, An deu um risinho – por mais que também estivesse assustada, a cara de arrependimento do irmão superava tudo isso.
- Goy, Goooy – o irmão mais novo ouviu chamarem. – Goooy, porque me caça desse jeito? Porque não me deixa em paz?
O garoto sentiu um calafrio lhe subir a espinha, enquanto passavam perto de um matagal próximo a um riacho que cortava a fazenda.
- Goooy, Goooy... – agora era um gemido mais grave do que o anterior, e mais próximo – Porque está fazendo isso? Vá embora...
O menino tremeu ainda mais, estando prestes a cair no chão, do alto de suas finas pernas. Ele ouviu passos sombrios se aproximando e não conseguia sequer se mexer no alto de suas pernas. Fechou os olhos e pediu em seus pensamentos – Não, não, por favor não! Mas algo lhe tocou o braço e começou a levantar seu corpo no ar. Ele soltou o grito mais agudo da sua vida. E logo depois escutou as duas risadas mais longas de sua vida.
- Você me deixa surda desse jeito – An riu até não lhe restar mais ar nos seus pulmões. Estava assustada pensando que pudesse haver alguma assombração, mas quando a ideia lhe veio na cabeça, o medo foi embora, e deixou no lugar aquela ideia maliciosa. O pai ainda segurava o irmão no ar, e o pequeno ainda se debatia.
- Não se assusta as pessoas desse jeito, eu poderia ter morrido – o irmão respondeu da forma mais dramática que podia.
- Você não tem problemas de coração, nem nada do gênero, então duvido que fosse morrer de uma coisa assim – o pai respondeu colocando o menino que ainda se debatia no chão –, mas com esse grito, você deve ter espantado qualquer coisa por aqui, assombração ou não.
- Você deve ter assustado o gato – disse a irmã olhando brava.
- Não é um gato, e mesmo se fosse, a culpa é sua por ter me feito gritar desse jeito.
- Você que não devia ter gritado desse jeito! – o pai ria enquanto as crianças brigavam. Ele sentou no chão enquanto elas continuavam a se implicar. Carregava uma mochila nas costas, e dela tirou uma toalha de mesa e algumas coisas de comer. Pegou um potinho pequeno e nele colocou algo que parecia sucrilhos, mais menor e marrom e com cheiro de peixe. As crianças o olharam sentado ali e se questionaram se ele tinha desistido de caçar a assombração e já estava cansado de tudo aquilo – afinal, os adultos cansam rápido das coisas – e sentiram um misto de alívio e decepção.
- Papai, você já desistiu? – Goy perguntou emburrado e feliz ao mesmo tempo, porque não queria se ver face a face com a assombração.
- Não, mas independentemente do que seja, é melhor atrair a coisa do que ficar correndo atrás dela, certo?
- Certo – disse An, inflando os pulmões para lhe dar coragem caso a assombração aparecesse.
- E comer um pouco faz bem para as barriguinhas vazias de duas crianças que não tomaram café da manhã.
Bastou o pai falar para as crianças sentirem suas barriguinhas roncando como trovão e a fome ser mais forte que o medo. Elas sentaram e começaram a se empanturrar de tudo que estivesse à vista.
- O que é isso? – perguntou Goy – Esse sucrilhos tem cheiro de peixe.
- É comida pra gato idiota – An respondeu.
- Não chame seu irmão de idiota.
- Ouviu An, não me chame de idiota – respondeu o irmão, fazendo careta – E não precisamos disso. Não é um gato.
- Devemos analisar todas as opções, e se tiver chance de ser um gato, ou mesmo uma assombração que gosta de comida de gato, porque não? - o pai disse.
- Ela não gosta. – respondeu o menino.
- Como você sabe? – retrucou An.
- Ela é uma assombração, assombração não come, porque a comida passa direto pelo corpo dela. E mesmo se comesse, porque comer comida de gato? – resmungou Goy – Ela deve comer são as meninas que assustam os irmãos.
- Elas devem preferir os meninos assustados que gritam por qualquer coisa. – a irmã respondeu dando língua.
- Acho que elas não devem ser tão estritas ao escolher, afinal uma assombração quando fica com fome deve comer qualquer criança que vê pela frente. Ainda bem que sou adulto – disse o pai mordendo uma fatia de pão.
As crianças não responderam, mas era quase possível escutar elas tremendo de medo, e o pai rindo para dentro quando elas se calaram e pararam de brigar ao ouvirem isso.
- Você só está querendo nos assustar – disse An, dando soquinhos no braço do pai. – Goy, nenhuma assombração vai pegar você, e mesmo se tentar, ela vai ter que se ver comigo primeiro.
Por mais que brigassem o tempo todo, toda vez que An via o irmão com medo, ou chateado, que não fosse por causa dela, ela tomava o partido do irmão e brigava por ele com unhas e dentes.
Eles não ouviram os passos que se aproximavam ao longe, receosos, e não viram quando um gato acinzentado se aproximou da comida e roubou um pedaço de pão que Goy tentava pegar, quase levando um pedaço do dedo do menino junto. O garoto gritou de susto, enquanto o bichano corria pela grama. O pai viu o gato se afastando com o pedaço de pão e se levantou, pegando a rede para borboletas consigo.
- Gato mimado, sabia que uma hora ou outra ia ficar com fome e vir atrás de comida, não aguenta ficar um dia sem comer, não? – foi andando devagar em direção ao gato, fazendo sinal para que as crianças ficassem quietas.
Se esgueirava atrás do gato como um leão atrás da presa, Goy fez menção de levantar e o pai apenas fez um sinal para que ele ficasse quieto e o menino lhe devolveu um olhar emburrado.
- Vem cá gatinho, antes que eu te pegue. – disse enquanto se aproximava cada vez mais do animal, que notara a presença de alguém atrás de si e tentava correr mais rápido com o pão em sua boca. Mas o infortúnio lhe ocorreu e o pão enganchou em um pedaço de pau. O tempo dele livrar o pão do galho solto foi exatamente o tempo necessário para o homem lançar sobre ele a rede de borboletas e pegá-lo do chão. O gato se debatia em seus braços, arranhando-o enquanto ele caminhava de volta em direção às crianças.
- Eu disse que era um gato – disse An dando a língua para o irmão, toda a irmandade de antes já tendo desaparecido.
- Talvez esse seja um outro gato que tava por aqui com fome.
- Você só não quer admitir que eu tava certa e você errado – disse com uma careta.
- Você tá é com medo da assombração – disse completando com um som de gemidos.
- Desculpa Goy, – disse o pai – mas acho que o gato era esse mesmo.
No caminho de volta para casa o menino foi emburrado, enquanto a irmã ria e cantarolava – eu estava certa, você tava errado – e o gato esperneava no colo do pai.
- Posso dar um pouco de comida de gato pro gato? – perguntou An.
- Porque você mesma não come? – sugeriu o irmão desdenhosamente.
- Goy, não precisava ficar bravo só porque não era uma assombração. – o pai falou olhando para o menino – E você não queria ter que encarar frente a frente uma assombração de verdade, queria?
O garoto continuava emburrado, mas sabia que o pai estava certo, assim como sabia, no momento em que viu o gato - assim que o susto de uma coisa repentinamente roubar sua comida passou - que ele preferia muito mais ter sido um gato do que uma assombração de verdade o que encontraram.
Quando chegaram em casa, as duas crianças deram comida ao bichano que não parava de reclamar. Elas o olharam de perto e An falou:
- Pai, porque esse gato é tão gordo? Ele já está comendo há um tempão! Ele deve ter comido duas vezes o peso dele!
- Ele deve ter comido duas vezes o meu peso! – Goy retrucou.
- É porque ele é um gato muito mimado, e de tanto receber carinho ele ficou assim gordo.
- Quer dizer que se recebermos carinho demais ficamos gordos? Então acho que eu também gostaria de ser gordo. – Goy respondeu.
- Você já é gordinho. – disse o pai rindo.
- Mas quem que dá tanto carinho para ele se ele mora naquele casarão abandonado? – disse An, pensativa.
- Não sei – disse o pai abruptamente, como se quisesse superar rápido aquele assunto.
An, mesmo em sua ignorância infantil, sabia que não deveria continuar fazendo perguntas, e, ao invés, voltou a brincar com o gato.
- O que faremos com ele? – A menina perguntou, desviando o assunto da pergunta que fizera.
- Vou levá-lo de volta ao casarão.
- Mas ele não vai ficar com fome lá dentro? – o irmão falou, e sentiu um beliscão lhe ferroando a bunda. A irmã olhou feio para o menino, reprimindo-o, enquanto ele fazia uma careta de dor frente ao beliscão e soltava um ai baixinho. Mas o pai já havia se retirado do cômodo.
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