Na manhã seguinte, bem cedo, as crianças ouviram um barulho na cozinha. O gato havia se soltado do local onde o haviam prendido, em um canto da área de serviço, e procurava comida. As crianças se levantaram e encontraram o gato tentando derrubar a lata de lixo.
- Porque ele está fazendo bagunça na lata de lixo? Não tem nada bom lá!
- Ele está procurando comida – An respondeu ao irmão.
- Gatos comem lixo?
- Não, mas tem restos de comida do jantar lá dentro.
- Esse gato não para de comer, mesmo que tenha que comer lixo!
- Só me ajude a tirar ele daí antes que faça uma bagunça e o papai nos mande limpar. – disse a irmã, brava, enquanto corria atrás do gato.
As crianças corriam atrás do gato e o gato corria das crianças, fazendo uma bagunça na cozinha e muito barulho. O pai continuava deitado, talvez fingindo que estava dormindo, ou tentando voltar a dormir enquanto (tentava) ignorar o barulho. Quando o gato pulou desesperadamente sobre a lixeira, derrubando todo o seu conteúdo no chão, o bichano voou para os braços do pai, que se encontrava parado na soleira da porta da cozinha. As crianças que estavam correndo na cozinha pararam como que congeladas ao verem o homem. Seus rostos pareciam de um quadro, que não conheciam de nome, mas já haviam visto em um livro de pinturas – o homem careca de boca aberta, chamava Goy – paralisados de medo. Lá vinha a bronca, passou o pensamento pela cabeça de ambas.
- Limpem isso. – o pai disse apenas, sem mudar a expressão de sono, enquanto prendia o gato na lateral da máquina de lavar, deixando um espaço almofadado entre ela e a máquina de secar, fechado por todos os lados, para que o gato não fugisse de novo, mas dando-lhe espaço para andar. Quando o prendeu, o animal soltou um miado baixo, como uma criança injustiçada.
As crianças varreram tudo e colocaram de volta na lixeira. O gato tentava constantemente escapar. Em um momento em que ele quase escapou, Goy olhou para ele furioso.
- Você já fez muita bagunça senhor Gato!! Preferia que fosse uma assombração, elas não podem fazer bagunça se não podem tocar nas coisas!
- E não vão ficar caçando comida se não podem comer. - a irmã complementou.
Quando terminaram de arrumar a bagunça, as crianças fediam às sobras do jantar, à poeira da casa, a coisa velha e tantas outras coisas que não sabiam o que eram. An só queria tomar um banho antes de ter que sair para ir pra aula. Ela aproximou o pano do pijama do nariz.
- Nem precisa fazer isso - o irmão avisou - tudo está cheirando a peixe podre. Até eu quero tomar um banho. - essas eram palavras que An não esperava saírem da boca do irmão.
As crianças jogaram as roupas no chão do banheiro e entraram debaixo do chuveiro. A água estava quentinha, ainda que o banheiro ainda estivesse gelado. Goy ficou um minuto embaixo do chuveiro antes sair do chuveiro e exclamar:
- Pronto! Limpo de novo!
An puxou o irmão de volta para baixo do chuveiro e encheu o cabelo dele com bastante shampoo, enquanto o irmão resmungava.
- Isso pode queimar meus olhos!
- É só shampoo! E melhor esfregar bem o cabelo. Parece que não lava ele há anos!
O garoto continuava resmungando. Ele só queria voltar pra cama dormir. Não ligava se seu cabelo não estava com cheiro de shampoo. Quando percebeu que o irmão só estava ignorando enquanto o shampoo escorria pelo rosto dele, a irmã começou a esfregar sua cabeça com força.
- Tá doendo! - ele gritava.
- Faz você mesmo então! Senão eu vou fazer do meu jeito.
- Mas o seu jeito machuca!
- Então para de reclamar que eu faço direito, pode ser?
- Uhum.
Eles saíram do banho cheirando a shampoo e sabonete. Mas a área cheirava novamente a sobras de comida e peixe podre. O gato tinha novamente derrubado a lata de lixo. As crianças não sabiam como ele tinha saído, nem como colocar ele de volta.
- Deve ser gato de bruxa - Goy falou.
- Deve ser. - até An concordava de certa forma, afinal, o gato não tinha fugido do Casarão?
O pai chegou de novo para ver a bagunça. As crianças limpas, a área de novo suja. As crianças acharam que ele ia soltar um grito de raiva, mas ele apenas pegou o gato, que ficou irritado de estar sendo preso de novo. Mas ao invés de prendê-lo, ele abriu a porta e saiu. Antes de desaparecer em direção ao casarão, ele falou para as crianças limparem a bagunça de novo. E elas tiveram que tomar um segundo banho aquela manhã para tirar o cheiro de lixo delas. Com shampoo e sabonete, mas dessa vez An prometeu não esfregar com tanta força o cabelo de Goy.
O pai voltou sem o gato, mas com vários arranhões no braço. An estava atrasada pra escola, e Júnia esperava sentada tomando uma xícara de café. An tinha acabado de terminar um pote cheio de sucrilhos, e Goy tinha perdido o sono.
- Podemos ir? - sua roupa estava cheia de pelos de gato, mas as crianças não sabiam se avisavam ou não.
- Vou escovar os dentes. - An saiu da mesa em direção ao banheiro.
Enquanto An escovava os dentes, o pai trocou a camisa e ligou o carro. Quando An saiu, o pai, Júnia e o irmão a esperavam. Eles deixaram o irmão na casa da Sra. Gabs e seguiram rumo à cidade.
***
Se o gato tava gordo, é porque tinha uma bruxa pra cuidar dele no Casarão, certo? Pensava Goy, enquanto a Sra. Gabs andava e trabalhava. Mas ele resolveu que não falaria nada sobre isso com ela, porque ela desconversaria tudo. Mas ele tinha certeza agora que tinha uma bruxa dentro do Casarão, e por isso que todo mundo tinha medo de ir lá. E ninguém falava nada porque ela ameaçara colocar um feitiço em todo mundo se eles falassem qualquer coisa. Então ele tinha que ficar bem caladinho se quisesse descobrir algo.
Uma ideia idiota, que no momento lhe pareceu brilhante, lhe veio à mente: ele ia entrar no Casarão! Ele iria descobrir toda verdade sozinho, e An ia ver como inteligente e crescido ele era. A verdade é que por mais que ele e a irmã brigassem, ele tinha muito orgulho da irmã, e queria que ela tivesse orgulho dele também.
Esperou até que a Sra. Gabs se distraísse com alguma das suas importâncias e correu o mais rápido e mais silenciosamente que pode - porque a velha tinha ouvidos de morcego, como a irmã diria. Um dia, a Sra. Gabs escutou uma cobra se aproximando no meio do mato, e saíram do caminho rápido suficiente apenas para não serem mordidos. An disse que a Sra. Gabs era uma senhora-morcego, ela era quase cega, e não andava muito bem, mas conseguia escutar qualquer coisa.
- Dizem que é para poder pegar quando qualquer criança estivesse aprontando em qualquer canto. - Júnia lhes contou uma vez. A Sra. Gabs também tinha sido babá dela quando ela era pequena. - Minha orelha até hoje dói das broncas que ela me deu quando eu aprontava. - ela riu enquanto massageava as orelhas.
Mas Goy jurava que desta vez não seria pego, e seguiu seu caminho em direção ao casarão. Ele correu o mais rápido que pode em direção à porta principal, e estava o mais perto de entrar do que já tinha estado na sua vida inteira, quando ouviu um grito e passou a correr na direção contrária. Não é que o garoto tivesse desistido, mas decidiu esperar até que An chegasse da escola para tentar de novo. Antes que ela tivesse um irmão (meio) covarde do que um irmão morto.
Ele passou o resto da manhã nervoso. Quando a Sra. Gabs perguntou se o menino tinha formiga nas calças para não conseguir ficar quieto, ele começou a procurar as formigas, antes de perceber que ela estava apenas brincando. Não prestou atenção quando o cachorro do Seu Joaquim quase lhe mordeu os calcanhares, e quase chutou o focinho dele quando chegou perto demais. A Sra. Gabs ralhou falando que não era daquele jeito que se tratava os bichinhos, mas a bronca entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
Quando não tropeçava, ou quase tropeçava, estava distraído contando o tempo eterno que demoraria até a irmã chegar em casa. Achava que teria envelhecido até ficar tão velho quanto a Sra. Gabs quando a irmã voltasse. Ela parecia estar demorando o triplo do normal. Talvez os professores também estivessem mancomunados com a bruxa, e queriam fazê-lo desistir de investigar o Casarão fazendo com que An tivesse que fazer exercícios e mais exercícios até que sua mão caísse. Ou seu pai, que já tinha sido alertado pela Sra. Gabs, resolveu pegar o caminho mais longo de todos, dando a volta lá pelo Japão antes de voltar para casa. Ou pior ainda! Ele tinha resolvido ir na casa da tia Denise tomar um chá antes, e então demoraria dias para voltar para casa. Goy não sabia onde ficava o Japão, mas sabia que a casa da tia Denise era mais longe, pois tinham demorado um tempão para chegar lá, e já era noite quando voltaram pra casa.
Mas, então, uma ideia lhe surgiu: e se sua irmã nunca mais voltasse para casa? E se sua fracassada tentativa de adentrar o covil tivesse levantado a ira da bruxa contra ele, e agora ela não deixaria nunca a irmã abandonar a escola e ela ficaria lá, presa, pelo resto de seus dias. Ele imaginou a irmã velhinha e usando óculos tão grossos quanto os da mãe da Sra. Gomez, com rugas tão profundas quanto o jabuti da Lilá, a filha mais nova dos Bentos, uma família que vivia quase no limite da propriedade - o papai um dia tinha oferecido para dar carona para eles até a cidade, mas eles tinham tantos filhos que não cabiam todos no carro. Ela olhava para o irmão, mas parecia não enxergá-lo direito, mesmo com óculos tão grossos quanto aqueles. Ela olhava para folha de papel na sua frente e apertava os olhos tentando ler o que estava escrito. “Como vou escrever meu nome se nem consigo ler o que está escrito?” Ele ouvia a irmã envelhecida lhe perguntar. A simples ideia desse pesadelo fez um calafrio lhe correr a espinha, e ele olhar ainda mais atentamente para estrada esperando o carro que traria a irmã.
- Quanto tempo a An ainda vai demorar para chegar em casa? Está parecendo uma eternidade. - perguntou à Sra. Gabs, ainda que morrendo de medo de que seu plano fosse descoberto e a bruxa torturasse a todos.
- Minino, ainda não são nem dez horas. Sua irmã ainda vai demorar pelo menos umas três horas para chegar em casa.
Ele não sabia exatamente quanto tempo três horas demoravam para passar, exceto que era muito tempo, mas também não queria perguntar qualquer coisa mais correndo o risco de acabar com todo seu plano. Ele teria que esperar, remoendo-se todo, mas teria que esperar. Talvez morresse antes da irmã chegar, mas até lá ele aguentaria firme.
Ele resolveu vigiar o Casarão enquanto esperava, e traçar o melhor plano possível. Ele contou o número de janelas: vinte e cinco janelas grandes; trinta janelas pequenas. O número de portas: duas grandes, quatro pequenas, três portas que pareciam janelas (ou janelas que pareciam portas). Caberiam cinco casas suas dentro daquela casa, ele calculou.
A Sra. Gabs estava cuidando das coisas dela e Goy foi deixado sozinho olhando para o Casarão. Ela sabia que o menino ficaria ali um bom tempo encarando, traçando qualquer plano que passasse em sua cabeça. Era sempre uma história diferente, sobre os seres espectrais que moravam lá dentro, supernaturais. Divertia-se com o que a cabecinha dele inventava, talvez a criança mais curiosa e criativa de quem tinha cuidado. Hoje ele estava prestando ainda mais atenção no Casarão, por alguma razão, não que isso a preocupasse. Ela se afastou um pouquinho enquanto ele sentava na relva recentemente cortada e comia uma barrinha de cereal.
- Eu já volto, ocê não sai daí. - ele não lhe deu a menor atenção, mas não imaginava que ele sairia de lá. Em verdade, contar todas aquelas janelas, e portas e outras coisas mais tiveram o mesmo efeito de carneirinhos e logo o menino dormia sob o sol, o chapéu protegendo seus olhos do sol, uma barra de cereal meio comida em seu colo.
Comments (0)
See all