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Ficaram duas semanas e meia sem se verem. Eles tinham voltado, ele mandou uma mensagem contando, e o homem das flores lhe dava carona para o trabalho e depois para casa, quando não iam dormir na casa dele. Estava corrido no trabalho, com muitos prazos fechando aquele mês, então teria que almoçar rápido. Se viam às vezes no corredor, mas tão de relance que mal se reconheciam. Agora, ela olhava para a aliança todos os dias, incapaz de escondê-la, e se perguntava, porque ainda estava lá aquela lembrança.
Numa quarta-feira de manhã, ele bateu na porta dela. Ela estava colocando o calçado enquanto segurava uma caneca de café. “Bom dia, poderia me dar uma carona?”, ele perguntou, assim que ela abriu a porta, “Claro, mas…”, “Ele não pôde vir, teve que fazer uma viagem de última hora à trabalho, e tenho uma reunião logo cedo, e não posso me atrasar, só que perdi o horário”, “Então vamos logo”.
Entretanto, um acidente com um ônibus que derrubou um poste parou toda a via. O rádio tocava, mas o som da melodia parecia uma furadeira, que lhes invadia o cérebro. Tanto a dizer, até que ela resolveu cuspir o que tinha contido em sua garganta. “Fui casada dez anos, sabia? Casei cedo, com vinte e três. Era normal onde morava, antes de vir para cá”, ele escutava em silêncio, enquanto ela apertava com força o volante. “Nunca tivemos filho. Hoje sei porquê, na época não sabia. Eu tinha medo do que aconteceria se botasse uma criança nesse mundo. Se ela nascesse como eu, se nascesse como ele”.
“Eu fui casada dez anos, sabia? Dez anos fui casada, com alguém que amava, e acreditava que me amava. Nós compartilhávamos as pequenas coisas e as grandes. Posávamos para foto, visitávamos parente no final do ano e nas festas - casamentos, formaturas, batizados. Dez anos deitei do lado, transei com ele. Mas na maioria das vezes, foi só ele quem transou comigo. Porque eu não tava lá, eu ia para o mais longe possível para esquecer que meu corpo tava ali. Eu tomava pílula em segredo, e quando a família perguntava porque ainda não tínhamos filhos falava que tava tentando. Mas não tava, e rezava para que a menstruação descesse todo mês, porque não queria ter que fazer um aborto e morrer em uma cama em um muquifo qualquer. Fiz dois abortos”. Os carros moveram um pouco, mas ainda estava tudo parado. Ela parecia que iria arrancar o volante, e Ron não entendia como ela continuava firme, sem uma lágrima no rosto.
“Minha avó, com olhar triste, a única pessoa da minha família para quem contei algo, falou que era normal. Era assim mesmo. Meu vô morreu, minha avó ficou lá, naquela casa naquela cidade com o olhar triste, e apesar de todas as histórias que ela nos contou, quando falávamos do vô ela fica com o olhar além de triste dolorido, assustado. Agora minha avó também já morreu, e as verdades dela morreram com ela. Mas as minhas continuam. No início, brigávamos e ele xingava, dizia que eu era estúpida, idiota, e que eu precisava aprender a agir direito. Mas ele me trazia flores e chocolates depois. Um dia jogou um copo em mim, mas não acertou. No outro dia fomos jantar na casa dos meus pais e comemos como se nada tivesse acontecido. Outra vez, ele me ameaçou com uma faca. Dia seguinte teve churrasco, e com a mesma faca ele cortava a carne e servia para os nossos amigos. Certa vez, saímos para nos divertir, e voltei cansada, com muita dor de cabeça. Ele me agarrou pela cintura, beijando o meu pescoço e dizendo como ele me amava, como amava o meu corpo. Falei que não queria. Ele disse ‘mas amo tanto esse seu corpo gostoso, até mesmo essas dobrinhas, eu te amo muito mesmo’. Tentava me afastar, e ele continuava. Me jogou na cama. ‘Eu vou te mostrar como te amo’, ele disse enquanto tirava o cinto e abaixava a calça. Tirou minha calcinha e subiu meu vestido. Enfiou o pinto dele em minha vagina, seca pela falta de excitação. Foi o dia que aprendi a dissociar e viajar, para não estar ali quando ele queria e eu não. Perdi a conta das vezes que ele transou com meu corpo, mas não transou comigo”. Estavam há meia hora parados. A respiração de Lara era pesada, mas ela continuava firme.
“Mas depois disso, ainda ficamos muitos anos juntos. Porém, eu tive que sair de casa quando percebi que se esperasse mais, se continuasse acreditando que aquilo era ‘amor’, sairia de casa numa sacola preta. Ele quebrou duas costelas minhas, e a clavícula de brinde, e mesmo assim, voltei para casa e fiquei uma semana me recuperando, com ele falando como me amava e que aquilo ia mudar dali pra frente, que ia se controlar. Uma amiga me tirou de lá e me levou para outra cidade. Saímos 9h43 da manhã, nunca esqueci, viajamos quatro horas até a casa da tia dela, que me recebeu com um abraço, tomando cuidado com meus machucados, me deu cama e comida. Ele não sabia para onde fui. Pedi para ninguém da minha família contar, e para muitos sequer contei. Ele foi na casa dos meus parentes, ameaçou minha afilhada, filha da minha irmã, que morava perto da gente. Ela teve que pedir uma medida protetiva contra ele. Um dia, ele achou onde eu morava. Pediu para voltar, implorou. Minha tia que contou, disse para eu aceitar, que ele me amava muito, e que devia perdoar ele. Demorei anos para me livrar dele, e de quem tinha me tornado por causa dele. Fumava vários maços por dia, bebia mais do que meu fígado aguentava, estava deprimida, emagreci porque não conseguia comer sem vomitar - lembra quando ele falou que amava as minhas dobrinhas? ele não amava.”
“Por que você não saiu antes? Eu cansei de me perguntarem isso. E nunca tive resposta, nem sei se um dia terei. Sempre esquecia de tirar os espinhos das rosas que ele me dava, talvez fosse uma metáfora para o nosso relacionamento. Os chocolates eram gostosos, mas hoje eu me sinto enjoada com as marcas que adorava receber”, “Algo em você sabia que não tava certo, mas nem você conseguia entender”. No rosto de Ron, as lágrimas caiam. Como ela seguia firme contando tudo aquilo?
“Ele não está viajando, eu disse que eu tinha viajado. Não queria vê-lo. Ontem ele comentou que tínhamos que parar com aquelas brigas bobas, e que eu não podia deixar mais minha irmã se envolver. Não consegui comentar que foi ele que envolveu minha irmã, ou que nossas discussões eram sérias, que ele não podia simplesmente desprezar minha opinião. Não tive coragem de confrontá-lo, porque nesse momento percebi que tenho medo, pavor, de como ele vai reagir. E essa impredictibilidade, me paralisa. Minha irmã acha que ele me ama, e tenta me apoiar, mas não consigo contar para ela do meu medo. De como às vezes até o som da voz dele me deixa ansioso, e não de uma forma positiva. E hoje, só queria um tempo para pensar, para parar e descobrir o que fazer, qual passo dar. Ele não me bate, nem nada assim, mas as palavras dele machucam. Aquele dia, na porta, quando você nos viu, não foi a primeira vez. E percebi que não será a última. Ele não ousa tocar em mim - por enquanto. E esse por enquanto é horrível. Ele grita, ameaça, xinga. Mas a gente meio que desenvolveu uma dependência um do outro. Ele me pergunta, ‘Já pensou viver sem mim? O que você faria?’. E comecei a ver que quando ele fala isso, ele diz como uma ameaça, de que se ele for embora eu vou perder tudo”.
Os carros começaram a se movimentar e Lara moveu o carro para o acostamento. Nenhum dos dois estava em condições de continuar. Por fora, ela estava estática, já vivia há muito com aquela história, mas, por dentro, ela sabia que era muito mais difícil. Ela estava em um turbilhão.
“Hey, o que acha de ligarmos dizendo que estamos doentes?”, finalmente as lágrimas lhe alcançaram, “Não acho que nenhum de nós tenha condições de trabalhar hoje”. Ron tinha a reunião, mas ela estava certa. Não tinha condições de trabalhar, e já estava tarde, quase certo que a tinha perdido.
Naquele dia, eles foram ao parque. Falaram de coisas sérias, de amenidades, dos filmes que estavam em cartaz, e de histórias da infância. Lara levou a aliança para uma casa de penhores - não queria jogar dinheiro fora. Guardaram dinheiro cinco meses, enquanto procuravam um apartamento mais perto do trabalho, e para deixarem aquela vida que tinham para trás. Alugaram um apartamento de dois quartos - um para ela, um para ele - e revezavam na direção do carro todos os dias para o trabalho. Saiam com os amigos sexta-feira à noite, e caminhavam no parque domingo de manhã - quando Ron acordava. Ele apresentou ela para Rebecca, sua colega de trabalho. Elas namoraram por um tempo. Terminaram. Lara saiu com outras pessoas. Uma ruiva que trabalhava com design. Um australiano que trabalhava com marketing. Se casou com uma angolana que dava aula de física e tinha dois filhos gêmeos de outro casamento. Ron foi o padrinho.
Ron estava saindo do trabalho, o carro estava no mecânico e Lara em lua de mel. Esperava na parada de ônibus, e pela primeira vez o ônibus chegou no horário correto. Ele entrou e cumprimentou o motorista. Era a primeira vez que o via. “O que houve com o outro motorista?”, “Ah, mudou de emprego. Acho que ficou traumatizado depois que teve um acidente e um poste destruiu a frente inteira do ônibus. Disseram que foi muito feio e ele se sentiu muito culpado que podia ter machucado toda aquela gente, mesmo não tendo sido culpa dele”, “Entendi”. Ron sentou em um dos assentos vagos e seguiu viagem.
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