Iansã tinha dezesseis anos quando teve o primeiro namorado. Era lindo, inteligente, e bem comportado - pelo menos a princípio. No recreio, segurava a mão dele enquanto lanchavam e arrumavam um jeito de lanchar com uma mão só, o que muitas vezes resultava em bagunça. No dia que teve cachorro quente, a salsicha caiu na blusa dela e deixou uma mancha. Os dois eram destros, então sempre um tinha que ficar com a mão esquerda, e normalmente era ela. Se beijaram pela primeira vez na festa da prima dele. Ele ofereceu uma cerveja, ela nunca tinha bebido, ou beijado. Naquele dia ela se sentiu mais leve, e eles se beijaram sentados no sofá, ele passando as mãos pela sua coxa. Ela se sentia meio estranha, não tinha feito nada daquele tipo até então, mas deixou. Eram namorados, não eram?
O que complicou foi no dia que ela foi na casa dele. Os pais tinham uma casa grande, que ficava em um bairro nobre da cidade. Ela foi de ônibus até a casa dele, cruzando de uma ponta a outra. Ela chegou, a empregada a recebeu na porta. “Oi eu sou a…”, “A namorada do Thiago, né?”, “Isso”, “Vamos entrando!”. Ela entrou e esperou enquanto Oxum chamava o Thiago que estava dormindo. Será que ela tinha chegado muito cedo? Mas não, ela tinha chegado até um pouco tarde. Eles tinham combinado 10h, já era quase 11h. “Você chegou cedo”, o Thiago disse, enquanto descia as escadas, o rosto de sono e a roupa amassada.
Eles foram pra piscina, e ele lhe roubava beijos, enquanto lhe abraçava encostados na borda. Estava quente, e a piscina estava confortável. Mas o Thiago mudou de comportamento quando Oxum veio avisar que os pais estavam chegando. “Pensei que seus pais tavam viajando”, Iansã questionou, “Devem ter voltado cedo”. Os pais chegaram logo depois e Oxum serviu o almoço. Iansã colocou um short e uma blusa por cima do biquíni, pois o Thiago tinha dito que iam voltar à tarde para piscina. Sentaram em uma mesa grande, o pai e a mãe, o irmão mais velho do Thiago, que recém tinha acordado, o Thiago e ela, o mais distante possível do pai e da mãe dele. Ia perguntar porque Nanã não sentava com eles se tinha espaço na mesa, mas resolveu calar a boca
“Qual teu nome querida?”, a mãe dele gentilmente perguntou, “Iansã”, “Nome diferente, né?”, “É nome de Orixá”, ela respondeu. Tinha muito orgulho do seu nome. “Ah… Entendi. É daquelas religiões dos escravos, né?”, “Mais ou menos”, não queria dizer que não, que não era religião de escravo e que a escravidão tinha terminado há muito tempo, mas deixou de lado. “Tu estudas na mesma escola que o Thiago?”, o pai perguntou, “Sim”, “E gosta de lá?”, “Gosto”, “Sabe se ele tem alguma namorada?”, ia dizer que ela era a namorada quando Thiago interrompeu, “Não, todas as garotas lá são muito sem sal, eu já te disse pai”, “Mas tu já és homem, guri, tens que arrumar uma namorada logo, ou vão te dizer que tá enrustido”, “E aquela menina que você gostava, aquela dos olhos verdes?”, a mãe perguntou, “A Ana?”. Eles continuaram a conversa como se ela não estivesse lá. Em um momento, a mãe tentou ser educada e chamar ela de volta para conversa e perguntou, “Tu gostou da casa?”, “É muito bonita”, “Já tinha entrado em uma casa tão grande assim?”, novamente, quis dizer que já sim, que a casa da tia dela em Belo Horizonte era duas vezes o tamanho daquela - o que era verdade -, mas achou melhor deixar pra lá. O Thiago se despediu dela logo depois do almoço. Disse que tinha que estudar. Ela se ofereceu para ajudar, mas ele disse que não precisava.
Depois disso, pensou em terminar, mas talvez o Thiago fosse só tímido, né? Ela não tinha contado pro pai que tinha namorado - a mãe e a avó sabiam, mas o pai nem morar com elas morava. Mas toda vez que ia na casa do Thiago, era aquilo de ficarem se escondendo. Até que um dia o irmão pegou eles. “Eu sabia que tu tava namorando a negrinha!”, “Nós não…”, ela não sabia no que era mais difícil de acreditar, no racista do irmão ou no namorado. Ele ia continuar negando? Naquele dia ela cansou e resolveu terminar tudo. O Thiago tentou fazer ela desistir, mas no final deixou pra lá. Na escola na segunda-feira, ouviu os garotos comentarem no pátio que o Thiago tinha comido ela, mas que ela era sem graça como uma boneca inflável, e que por isso que terminaram. Nunca mais falou com o Thiago.
***
Na faculdade, saiu com o Matheus. Ele era mais velho, e estava fazendo mestrado. Morava sozinho em um micro-apartamento, mas como só era ele, ela ia pra lá todas as noites que podia. Nem pra sexo era, às vezes era só pra assistir algo na Netflix (sem chill). Ele apresentou ela para a militância estudantil, a fez ler Angela Davis, Bell Hooks e Audre Lorde. Tomou gosto por Carolina de Jesus, Conceição Evaristo e Maria Firmino dos Reis. Participavam de rodas de debate sobre teoria descolonial e o genocídio da juventude negra. Iam pra protesto juntos, e levavam spray de pimenta na cara juntos. Mas ele dizia, “Não quero nada sério, tá?”. E ela aceitava. Afinal, tudo nele era bom né? O sexo era quente e gostoso. As discussões sobre arte, literatura, feminismo e negritude eram maravilhosas. Se sentia mais inteligente só de estar do lado dele. Ele obrigava ela a tomar a pílula, porque gostava de fazer sexo sem camisinha. Esse era um ponto negativo, ela tinha um pouco de medo da pílula depois que a tia teve uma trombose, mas fora isso, tava tudo bem.
Mas, um dia, ele chegou, meio que do nada, e disse que precisavam terminar. Não era ela, ela fez tudo certo. Era ele. As coisas estavam ficando muito sérias e estavam saindo do controle, e ele não era o tipo de homem para um relacionamento monogâmico. Ela aceitou.
Duas semanas depois, ficou sabendo que ele tava namorando a Maria Eduarda, uma loira alta que fazia direito. Tinham o mesmo grupo de amigos. Ficou sabendo que já tinha apresentado pros pais dele e tudo. Ela nunca tinha conhecido os pais dele, era um dos muitos acordos do relacionamento deles - nada de pais ou família. No máximo irmãos, porque os círculos de amigos eram muito próximos. Mas só. Nem os irmãos dele ela conhecia. O Matheus ela ainda conversou depois disso, era quase impossível não conversarem dentro da mesma Universidade, mas apenas conversavam ou se cumprimentavam nos corredores. Resolveu que era melhor ficar longe do Matheus.
***
Ainda na faculdade, namorou o Lucas, e o João Pedro. Quando estava fazendo o mestrado namorou outro Thiago. Mas nenhum deu certo. Namorou também a Sara, mas acabaram terminando porque ela teve que mudar para muito longe, e o relacionamento à distância foi difícil. Conseguiram por quatro meses, mas era muito dolorido toda vez que desligavam a chamada de vídeo. Por um tempo, resolveu que ia desistir de namorar. Ficar sozinha, cuidando de si mesma.
Foi nessa época que conheceu a Yewá. Davam aula na mesma escola. Ela de história, Yewá de literatura. Era a companhia dela de bar e de festa. Yewá também estava sozinha, mas era porque não queria mesmo. “Sou assexual, e meio que arromântica também”, ela confessou um dia. Nas festas, nunca tinha vontade de pegar ninguém, preferia ficar dançando e bebendo. Às vezes, encontrava alguém para dançar junto um forró, ou um xote meloso. Mas era isso. Naquele momento, era justamente o que Iansã precisava. Na hora do intervalo, se encontravam na sala dos professores, tomavam uma caneca de café - afinal, acordavam cedo, e ficavam até tarde corrigindo prova de alunos - e conversavam sobre a vida. Iam pro terreiro juntas também, e agradeciam aos orixás pelo momento que estavam tendo, de reflexão. Mas foi nessa época que a mãe de Iansã ficou doente.
Nanã foi fazer um check up naquelas campanhas do Outubro Rosa de prevenção ao câncer de mama. Tinha certeza que não ia dar nada. Mas deu. “Só que não precisa fazer alarde”, disse a mãe no telefone, “Como não fazer alarde, mãe, tu tá com câncer! Como quer que eu me sinta?”, “Sou eu que estou com câncer, não você filha”. A mãe dela era turrona e dura na queda, sempre foi. E desde que a avó morrera, tinha sido ainda mais cabeça dura. Dizia que era a idade que estava chegando. Iansã mudou de volta para casa da mãe e cuidou dela. Porém, “ela a deixava louca”. A saúde mental dela ficou debilitada com a quimio e as coisas ficavam extremamente complicadas no relacionamento das duas, com a tensão aumentando à medida que a saúde de Nanã piorava. Yewá tentava ajudá-la, mas, no final do dia, era ela que ficava lá, sozinha.
A mãe morava em um pequeno apartamento de dois quartos e um banheiro, depois que venderam a casa que herdaram da avó - era muito grande para uma só pessoa, e ela preferia não ter que gastar tempo demais fazendo faxina. Quando queria fugir da mãe, se escondia no banheiro e dizia que estava com diarréia. Nunca teve tanta diarréia na vida. Assistiu um filme inteiro do Kubrick no banheiro, também leu um livro do Umberto Eco e um do Saramago. Às vezes ligava o chuveiro, quando percebia que já tinha tido diarréias demais. Ficava irritada consigo mesma de estar sendo tão cruel com a mãe, enfraquecida. Nanã era uma mulher enxuta, das coxas grossas e bunda arrebitada, as bochechas grandes e rosadas. Agora, estava seca. O rosto lânguido e pálido. Os lábios que já tinham sido tema de poema, algo do que a mãe sempre se orgulhara e recontava milhares de vezes, estavam murchos e trêmulos. Seus olhos, grandes e cheios de vida, que entoavam louvor no terreiro e cantavam junto nos dias de samba, pareciam saltados como os de um peixe morto - sem brilho.
Depois de alguns dias cuidando de Nanã, Iansã teve que voltar a dar aula e contratou alguém para ajudar. Yewá visitava-a aos finais de semana e tomavam café. Nanã ficava um pouco mais feliz quando ela visitava, e contava histórias de quando era nova. De quando ela, Ossain e Iemanjá corriam pela fazenda, descalços mesmo. Só Ossain que ficou para cuidar da fazenda, depois que o pai morreu. Iemanjá foi ser arquiteta em Belo Horizonte. Contava dos namorados, do que aprontava quando era criança e adolescente. De quando decidiu mudar de cidade, saiu de Minas quando conheceu o pai de Iansã e mudou para Porto Alegre. Iansã nasceu e cresceu lá. Mostrava fotos de Iansã pequena, tomando banho de banheira, brincando com o cachorro do vizinho e cheia de casacos no Natal quando foram para Gramado. Ela ficava feliz com esses momentos de felicidade da mãe, em que ela voltava a ser a mãe de antes do câncer.
Ela morreu em 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida e dia de Oxum. Iansã não chorou no enterro. Talvez para não acreditar que fosse verdade, que tava sozinha. Yewá lhe fez companhia naquela noite, dormiram na sala de estar assistindo televisão. No dia seguinte, uma lágrima caiu dentro da xícara enquanto tomavam café. E então outra. E outra. Um choro silencioso, que ia caindo aos poucos. Nunca mais ia tomar café com a mãe reclamando que ela colocava açúcar demais, que se devia tomar puro, senão não era nem café. Nunca mais ia comer o pão de queijo que a mãe fazia, do jeito que faziam em Minas. Receita da bisa.
Yewá se aproximou e segurou a mão de Iansã. O relógio de cozinha em formato de joaninha da mãe apitou. Yewá foi até o forno e tirou uma fornada de pão de queijo fresca. “Sua mãe pediu para ajudar a fazer semana passada e congelar. É como se ela soubesse…”. As lágrimas molhavam os lábios enquanto ela comia o pão de queijo ainda quente, recheando-os com requeijão, do jeito que a mãe ensinara. “Acho que enchemos o freezer de pão de queijo”. Yewá riu e Iansã a acompanhou. Era bem coisa de Nanã fazer isso.
***
Fazia três anos que Nanã tinha morrido, e Iansã vendeu o apartamento. Ela e Yewá ainda trabalhavam juntas na mesma escola. Ainda iam no terreiro, era triste ir sabendo que a mãe não estava mais lá, mas gostava de pensar que ela e a avó estavam olhando para elas, lá de cima. O pão de queijo tinha acabado, mas a mãe deixara a receita. Ela preparava os próprios pães de queijo agora, não era a mesma coisa, mas eram gostosos e lembravam ela das tardes que ficavam ela e a mãe conversando sobre futilidades na sacada tomando café. Yewá um dia foi embora, uma proposta boa em uma escola em Salvador, acabaram perdendo contato, mas não se sentia mais tão sozinha. Na hora do intervalo, ainda conversa com os professores tomando café. Corrige prova até tarde da noite ao som de Nina Simone. E ainda lê livros trancada no banheiro, mas dessa vez não precisa se esconder de ninguém.
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