Ouve-se um uivo a distância.
É, eles estão chegando.
Ilídia está sentada em um galho de árvore, na área leste do Hor Murum. Se forçar bem os olhos, consegue ver o vilarejo sem nome através do muro vivo, com seus habitantes correndo de um lado para o outro. Se abrigam as pressas perante o uivo de um instrumento comprido de pedra, cilindrado e cheio de furos. O alarme avisa escandalosamente a chegada das criaturas do deserto.
Tão parecidos com as dunas de areia do deserto, esses monstros gigantes apareceram do nada certo ano e começaram a frequentar aquele terreno. Tem pelagem bege, macios e fartos, uma bola felpuda e pesada, se equilibrando sobre suas quatro pernas longas e finíssimas. No meio do seu corpo, há um buraco negro e cheio do que parece ser dentes. Andam perto das árvores, sentam em bando perto da caverna do oráculo e depois vão embora junto com a lua. Ninguém sabe o que são, mas tanto os Hor como o resto do mundo tem medo de irritá-los. Emanam uma energia estranha e esmagadora presença. Com o tempo, os apelidaram de Treze, número que representava tanto bom como mal agouro, convivência dos opostos no mesmo corpo.
Voltando a Ilídia Hor, a primeira criança da sétima geração Hor, comprime os ombros de ansiedade. Diferente do resto de sua família, ela se dá muito bem com os Treze.
O mais novo da ninhada a reconheceu na hora e andou em sua direção.
- Você sabe exatamente onde quero ir hoje, Doze. – ela cochicha contra os pelos da criatura, abraçando-a. – Vamos antes que deem por nossa falta.
Ilídia pula em cima de Doze, um jovem Treze de apenas 2 metros ou 2.5 de altura, que eriça os pelos e encaminha-se para dentro de Hor Murum. A criança tira o casaco da bolsa e veste, as árvores são tão grandes e densas que faz frio ali. As esvoaçantes, fartas e sedosas copas criam um céu verde escuro lá em cima. A menina estica a palma da mão para cima, dedos bem abertos e depois fecha, tentando imaginar como seria tocar naquele veludo vegetal. Um raio de sol invade repentinamente aquela abóbada e ela sela seus olhos rapidamente, respirando fundo, sentindo um breve calor do mundo exterior.
Quando Doze para e repousa, Ilídia abre os olhos.
A caverna parece uma aranha com grandes pernas rochosas. Estranhamente, as rochas que a compõe cresce em volta dos troncos, permeando cada árvores próxima. Um epifitismo incomum para algo aparentemente “inanimado”, não vegetal.
Ela desce do Treze, segurando firmemente em seus pelos. Os dois entram, então, na boca do predador adormecido. Aquele seria o dia em que desbravaria além dos limites no qual fora junto com sua família quando era bem menor – mal se lembra dos detalhes. Na verdade, lembrando ou não, tudo parece igual e... ao mesmo tempo, diferente. Não acredito que essa criança, de apenas 14 anos, se lembraria desse lugar no qual estivera com apenas 4.
No fundo da caverna, há um lago estranhamente grande... digo, não tem como existir todo esse espaço, considerando a dimensão exterior percebida ao chegar.
- Olha só, Doze! – exclama, olhando envolta, mas parando incrédula ao ver algo saindo de dentro da água. – Aquilo... é... um trono?
Era uma espécie de cadeira de gelo, entalhado rusticamente com ornamentos geométricos e de um encosto enorme, a ponta exibe um brilho azul inexplicável. Ilídia se aproxima, puxando a criatura das dunas com entusiasmo. A cada passo, um contorno fantasmagórico surge sentado no trono.
Agora com a água na altura dos joelhos, o espectro adquire uma forma quase completa. Uma mulher gordinha suspira, com a cabeça apoiada na mão e cotovelo no braço do móvel de gelo.
- Tá... tá... No momento, todas as linhas estão ocupadas. Para profecias, aconselhamento, contato com o plano etéreo, etc, visite a oráculo no próximo ano.
Após um longo silêncio, a oráculo levanta o olhar para a garota.
- Hum, não me lembro de você. – diz Ilídia. Doze senta ali na água mesmo, cansado.
- Eu também não. Estamos quites, criança.
- Você não é o oráculo?
- Estou de férias, mas digamos que sim. – ela se apluma no trono, cruzando os braços. – Na verdade, eu conheço você... não conheço?
Doze se remexe em resposta, jogando água em todo mundo.
- Ah, verdade! Você tinha mais bochechas. – a oráculo ri. – Olá, Ilídia! Me desculpe por essa recepção pavorosa, a última visita dos seus pais foi bem desgastante. Enfim... do que precisa?
A menina pisca algumas vezes, confusa.
- O Doze... conhece você?
- Hum, essa criatura se chama Doze agora? Que confuso. – ela ri novamente – Sim, sim. Os Arautos não apareceram aqui do nada. Eu os criei, cuidei, conheço cada um deles.
Doze resmunga, como se entendesse o que a oráculo dizia.
É um som um tanto horripilante, que arrepiaria qualquer um. Um tom grave demais, um tanto falhado e ressonante, vindo do vazio e parasitando suas entranhas. Tal manifesto de horror que os Treze emitem através do buraco negro, sua boca, por todos foi apelidado de Eco do Poço das Almas. A menina está acostumada com isso, porém, sabe que ninguém entenderia a sua calma.
A oráculo sorri, desanimada.
- Eles eram rochas no início, grandes totens que me ajudavam a canalizar meu poder e proteger nossa... nova casa. Mas, quando veio aquela guerra... o chamado do seu avô... tudo se tornou tão obscuro. Nossa família mudou tão rápido quanto as rugas que apareceram em meu rosto. Suas almas enegreceram em inúmeras partes, igual à pele envelhecida de meu corpo. Vi estranhos serem mortos, cobiça por um poder que nada realmente significava para nós... ou pelo menos não significava antes. Às vezes, criança, me pergunto se a culpa não foi minha... fui boa demais e por isso não consegui punir meus próprios filhos quando tive de fazê-lo. – ela se encolhe no trono, abraçando as pernas contra o peito. – No momento, minha ex-bochechuda, nosso futuro é tão desesperador quanto o som emitido pelos Treze.
Ilídia se afasta lentamente, receosa.
- Não sei do que está falando..
- Quando me revoltei e tentei pará-los, o rei ordenou que me prendessem e isolassem. Seus ancestrais estavam maravilhados com aquele mundo que os veneravam, imagino. Assim que voltaram da guerra, mais forte, fizeram isso. Não consegui vencê-los. Quase morri. – e então ela ri, após uma pausa. – Pena que, sei lá, acho que alguém no plano místico gosta muito de mim. Transcendi, virei um oráculo espectral e aqui estou. Não posso sair daqui e também não podem me tirar. Construíram essa caverna como uma prisão, mas ainda consigo influenciar em algumas coisas ai fora. Acho que desistiram, deve ser. Agora até descobriram uma utilidade para a minha pessoa, ouvir profecias, conselhos, me fazem abençoar cada novo membro de nossa família... é, Ilídia. Essa é a sua família. Sinto muito por você.
O oráculo, sua ancestral, dá tapinhas na cabeça da menina e volta a se escorar tristemente no encosto do trono.
- Nunca me contaram essas coisas... – diz Ilídia. – Meus pais, todos eles, não parecem ser pessoas ruins. Digo, sempre disseram que protegemos a humanidade de algo maior. Tudo que fazemos é para um bem maior.
- Eu também falaria isso se quisesse enganá-la, criança. Para todas as gerações. Uma mentira dita tantas vezes, uma hora, adquire verdade.
- Mas... – ela encosta em Doze, os pelos dele faz cócegas nas suas orelhas. –... está mentindo para mim. Eu nunca devia ter vindo sozinha.
Antes que a menina se afastasse demais, o oráculo levanta e conjura um feitiço para que ela parasse. A sua volta, visões explodem e invadem-na.
De guerras a ações soturnas e suspeitas em vielas, sangue e gritos mancharam o cristalino de seus olhos. Ao mesmo tempo que pessoas dotadas de magia eram perseguidos, presos e torturados por agentes nobres karman, a família ao lado do rei incinerava nações inimigas inteiras. Sorriam a cada vitória e flores jogadas aos seus pés, Karma enriqueceu descontroladamente. Não só a sua magia peculiar como ambições e pecados sujavam permanentemente as veias de cada Hor. Todo casamento, uma nova semente negra florescia e parasitava seu hospedeiro.
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