— "Oh Maalêm, permita que não!" — O pensamento veio em voz suplicante na mente de Arám.
Haviam vinte dias que caminhavam pelas areias, seguindo a própria sombra quando o sol nascia e a Ponta do Sabre quando este saia dos céus. Apesar da idade avançada, Arám liderava a marcha pois era o mais forte entre os anciões em meio aos quarenta indivíduos que compunham o grupo. As três pequenas famílias já compartilhavam provisões desde o nono ciclo do sol, e agora que o vigésimo chegava ao seu fim, quase nada restava.
— Vai alcançar a gente enísh, devemos parar e tentar sobreviver. — Kalíd teve de gritar para se fazer ouvir sem sair da fila. Distribuíram os adultos e jovens pela extensão do grupo, deixando mulheres e crianças entre eles. Sendo que por ultimo vinham os mais fortes, guiando as mulas que ainda restavam.
Quando Arám se virou para trás, teve na vista as caminhantes silhuetas encobertas. Homens e mulheres que não eram mais do que tecido grosseiro esvoaçante, crianças e velhos da mesma forma, exceto pelo tamanho menor ou visível cadência nas passadas. Animais que se deformavam tremulantes conforme o calor subia das dunas, pontuando o fim da marcha. E atrás destes, um bloco maciço e turbilhoso de vento e areia, rugindo denso e movendo-se pesadamente.
— Não! Seguimos sem parar mais. — Arám respondeu sem retirar a parte do lenço de cabeça que lhe cobria boca. — "E que Hadíj nos mantenha".
Ouviu grunhidos vindos da fila que de certo seriam lamentos e murmúrios daqueles que o seguiam, mas continuou caminhando frente ao grupo. Se tentassem parar para suportar a passagem dos ventos arenosos, não sobreviveriam mais do que as dezenas de viajantes que já havia encontrado parcialmente soterrados no solo solto e quente no Mar do Sol.
Mil passos a frente, as vozes chegaram alarmadas aos ouvidos de Arám. Não precisou olhar para saber que as bordas da onda alcançavam a extremidade da fila. Ao tentar gritar um incentivo para que suportassem sem deixar de caminhar, foi surpreendido por um golpe de ar tão pesado que o fez perder o equilíbrio por alguns instantes.
— "Faháq Hadíj, me mantenha." — Implorou, enquanto protegia o rosto dobrando os braços sobre a face coberta e dava as costas ao que parecia ser um enxame de besouros em centenas de milhões.
De olhos estreitados, só era capaz de identificar os próprios braços frente ao rosto. Todo resto era granulado, amarelo e passageiro. Tentou continuar a caminhar mas logo que desprendeu uma das soterradas sandálias do solo soprado, sentiu-se leve o suficiente para acreditar que seria levado. Quando fincou o calcanhar erguido na areia, abaixou-se e novamente levou um pé a frente. O passo foi curto, ligeiro e difícil, mas foi. Deu um segundo, um terceiro e foi só quando passou do décimo que uma sensação de inclinação para baixo sob os pés lhe fez parar.
— "Estou andando para o lado!" — O desespero começou a tomar fora dentro de si. — "Perdi a fila! Oh Maalêm, permita que não".
O vento impiedoso o atingia vez por um lado, vez por outro. A areia que trazia consigo lhe alvejava por completo no lado do qual vinha e parecia estar tentando intencionalmente confundi-lo. Perdido por conta da agonia e em agonia por conta das dúvidas, Arám inflou os pulmões para gritar o mais alto que podia. Antes que sua voz saísse, algo trombou em suas costas.
— Orítis? — Uma voz jovial e feminina, abafada pelos lenços e em tom desesperado veio da sombra em meio as areias passantes.
— É Arám... — Respondeu em voz forçadamente calma, trazendo a mulher para próximo com ambas as mãos. — É Arám, Miláh.
— Enísh?! Ah Fahaq Maalêm, achei que estava perdida e abandonada. O sol enviou você para me buscar, bendito seja.
O abraço desesperado da jovem fez a agonia anterior se transformar em uma mistura de alívio e vergonha.
— "Misericórdia grande sol, estava prestes a gritar por socorro."
Alguns instantes se seguiram com Miláh apertando-o entre os braços e as quentes lufadas fazendo as vestes de ambos debaterem violentamente, com o ruido de infinitos grãos raspando como lixas no tecido de ráfia.
— Temos de seguir. — O ancião teve de manter a voz alta para que os rugidos assobiósos dos ventos não impedissem a jovem de o ouvir. — Temos que andar enquanto ainda estamos na margem dos ventos.
— E para onde iremos enísh? — Miláh escondia o rosto no peito do ancião ao deixar as palavras saírem como se estivessem lhe engasgando. — Não consigo ver nem mesmo o sol!
— Andaremos com as costas para a ventania mais raivosa, e Hadíj guiara nossos pés até um lugar seguro.
— Ka e' naq — A prece foi quase totalmente suprimida pelo ruido ao redor.
As passadas eram lentas, os pés se afundavam até o meio das canelas na areia, que sensivelmente se movia quando soprada. A visão, terrível, não só pela impossibilidade de enxergar mais do que a distância do próximo passo, mas também pelo constante ataque dos grãos contra os olhos. Arám seguia na dianteira envolvendo os ombros da jovem nos braços, era uma cabeça menor do que ele e mesmo coberta pelos tecidos grossos sobrepostos, continuava esguia e pequena.
— "Que não nos deixe morrer como sombras na areia, que nos permita ver os rostos de nossos amigos antes do fim. Misericórdia grande sol, não deixe morrermos sem ver você novamente."
Um som de impacto chamou a atenção dos caminhantes, seguido por um contínuo ruído de atrito, que era como se uma onda interminável se chocasse contra um penhasco. Sem parar de caminhar, mas mantendo-se ao largo de onde o som parecia vir, foram surpreendidos quando avistaram uma silhueta. Um vulto escuro, intermitentemente disforme e que tinha todos os sinais de estar sendo castigado pelos ventos arenosos.
— Híma? — Miláh tentou olhar um par de vezes, mas a areia lhe fazia recuar abruptamente quando atingia seu rosto.
— Não, um animal teria fugido da onda de areia. Parece uma tenda. — Era difícil acreditar que uma construção simples suportaria tais ventos, mas se os povos Ngaki viviam como nômades no Mar do Sol, poderiam ter conseguido forma de montarem algo que resistisse a ele.
— Se forem Ngakinas podem nos matar se tentarmos procurar abrigo. — A jovem diminuiu o passo quando notou que o ancião mudou a direção para o rumo da silhueta.
— Se eles não nos matarem, os ventos matam.
Os passos dela retornaram ao ritmo anterior.
— Fala a língua deles? Talvez possamos pagar pela proteção do abrigo — Miláh se apertava mais contra o corpo do ancião de vez em vez, sempre que um golpe de areia os atingia.
— Não... — Arám tateou a cintura verificou a grande adaga que trazia em uma bainha na cintura.
— Mas alguns deles falam o Idioma das Trocas, talvez um que esteja ali fale, Ekím permita que sim.
— Ka e' naq. — A jovem se protegeu de mais uma lufada.
Quanto mais se aproximavam, mas a forma da silhueta se tornava intrigante. Por vezes, Arám pensava ser uma tenda, por outras, tinha certeza que olhava para uma das enormes criaturas que rastejavam sob as dunas. Com o ruído trovejando e o véu de areia dispersando violentamente das costas do vulto, chegaram próximos o suficiente para o ancião arriscar afirmar do que se tratava.
— Hadíj nos trouxe a uma rocha Miláh, nos trouxe a uma proteção.
— Louvado seja! — A jovem apressou-se na direção que seguiam.
Era uma rocha no fim, serviria de proteção sem dúvidas, mas também poderia ser a tumba de ambos caso a onda de dunas os cobrisse. Apesar de ter isso em mente, o ancião sabia que sua companheira não conseguiria andar muito mais nos ventos. Na verdade, ele mesmo já tinha as pernas tremulas de cansaço e os olhos feridos por conta dos grãos que o atingiram.
— "Se essa é nossa única chance... Que todas as rochas soterradas em Har a' Lásh venham a superfície"
Os pouco mais de 100 passos que duraram o percurso foram de longe os mais difíceis, os pés já não queriam obedecer a ordem de avançar, os olhos, já não aceitavam mais ficar aberto nem mesmo que um pouco. Apesar de em certo ponto a rocha passar a servir de barreira contra o vento arenoso, quanto mais se aproximavam, mais a sensação de que ela estava prestes a tombar era maior.
Ao chegarem, depararam com uma rocha inclinada e recurvada e um dos lados. De superfície lisa e ondulada por cima, com o interior irregularmente corroído para dentro de si mesma.
— Enísh, os outros podem ter sobrevivido? — Miláh questionou logo que sentaram, com as costas apoiadas no fundo da rocha, enquanto esta vibrava com as rajadas de areia que passavam por ela.
A jovem manteve os lenços na cabeça e cobrindo a boca, fazendo seus olhos castanho-esverdeados e lacrimejantes se tornarem ainda mais chamativos.
— Eles devem estar perguntando a mesma coisa sobre nós íft, e aqui estamos.
Miláh já não era uma criança, mas com quase 120 solstícios de vida, Arám ganhara o costume de ver e chamar os mais jovens dessa forma. Assim como a maioria dos anciões fazia. " Sempre somos crianças aos olhos de alguém Áram." Lembrava-se de ter ouvido isso de Manássi, velho curandeiro de sua época de juventude, de sua época de marcado, de antes.
Os ventos permaneceram impiedosos ainda por um tempo, em seguida, pioraram ao ponto de Miláh se pressionar tanto contra a rocha às suas costas, que pareceu a Arám que ela pretendia atravessa-la ou adentrar nela. Quando os rugidos assobiantes diminuíram e o as areias passaram a cair como linhas estreitas das bordas irregulares da rocha, a noite já era quase completa.
— Acabou? Sobrevivemos? — O tom em que a jovem questionava era mais surpreso do que aliviado.
— Graças a solidez da perseverança que Hadíj nos concedeu...
— E a luz da misericórdia que Maalém manteve em nós. — Ela completou
Arám deixou-a em preces sussurrantes ainda sentada no solo, percorreu o curto espaço que a curvatura da rocha vazia para o seu próprio interior e olhou ao redor. Nada lhe era familiar, exceto as estrelas que agora surgiam ainda tímidas no céu opaco, nada permanecera no lugar. Dunas esvoaçaram, elevações de torrões terrosos desapareceram e não havia sinal de qualquer outro ser vivo.
— "Que eles tenham encontrado abrigo" — Arám deu a volta no rochedo que se escondeu junto a Miláh, rochedo este, que agora tinha metade a mais do tamanho na face onde o vento atacava. Tendo desenterrado a rocha arestosa que estava abaixo da areia.
Subiu em uma escalada simples pela rocha e ao chegar no topo, buscou novamente os limites de sua visão do entorno. Tudo o que via era um mar de areia acinzentado pela noite chegada, ilhas de rocha pontuadas na extensão vazia e principalmente um bloco de vento e areia e rolava avançando. Mas um ruído lhe alcançou os ouvidos.
— Vê alguém enísh? Vê Orítis? — Só agora Miláh deixava o curto interior da rocha.
— Ouço alguma coisa ao longe, mas não encontro nada com os olhos.
— Cães do deserto? — A jovem se apressou em iniciar a subida na rocha.
O som era tênue, distorcido pela distância e interrompido por ventos sibilantes. Em momentos, parecia vir de um dos lados, solitário e sonoro. Em outros, parecia vir de toda uma extensão, talvez até por baixo da areia, e em entonação grave e retumbante.
— Agora ouço... — Miláh estava mais intrigada que temerosa, mas mesmo assim, sussurrou aquelas palavras. — Não podem ser cães do deserto, podem?
— Só se tiverem aprendido a cantar seus uivos. — Olhou para o céu em busca de referência, e somente o salpico de estrelas lhe era visível. — "Seja o que for, não podemos parar de andar e ficar aqui parados. Não temos água ou comida e Miláh com certeza esta tão cansada quanto eu."
Arám iniciou a descida e imediatamente foi seguido pela jovem, partiram em direção aos sons que ecoavam além de onde podiam ver. Durante a caminhada, o ancião notou as contidas porém frequentes tentativas da jovem para impedi-lo de a ouvir chorar. Inicialmente manteve o silêncio, mas quando o pensamento de que ela talvez nunca mais reencontrasse o amado Orítis ou mesmo seus parentes, diminuiu os passos para que ela o alcançasse.
— Não tem de tentar esconder seu choro íft... — Desenrolou o próprio lenço do rosto e em seguida fez um sinal amigável para que ela também o fizesse. — É certo chorar quando estamos preocupados com os que amamos.
A barba hirsuta e grisalha de Arám estava ainda maior do que quando iniciou a jornada a frente das três famílias, em busca do povo do Oasis. Os cabelos ralos também estavam apesar da parte calva que possuía no topo da cabeça. Quando retirou todo o lenço, foi como se pela primeira vez na vida uma brisa lhe tocasse a face. Uma brisa longa e com a frieza que a imensidão do deserto provê à noite. Sacudiu o tecido aberto, fazendo quase uma mão cheia de areia seguir o vento.
Miláh levou mais tempo para retirar seu lenço, tinha um para o rosto e cabeça além de um somente para os cabelos. Libertando-se, entregou o longo, ondulado e negro volume de fios ao respiro da noite. Ainda úmidos de suor pela quente jornada do dia. A pele parda escura em conjunto com a noite, fez com que os olhos cintilassem o tom esverdeado que possuíam.
— Tento acreditar que Hadíj os manteve e os salvou assim como fez com nós dois... — A voz da jovem tremulou e lagrimas transbordaram de seus olhos. — Mas já não consigo mais.
— "E o que eu digo para convencer ela do contrario Maalêm?" — Pousou uma mão fraternalmente em seu ombro. — "Nenhum entre os que me seguiam eram meus parentes, mesmo assim confiaram em mim para guia-los e falhei com todos. Mesmo encontrar ela foi acidental e nada fiz além de manter a imagem de alguém que suporta, um segundo a mais e ela me encontraria gritando por socorro."
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